texto: Circe Bonatelli
Fotos: Francisco Emolo

 

Cecília Bastos

 

 

 

Crédito: Francisco Emolo
Durante a ditadura, Dallari atendia sindicalistas e demais perseguidos políticos. Um dia, foi levado até a cela onde estavam esses colegas, que se empolgaram com sua presença. “Nosso advogado chegou!”, comemoraram. “Pois é, mas nesse dia, era eu quem estava chegando preso”, lembra.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Crédito: Francisco Emolo
Entre 1986 e 1990, Dallari foi diretor da FD e fechou o departamento feminino, alvo de protestos de alunas que julgavam a existência da sala uma segregação. Quase 40 anos antes, o mesmo Dallari apoiou as colegas da turma que solicitaram um espaço reservado, pois eram a minoria.

 

 

 

 

 


Nascido em 31 de dezembro de 1931, Dalmo de Abreu Dallari é considerado hoje um dos maiores juristas brasileiros. Professor e ex-diretor da Faculdade de Direito da USP, autor de Elementos da Teoria Geral do Estado, ativista da histórica Comissão Pontifícia de Justiça e Paz na década de 70, membro da Comissão Internacional de Juristas e ex-membro da Cátedra Unesco/USP pelos Direitos Humanos. Entre outros títulos nacionais e internacionais, o professor Dallari demonstra que a participação social e política não depende do status acadêmico. Qualquer um pode dar sua contribuição participando de questões locais e cotidianas. Quer ver outro cargo do professor? Vice-presidente da Associação dos Moradores do Bairro Vila Nova Conceição. Quem não pode atuar no próprio bairro?

Dallari cresceu em Serra Negra, interior de São Paulo, junto com os pais e quatro irmãos. A família se mudou para a capital paulistana apenas em 1947, com o objetivo dos filhos estudarem. Só os filhos, a filha não. “Era um problema da mentalidade da época”, lembra.

O pai, descendente de italianos, tinha uma sapataria. Era seu costume ler o jornal e explicar as notícias para a antiga clientela, composta principalmente por imigrantes que trabalhavam na roça. “Nessa época, eu ainda era um toquinho, mas ficava ouvindo as conversas”, conta Dallari. “Eu fixei, por exemplo, que meu pai falava contra Getúlio, e que meu tio morreu na luta de 32.” Essas informações motivaram Dallari, aos oito anos, a corrigir a professora do ginásio onde estudava, em Serra Negra. Quando ela mencionou para a classe o presidente Vargas, ele interrompeu: “Presidente não, professora. Ditador!”.

Em São Paulo, os irmãos completaram o chamado curso clássico, equivalente ao ensino médio. “Quando deixei Serra Negra, já queria estudar direito. O ambiente familiar me influenciou, claro. Além da liderança política que vi em meu pai, minha mãe era uma leitora assídua. Ela admirava, inclusive, a tradição da faculdade do Largo São Francisco e seus poetas: Castro Alves e Álvares de Azevedo.”

O ingresso de Dallari na Faculdade de Direito (FD) da USP aconteceu em 1953. Com a graduação em 1957 e os constantes aperfeiçoamentos na carreira, chegou à livre-docência em 1964. Publicou 14 livros, associando o direito e a prática social. Entre as publicações, está Elementos da Teoria Geral do Estado, obra consultada por dez a cada dez estudantes de direito. “E eu escrevi esse livro porque percebi que faltava algo desse assunto mais próximo da realidade. Antes, era tudo muito abstrato.”

O exercício da advocacia acompanhou o professor por muitos anos. Foi solicitador da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) no quarto ano da graduação. A convite do jurista Alfredo Gallo Júnior, seu antigo professor de português, foi trabalhar em um escritório na Praça da Sé. “Tive contato com audiências, juízes e acumulei um bom conhecimento. Meu estilo de advogar veio do Gallo Júnior, um mestre para mim.”

