Por Circe Bonatelli
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Antes do cristianismo, o ciclo agrário e a natureza determinavam as festas de fim de ano. Com o solstício de inverno começou o “Natal Primitivo”.


Presépio. A tradição do presépio, que simboliza o nascimento de Cristo, começou com São Francisco de Assis, no século 13. Muitos fiéis gostavam da representação montada nas missas e o costume acabou pegando.


Ceia. Em qualquer época, a partilha de comida entre familiares e amigos era feita para celebrar alguma boa ocasião.


Presentes. A troca de presentes acontece desde a Antiguidade. Nos primórdios, eram desdobramentos das oferendas a divindades e líderes espirituais. No cristianismo, tem inspiração nos Reis Magos e os presentes ao Menino Jesus.

Todo fim de ano, milhares de cidades ao redor do mundo se vestem com as cores do Natal para festejar o nascimento de Cristo, a confraternização entre famílias, e relembrar antigas tradições. Mas como foram construídas as tradições até chegarmos aqui? Existe um consenso entre pesquisadores de que as origens dessa data ultrapassam a conotação religiosa e vêm das longas festas de povos pagãos. De acordo com as culturas pré-cristãs, as comemorações no fim do ano eram grandes carnavais. Então, o que significa, hoje em dia, buscar o resgate dos valores do Natal?

“Existe um sistema festivo de uma cultura muito antiga sobre a qual não se fala”, explica a professora Ana Paula Megioni, da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas). “E não se fala muito disso justamente porque o Natal é considerado uma festa introspectiva, com sentido religioso. No entanto, se formos analisar as camadas que formaram a data, vamos descobrir outras conotações.”

A Igreja Católica só fixou o Natal no dia 25 de dezembro depois de, aproximadamente, quatro séculos após o nascimento de Cristo. Há dois mil anos, os mecanismos para contagem dos dias eram baseados nos ciclos da natureza. Portanto, é difícil precisar acontecimentos nesse período.

Antigos povos agrários, situados na Europa dos primeiros séculos anteriores ao ano um, entravam em festa com o solstício de inverno. Na astronomia, o solstício de inverno acontece quando um dos pólos da Terra alcança o ponto mais afastado do Sol. Em decorrência disso, ocorrem fenômenos da natureza bastante perceptíveis como noites mais longas do que os dias, e a mudança da posição solar no céu terrestre. As sociedades agrárias, que se norteavam pelo ciclo da natureza, iniciavam as celebrações em torno de 22 de dezembro, quando se dá o solstício no Hemisfério Norte.

Começava aí uma grande temporada carnavalesca, com duração de três meses, vigorando até a chegada da primavera. As festas estavam relacionadas aos ciclos agrários e eram marcadas pela reunião da sociedade, comida e bebida.

Muitos anos mais tarde, a partir do século 12, esses elementos pagãos foram anexados pelo cristianismo. Com o passar do tempo, vários concílios da Igreja Católica adequaram as mobilizações populares já existentes ao calendário de celebrações cristãs. A própria data do Natal foi agendada pela Igreja para se aproximar do solstício de inverno. Em seguida, à medida que a fé se expandia, a festividade do ciclo agrário foi cedendo espaço para a devoção aos valores cristãos.

“Para a Igreja, foi como formular um calendário educativo que ligasse a cultura popular ao sentimento de devoção”, resume a professora Ana Paula. “Surge aí a mistura de elementos pagãos e religiosos que leva ao culto natalino como conhecemos hoje”.


Pinheiro. A árvore, que cresce estritamente no sentido vertical, é considerada “intermediária entre o céu e a terra” desde os povos agrários.

 

Dessa forma, mencionar o resgate dos valores do Natal é fazer a relação entre o religioso – fraternidade, amor ao próximo, celebração do Cristo – e o não religioso – ritual festivo, troca de presentes e ceia. Hoje, os costumes das famílias podem ser considerados representantes desse hibridismo, pois reúnem e incorporam novas tradições em suas festas natalinas.

Na casa da bibliotecária Leila Aparecida Bonadio, funcionária da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, o Natal é mais religioso. “Tenho dois irmãos que são ministros de eucaristia. A gente reza na véspera e vai à missa no dia 25”, conta Leila. “E tem muita criança na família, 12 ao todo. Claro que elas adoram ganhar presente e decorar a casa, mas não deixamos de ensinar também o quanto é especial o nascimento de Jesus.”

“O Natal está no rol das festas de fim de ano.” Luana Robles

Crédito: Cecília Bastos
“O Natal está no rol das festas de fim de ano.” Luana Robles


 

Já Luana Robles Vieira, do Serviço de Pós-Graduação da Faculdade de Educação, pouco relaciona o Natal com religiosidade. “Parte da minha família faz suas orações. Mas, para mim, Natal tem mais a ver com o rol das festas de fim de ano. Os presentes de amigo secreto, o sentimento de renovação e os novos planos são bem mais divertidos.”

Valores contemporâneos

Do mesmo modo que os primeiros significados natalinos foram incorporados pela Igreja a partir da Idade Média, a sociedade contemporânea também se apropriou das tradições estabelecidas ao longo dos anos.

O professor aposentado Álvaro de Aquino Gullo, da FFLCH, coloca a seguinte idéia: “Partimos de um pressuposto: onde nós estamos? Vivemos numa sociedade marcada pela urbanização, capitalismo, tecnologia avançada, burocracia e divisão de classes. Com dessas características, podemos deduzir o que o Natal significa na atualidade.”

“Os símbolos natalinos foram tão modificados que se perderam os referenciais do início.” Professor Gullo.

Crédito: Cecília Bastos
“Os símbolos natalinos foram tão modificados que se perderam os referenciais do início.” Professor Gullo.

Segundo o professor Gullo, as tradições foram englobadas pelo modo de vida atual. “Não interessam quais são as tradições, porque todas foram secularizadas pelo modo de vida contemporâneo. O Natal de hoje tem que dar lucro, tem que exibir as tecnologias de ponta, e por aí vai. Os valores originais como fraternidade e festejos são importantes, mas as pessoas acabam se referindo a eles por influência da mídia sem de fato praticá-los.”

Contraponto

No Instituto de Ciências Biomédicas, a funcionária Maria José de Jesus Carvalho é um contraponto à atual moda consumista. Muito católica, diz que “o mais importante é a confraternização”. No entanto, Maria tem poucas oportunidades para se confraternizar com a família por causa da distância. Os parentes estão em Fortaleza. “Mas não tem problema, porque o sentido da confraternização está em se aproximar das pessoas. E eu faço isso por aqui.”

Na véspera dos últimos Natais, Maria se junta a amigos que percorrem a cidade doando alimentos para moradores de rua. “A gente visita alguns grupos, monta uma mesa com os mantimentos e os deixa fazer a comida. Eles gostam de preparar a própria ceia, pois relembram o jantar e os costumes de suas famílias, deixadas há anos”.

 

 
 
 
 
 
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