Como funciona a memória e sua ligação com a personalidade

A memória é algo tão natural ao ser humano que, muitas vezes, não questionamos como ela funciona. Tão natural que já se nasce com algumas delas prontas, as chamadas memórias da espécie. Uma rede bastante complexa de células nervosas é responsável pelos arquivos que montamos ao longo da vida, mesmo que sejam feitos para durar apenas algumas horas ou minutos. E, ainda, as lembranças não existem apenas para saber onde está a chave do carro, mas conferem a cada pessoa uma personalidade única.

créditos: Francisco Emolo
“Sem nos darmos conta, o sistema nervoso é treinado a rotular se as informações são relevantes por duas horas, três dias, três segundos.” Gilberto Fernando Xavier

“Temos uma estrutura neurológica de complexidade extremamente elevada e, por isso, conseguimos arquivar as memórias”, afirma Geraldo Fernando Xavier, professor do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências. Uma experiência marcante faz conjuntos de células do sistema nervoso entrarem em intensa atividade elétrica, o que pode desencadear reações bioquímicas e, assim, alterar a conexão entre os neurônios. Isso ocorre em vários pontos do cérebro, criando circuitos relacionados à representação da experiência original.

Se, no futuro, a pessoa for exposta a algum fator que remeta à experiência original, como o cheiro, ou mesmo se simplesmente desejar lembrar dela, aquela porção do circuito onde estão armazenadas as informações da experiência original será ativada e a atividade neurofisiológica se espalhará por todo o circuito. A partir daí, recorda-se o conjunto da experiência.

créditos: Francisco Emolo
“O máximo que se consegue com um clone é um irmão gêmeo mais novo.” Gilberto Fernando Xavier

Cada ser humano passa por eventos distintos ao longo da existência. “Mesmo duas pessoas geneticamente iguais, como é o caso de gêmeos univitelinos, que são 100% iguais geneticamente, por outro lado são diferentes, pois têm personalidades distintas, um deles pode ser esquizofrênico e o outro não”, explica Xavier. Isto é explicado em função da interação desses cérebros com o ambiente.

“Se o cérebro for colocado numa seqüência de eventos em que consegue maior previsibilidade acerca do ambiente, está em maior segurança quanto à seqüência de eventos que se sucedem, ele vai ser um indivíduo normal”, afirma Xavier. “Se for exposto a uma sucessão de fatos que promovem muitas inseguranças, eventualmente pode desenvolver doenças psicológicas, como ansiedade e depressão.”

créditos: Cecília Bastos
“Quando estou no trabalho tento me desligar dos outros afazeres.” Nanci Camargo Silva

Com o acúmulo de tarefas a que nos submetemos atualmente, fica mais difícil ainda lembrar de tudo. “Considero-me uma pessoa um pouco desligada, mas me esforço muito para estar atenta”, conta Nanci Camargo Silva, secretária do Centro Analítico do Instituto de Química, voluntária em um bazar para construção de um hospital, para o qual também promove eventos, religiosa praticante e dona de casa. “Hoje, anoto tudo relativo ao trabalho.”

É relevante arquivar informações tanto por curto quanto por longo período de tempo. Por exemplo, quantos faróis estavam abertos e quantos estavam fechados no caminho até o trabalho. Muitas vezes a pessoa não sabe isso depois de 3 ou 4 segundos. Ela pegou a informação, processou, identificou, tomou a decisão correta, mas como esta só serve para aquele momento, simplesmente apagou. “O sistema nervoso treina identificar o que é relevante e o que não é”, garante Xavier.

créditos: Francisco Emolo
"Se houver uma mudança no ambiente, a criança está mais preparada para aprender e lidar com as novas dificuldades do que uma pessoa mais velha.” Gilberto Fernando Xavier

Ao longo da existência se acumulam esses treinamentos, o que facilita o trabalho do sistema nervoso. Uma pessoa adulta, mais do que aprender coisas novas, usa as informações que tem para gerar previsões de mais longo alcance. Diferentemente de uma criança de 6 anos, que ainda está captando informação e tem maior chance de guardar dados complexos, ao passo que não tem informação suficiente para fazer probabilidades.

As memórias da espécie – informações prontas no patrimônio genético – são tão fundamentais para a sobrevivência que esses circuitos neurais se estabeleceram ao longo do processo evolutivo, como os mamíferos que nascem sabendo mamar. Se analisado o que acontece quando o bebê mama verifica-se um processo bastante complexo, envolvendo diversos músculos.

créditos: Cecília Bastos
“O que mais esqueço são os compromissos no HU.” Magali Baroni Cangussu

“Raramente esqueço um aniversário, mas como tenho uma família muito grande, às vezes lembro depois que passou”, confessa Magali Baroni Cangussu, chefe do Serviço de Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. “O que mais esqueço são os compromissos com o Hospital Universitário (HU), porque as consultas são marcadas com muita antecedência.” Magali usa um artifício para não esquecer os compromissos, especialmente do trabalho: “Além de tê-los anotados na agenda, marco tudo em um calendário que fica em cima da minha mesa”.

Existem muitas técnicas para treinar a memória. O primeiro a estudá-las foi o jesuíta italiano Mateo Ricci no século 16. Ele se imaginava andando por um palácio que conhecia muito bem e guardando informações em lugares conhecidos, como gavetas e outros objetos. “A estratégia é manter as informações num contexto conhecido e ensaiá-las por mais tempo”, revela Xavier. Essa é a base de todos os métodos ditos modernos, métodos de associação.

créditos: Cecília Bastos
Livro:O palácio da memória de Mateo Ricci
Autor: Jonathan Spence
Editora: Cia. das Letras
Páginas: 360
R$: 51,50