A distância marcante dos relacionamentos familiares é o tema em que mergulha a peça Querido Pai. O espetáculo se baseia na produção literária do alemão Franz Kafka, que escreveu Carta ao Pai em 1919. Nesta obra, o autor aponta como as atitudes paternas determinaram negativamente a formação de si próprio como filho e, mais tarde, um adulto reprimido e submisso. Ao mesmo tempo, o diretor e professor da ECA (Escola de Comunicações e Artes) Antônio Januzelli leva os atores a uma reflexão de mundo em que as próprias experiências e visões se mesclam com os desabafos de Kafka.

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Envolvidos pelo cenário sem adornos e pela iluminação baixa, os quatro atores trocam palavras sobre o resultado da convivência frígida numa família. A movimentação dos corpos no palco vive a expectativa de avanço, mas repleto de dificuldades em se expressar. A obstrução é fruto do abismo que separa pais e filhos, evidenciado por frases marcantes na peça: “Você sabe onde está meu filho?” ou “Tu me perguntaste recentemente por que afirmo ter medo de ti”. Quando a iminência se transforma em ação, surgem os desabafos, acusações e até um pouco de violência verbal.

Como em Carta ao Pai, o elenco desenvolve a mesma situação: o relato do filho Kafka, de 36 anos, magoado com o autoritarismo, contradição e descaso do pai. O autor desta obra íntima faz uma espécie de “catálogo das atitudes paternas” que o tornaram uma pessoa sem auto-estima, desconfiada e incapaz de se relacionar. De maneira sutil, Kafka se inocenta pelo fracasso do próprio comportamento, acusa o pai por esse fracasso, e, por fim, concede a absolvição do réu por este ter agido de acordo com sua natureza.O diretor Januzelli explica que o interesse na carta de Kafka é em razão da exploração de um tema comum, mas pouco abordado. “Ele diz respeito a todos nós, seres do cotidiano. A gente sofre com problemas simples sem perceber outras pessoas numa situação igual ou pior”, afirma o professor.

Criação

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Ator Frederico Foroni

Além da inspiração na obra literária, a peça Querido Pai também conta com inserções do próprio elenco. Segundo o ator Frederico Foroni, que interpreta Franz Kafka, “o trabalho foi realizado em cima dos moldes da relação entre pai e filho. Aí entra nosso exercício de observação da sociedade, os depoimentos de amigos e também uma parte de experiências pessoais. Nesse processo colaborativo, o ator também é autor”.

Januzelli explica que esse processo é denominado dramaturgia do ator. Nesse caso, cada indivíduo desenvolve sua obra pessoal, dentro do grupo, a partir de indagações sobre o tema selecionado. “Daí surge o caldo para o que é utilizado no espetáculo.”O professor da ECA fala que esse princípio tem origem no teatro norte-americano dos anos 60, com o ator da Broadway Joseph Chaikin. Naquela época foi vivida a experiência de criação coletiva, quando os membros do elenco reclamam para si a expressão de traços mais pessoais. “A atuação é veiculada a reflexões e exercícios em grupo sobre o que e como se expressar. Ele não fica só na dependência do texto pré-escrito pelo dramaturgo e moldado pelo diretor”, garante Januzelli.

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"Em Querido Pai, o autor tem sua assinatura no trabalho de encenação como um todo". Professor e diretor Antônio "Januzelli

Dessa forma, o elenco de Querido Pai passou cinco meses realizando improvisos com diferentes observações, movimentos e situações cênicas. No início, não havia um resultado nítido que se pudesse esperar. “Temos ensaios o tempo todo”, conta Foroni. “Como não existe um roteiro muito rígido, surgem novas falas e cenas todos os dias. E surpreende a maneira como o Janô [Januzelli] trabalha o ator, a energia e profundidade da cena.”

O elenco conta ainda com a participação de Henrique Schafer (indicação para Prêmio Shell de melhor ator em 2005 por O Porco), Eduardo Ruiz e Patrícia Ermel. Juntos, eles integram o Grupo Arquipélago, formado há um ano com influências do processo de criação coletiva e da produção literária kafkiana.


Serviço

Querido Pai
Duração: 80 min. Censura: 14 anos.

Viga Espaço Cênico
Local: Rua Capote Valente, 1.323 – Pinheiros
Horários: terças e quartas às 21h
Fone: (11) 3801-1843
Entrada: R$ 20,00 para o público em geral. R$ 10,00 estudantes, professores, maiores de 60 anos e classe teatral
Data: até 11/10