Por Circe Bonatelli
fotos: Francisco Emolo, Cecília Bastos e reproduções


 

 

 

 

 

 

c. Francisco Emolo
“Sei fazer uma receita como ninguém”, brinca Valéria, que tomou anoréticos por quase dez anos e chegou à dependência. Hoje, garante ter se livrado deles. “O médico dizia que não serviam mais para emagrecer. Eu só tomava por vício.”

 

 

 

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“Quando eu paro de tomar meu calmante predileto, dá até tremedeira.” Usuária do Orkut

 

 

c. Francisco Emolo
"Quem toma calmante e anfetamina pode achar que é algo fraquinho ou natural, porque foi feito em farmácia de manipulação. Muitos médicos não avisam que é um psicotrópico e o que isso significa.” Sílvia Brasiliano

c. Francisco Emolo
O prof. Carlini é diretor do Cebrid, na Unifesp, maior centro de pesquisa sobre o consumo de psicotrópicos no Brasil. Em dezembro, ele participou de uma jornada de estudos no Instituto de Psiquiatria da USP.

 

c. Francisco Emolo
“O aumento do consumo acontece pela procura do corpo ideal e pela leviandade com que os médicos fazem prescrições.” Patrícia Hochgraf


Moderadores de apetite (anfetaminas), calmantes (barbitúricos) e “remedinho” para diminuir a ansiedade (benzodiazepínicos). Todos são medicamentos psicotrópicos e causam dependência. O pior é que seu consumo tem aumentado nos últimos anos e avança principalmente entre as mulheres. A cada dez receitas médicas do gênero, nove são para o público feminino. Entre 2001 e 2005, a porcentagem de mulheres usuárias de anfetaminas dobrou: 2,2% para 4,5%. O aumento também foi notável para os benzodiazepínicos: de 4,3% para 6,9% no mesmo período. Por trás desse crescimento, prevalece o uso indiscriminado facilitado pela legislação branda e pelas irresponsabilidades dos profissionais da saúde.

Desde o final dos anos 90, o País já era campeão no uso de anfetaminas. Argentina e Chile vinham logo atrás, mas conseguiram diminuir o consumo em mais de 50% através de leis rígidas e intervenção de órgãos públicos. Enquanto isso, no Brasil, o mercado de psicotrópicos foi ainda mais acelerado devido aos fracos mecanismos de fiscalização. Quem fez esse alerta foi o INCB (sigla em inglês: Comitê Internacional para Controle de Narcóticos), entidade ligada à Organização Mundial da Saúde, em um relatório divulgado há dois anos.

A falta de controle permite distorções como a detectada pelo Cebrid (Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas Psicotrópicas), da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). Um estudo com mais de 100 mil prescrições observou que a maioria dos médicos (81,5%) dá até dez receitas de psicotrópicos por ano, média considerada normal. Por outro lado, existem “profissionais” que ultrapassaram 1.000 receitas anuais. Nesses casos se encaixam os esquemas fraudulentos associados às farmácias de manipulação e as freqüentes recomendações de comprimidos para emagrecer. Os médicos que encabeçam as prescrições são endocrinologistas, ginecologistas, cardiologistas e neurologistas.

Os principais motivos que levam as mulheres ao consultório são: vontade de perder peso rapidamente e as queixas de estresse. O uso inadequado da medicação – aumento das doses por conta própria e/ou ingestão continuada após o fim do tratamento – causam dependência e sérios distúrbios psicológicos.

“As farmácias e médicos deveriam ficar alertas, porque quem tem o vício pode levar à corrupção”, diz Valéria Perencin, funcionária da Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz), em Piracicaba. Dependente dos remédios, ela pagava o dobro para que as farmácias de manipulação lhe vendessem anfetamínicos. “Se custava 50, pagava 100. Eles se viravam para procurar receita.” A primeira dosagem foi receitada porque ela queria perder cinco quilos. Hoje, depois de dois filhos, Valéria pesa 56 quilos ao longo dos seus 1,53 metros. A assistente acadêmica reconhece que tem um índice de massa corporal adequado, mas não se considera magra. “Toda mulher acha que tem cinco quilos a mais. É como ver no espelho uma imagem que não é dela”, justifica.

