Cegos compartilham a emoção do esporte e têm o melhor jogador do mundo

Quando se troca a barreira do preconceito pela possibilidade do acesso, é possível chegar a uma outra realidade: pessoas com deficiência são plenamente capazes de vivenciar todas as experiências e sensações do esporte. Esta é a conclusão de quem pratica e acompanha as modalidades esportivas adaptadas.

foto: gaspar nobrega/ cpb divulgação

foto: cecília bastos
Cego desde os sete anos, Ferreira ainda guarda na mente a imagem da camisa do time querido e não esconde o gosto pelo futebol: “A modalidade adaptada foi a chance para eu realizar um sonho”
“Infelizmente, o povo é muito preconceituoso”, afirma Adelmo Ferreira, cego e jogador de futebol nas horas vagas. “Quando digo que jogo bola, o pessoal fica surpreso ou acha que não é sério. Por isso eu convido os amigos para assistir aos campeonatos. Depois que vão às partidas entre cegos, saem com outra imagem”, completa.

O futebol de cinco, como é chamada essa modalidade adaptada, entrou para as Paraolimpíadas em Atenas 2004. Logo na primeira edição, o Brasil levou o ouro após bater a Argentina na final. Além disso, outro título importante foi conquistado: por duas vezes o atleta brasileiro Mizael Conrado foi eleito o melhor jogador do mundo.

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A essência do futebol é a mesma, mas conta com algumas regras especiais: os quatro jogadores de linha usam vendas, pois os níveis de visibilidade mudam entre os atletas – parcial ou totalmente cegos. O goleiro, único que enxerga, não pode sair de uma pequena área retangular – caso contrário é marcado pênalti. A bola, idêntica à de futsal, tem uma espécie de guizo dentro, que, através do barulho, indica sua posição. Não há linhas laterais, portanto, a pelota sai apenas pelos fundos. Para guiar os jogadores de linha, há três vozes importantes: o goleiro, que grita com o time na defesa, o técnico, responsável pela tática, e o chamador. Este último fica atrás do gol adversário orientando o ataque, momento do chute, perigo de ter a bola roubada, e noção de direcionamento através dos gritos. Durante a partida, é importante que a torcida não faça muito barulho, pois atrapalha a audição dos jogadores.

“Eu comecei com uma bola enrolada num arame com tampinhas de garrafa”, lembra Daniel Pereira, cego desde os dois anos, vítima de erro médico. “Estudei numa escola voltada para deficientes visuais e por lá já encontrei pessoas para jogar”. Junto com os parceiros de time, ele se reúne duas vezes por semana para treinar. O técnico do grupo, Renato Mota, conta que ficou surpreso no começo: “Eu não tinha experiência com cegos e descobri que eles conseguem uma partida de nível igual a de qualquer outro time”.

fotos: cecília bastosPara o técnico, o futebol para cegos não perde em nada: “A partida segue ao modo deles. Já vimos jogos com carretilha, elástico e até chapéu. Aqui também dá pra ser profissional tranqüilamente”

foto: franscisco emolo
A professora Elizabeth acha que pode haver colaboração nas escolas: “Não é preciso de muito para que os cegos ou pessoas com outras deficiências também possam participar nas aulas de educação física”

Para Elisabeth de Mattos, professora da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da USP, onde coordena atividades com alunos especiais, “a prática esportiva tem as mesmas influências para pessoas com ou sem deficiência”. Ela explica que é possível, através de pequenas adaptações, garantir a prática de exercícios desde as escolas: “Será que o professor não pode formar um grupo de futebol com vendas nos outros meninos que enxergam normalmente para eles também compartilharem a experiência de um cego, por exemplo? Sim, todos podem ter a vivência”.

Uma experiência semelhante à citada por Elizabeth é realizada no Unsicht-Bar, um restaurante alemão que recebe os clientes totalmente às escuras. O nome da casa faz uma brincadeira com as palavras “invisível” e “bar”. Lá, os visitantes são servidos vendados, que é para terem aguçados o demais sentidos como olfato e paladar. A idéia é que as pessoas tenham uma vivência comum através de outros sentidos.


Também na Alemanha e Inglaterra, alguns estádios já têm realizado ações para garantir ao público com deficiência as mesmas emoções da partida. No país da Copa, o clube Bayer Leverkusen foi pioneiro: o serviço com fones de ouvido tem um narrador treinado para a locução específica, que visa à descrição o mais objetiva possível da partida.

De volta para o Brasil, segundo a professora Elizabeth, a situação para pessoas com deficiência melhorou nos últimos anos. Ela cita a legislação brasileira, que impede escolas de recusarem matrícula de pessoas com deficiência e incentiva a instituição a se virar com os próprios recursos, inclusive durante a educação física. Outro dado que ela menciona é o aumento de verbas para o Comitê Paraolímpico Brasileiro. “Foi dado um passo grande. Na teoria estamos criando condições de excelência, mas na prática ainda vemos disparidades por falta de informação.”

No Instituto de Psicologia, a professora Marie Claire Seikkel, especialista na questão do preconceito social, lembra de uma grande barreira: “A falta de acesso estrutural não é o único problema. A crença de que os deficientes não podem fazer nada é uma situação de bloqueio. É o julgamento dos outros sobre algo que não viram, e assim cortam as oportunidades”.

foto: cecília bastos
“A sociedade faz um julgamento antes de conhecer”

Adelmo Ferreira, que além de jogar bola é também locutor de uma rádio comunitária, concorda com a visão da professora e completa: “Também depende muito de si próprio. Sou cego e me sinto normal, sempre procurei participar das rodas de amigos. No entanto, sei de gente que se tranca e esquece do mundo, elas mesmas se excluem”. A psicóloga Marie Claire ainda lembra a sociedade e as próprias pessoas com deficiência que “se a diferença de cada indivíduo for vista como um erro, um defeito, já está sendo colocada uma barreira para a integração entre as partes”. Elizabeth, da EEFE, considera que o importante é o exercício da cidadania: Estar incluso significa exercer os direitos do cidadão. O desafio disso é garantir a informação e acessibilidade”.