A ligação de Dallari com o operariado surgiu quando o estudante trabalhava no escritório de advocacia no Centro de São Paulo e assistiu, ao vivo, à pancadaria em cima dos trabalhadores durante reuniões grevistas na Praça da Sé e Praça João Mendes. “Era revoltante ver a polícia a cavalo batendo nos operários. Nunca fui comunista nem tive simpatia porque sou cristão. E como cristão, preciso ser solidário.”

A defesa dos direitos humanos, englobando o movimento do operariado, foi marca de sua carreira. Na FD, essa postura chamou a atenção do conservador meio acadêmico, que chegou a excluir o professor de muitas aulas.

Sabendo dessa disposição que Dallari manifestava ao longo dos anos, D. Paulo Evaristo Arns o procurou em 1972. O governo militar estava no auge das intervenções violentas, prisões arbitrárias e sumiços instantâneos de opositores e suspeitos. O cardeal havia decidido montar uma Comissão Pontifícia de Justiça e Paz em São Paulo, seguindo exemplo do Rio de Janeiro, e convidou o professor para presidir a organização. “Nessa altura, eu já era bastante procurado como advogado para ajudar pessoas que tiveram parentes e amigos presos. Depois que me tornei presidente da comissão, esse trabalho ficou mais fácil, porque eu ia à polícia e avisava o delegado: ‘se esta pessoa seqüestrada não aparecer, ou aparecer morta, o Papa vai ficar sabendo ainda hoje'! Claro que era blefe, mas podia ser verdade. Se a comissão tem o título de Pontifícia, é um comitê do Papa.”

“Depois de muito tempo, D. Paulo me confessou que eu fui a quinta pessoa convidada para presidir a Comissão de Justiça e Paz. Nenhum dos outros quatro aceitou”

 

 

Crédito: Francisco Emolo
“Nunca fui comunista nem tive simpatia porque sou cristão. E como cristão, preciso ser solidário.”

 

Durante os anos seguintes, a atuação de Dallari foi motivo de perseguição política e duros golpes. Na noite anterior à visita do papa João Paulo II a São Paulo, em 1980, o professor foi vítima de seqüestro e espancamento. “Fiquei todo arrebentado, um bando de sujeitos me agrediu num terreno baldio até eu não conseguir ficar em pé mais. Era para servir de recado”, lembra. Voltando para casa, foi levado ao hospital, onde exigiu dos médicos que conseguisse ir ao evento do dia seguinte. “Eu estava escalado para fazer umas leituras na missa do Papa. Eu iria àquela missa nem que fosse a última coisa da minha vida.” E, para espanto dos presentes na cerimônia, ele realmente apareceu, sob os aplausos da população. Àquela altura, a ditadura já não tinha mais muito fôlego.

Apesar de o professor ter tido participação ativa nas várias questões de sua época, principalmente na luta pelos direitos humanos, nunca pensou em engrenar na vida política. Na máquina pública, de 1990 a 1992, foi secretário de Negócios Jurídicos da Prefeitura durante a gestão de Luíza Erundina. “Por convite de uns amigos, fui candidato a vereador quando eu estava na graduação. Candidatura foi só essa vez, mas eu faço política o tempo todo, uma política não partidária. Utilizo o direito como instrumento de mudança social.”

“Eu faço política o tempo todo, uma política não partidária. Utilizo o direito como instrumento de mudança social.”

   

Casado por duas vezes, Dallari vive com a atual esposa numa casa espaçosa no bairro Vila Nova Conceição. Como vice-presidente da Associação de Moradores, trabalhou para expulsar a Daslu da região. Segundo o professor, a loja excedia a área permitida em um bairro residencial. “Chegamos a oferecer óculos para os fiscais. Só eles não viam.”

Dos sete filhos de Dallari, três são professores. Dois dão aulas de direito.

O senhor foi a influência para eles, professor?

“Cada um tem sua idéia própria. Santo de casa não faz milagre...”

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