No mais famoso site de relacionamentos, o Orkut, milhares de internautas compartilham experiências semelhantes à de Valéria em comunidades virtuais que geralmente têm o mesmo nome do medicamento – Clube do Frontal, Eu Tomo Alpraz ou ainda Adoro Meus Calmantes. A maioria dos membros aparenta sofrer de ansiedade, indisposição física e distúrbios do sono. “Quando eu paro de tomar meu calmante predileto, dá até tremedeira.” Esta é uma das mensagens que circulam entre alertas sobre o uso indevido de remédios, receitas próprias e muita informação equivocada.

Questões sociais

Fala-se muito no modelo de beleza magra imposto à mulher. Mas, imposto por quem? Segundo explica a psicanalista Sílvia Brasiliano, coordenadora do Promud (Programa de Atenção à Mulher Dependente Química), do Instituto de Psiquiatria (IPq) da USP, “o culto à magreza é algo narcísico, pois procura satisfazer um desejo da própria mulher. Não se trata de buscar ser aceita pelo namorado ou marido. O que se vê na nossa cultura é o homem valorizando corpos mais cheios, não das modelos de moda. Quem gosta de corpo magro é a mulher”.

Outra especulação aponta para a entrada feminina no mercado de trabalho como o grande responsável pelo estresse nas ex-donas de casa. “Muito pelo contrário”, garante o professor Elisaldo Carlini, diretor do Cebrid na Unifesp. “A mulher que só fica em casa dá mais sinais de ser infeliz e tem mais queixas de solidão.” O pesquisador cita estudos norte-americanos que revelam o aumento no consumo de psicotrópicos em função da jornada de trabalho dentro do lar. Quanto maior a jornada de trabalho doméstico, maior o uso de medicamentos.

A funcionária Maria Helena Braga, do Instituto de Física de São Carlos, chegou a usar calmantes depois de passar por uma gestação difícil aos 40 anos: “Não sabia se [ a gravidez ] ia pra frente, eu estava muito tensa e a primeira coisa que o médico sugeriu foram os medicamentos. Durante uma semana eu fiquei abatida e sonolenta. No trabalho, a cobrança existia mesmo assim, ninguém queria saber se eu estava voltando de uma gravidez. Por isso parei de tomar o calmante”, conta. Para mudar a situação, a saída encontrada por Maria Helena foi aliviar a tensão através de exercícios: ginástica, caminhada e acupuntura. “Aos pouquinhos fui melhorando. Hoje, eu e minha filha de seis anos estamos bem.”

O exemplo de Maria Helena é incomum. “As pessoas querem respostas rápidas, querem alívio para ontem. É a cultura do imediatismo”, fala Patrícia Hochgraf, psiquiatra e coordenadora do Promud, do IPq. “Para resolver um mal-estar, tem-se usado calmantes no lugar de terapias ou exercícios, porque apresentam efeitos mais rápidos. Está errado, a pessoa fica sujeita aos efeitos colaterais, inclusive risco de dependência. Quem quer emagrecer quatro ou cinco quilos também não pode tomar anfetaminas. Remédio só no caso de obesidade mórbida, não importa se você tem um cruzeiro de férias no mês que vem”, afirma Patrícia.

A pesquisadora vê apenas uma forma dos médicos lidarem com a cobrança dos pacientes no consultório: “Se não tem indicação, não dê a receita. Se o paciente te achar chato e não voltar mais, não dá para fazer nada”. A professora Sílvia Brasiliano, também do IPq, completa: “O modelo de pouco esforço não ajuda a refletir e organizar, nem trata das causas. Remédio para emagrecer dá o chamado efeito rebote: a mulher engorda tudo de novo”.

 

 
 
 
 
 
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