“Sei fazer uma receita como ninguém”, brinca Valéria, que tomou
anoréticos por quase dez anos e chegou à dependência. Hoje,
garante ter se livrado deles. “O médico dizia que não serviam mais
para emagrecer. Eu só tomava por vício.”
“Quando eu paro de tomar meu calmante predileto, dá até tremedeira.” Usuária
do Orkut
"Quem toma calmante e anfetamina pode achar que é algo fraquinho
ou natural, porque foi feito em farmácia de manipulação.
Muitos médicos não avisam que é um psicotrópico e
o que isso significa.” Sílvia Brasiliano
O prof. Carlini é diretor do Cebrid, na Unifesp, maior centro
de pesquisa sobre o consumo de psicotrópicos no Brasil.
Em dezembro, ele participou de uma jornada de estudos no Instituto
de Psiquiatria da USP.
“O aumento do consumo acontece pela procura do corpo ideal e pela leviandade
com que os médicos fazem prescrições.” Patrícia Hochgraf
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Moderadores de apetite
(anfetaminas), calmantes (barbitúricos)
e “remedinho” para diminuir a ansiedade (benzodiazepínicos).
Todos são medicamentos psicotrópicos
e causam dependência. O pior é que
seu consumo tem aumentado nos últimos anos
e avança principalmente entre as mulheres.
A cada dez receitas médicas do gênero,
nove são para o público feminino.
Entre 2001 e 2005, a porcentagem de mulheres usuárias
de anfetaminas dobrou: 2,2% para 4,5%. O aumento
também foi notável para os benzodiazepínicos:
de 4,3% para 6,9% no mesmo período. Por
trás desse crescimento, prevalece o uso
indiscriminado facilitado pela legislação
branda e pelas irresponsabilidades dos profissionais
da saúde.
Desde o final dos anos 90, o País já era
campeão no uso de anfetaminas. Argentina e
Chile vinham logo atrás, mas conseguiram diminuir
o consumo em mais de 50% através de leis rígidas
e intervenção de órgãos
públicos. Enquanto isso, no Brasil, o mercado
de psicotrópicos foi ainda mais acelerado
devido aos fracos mecanismos de fiscalização.
Quem fez esse alerta foi o INCB (sigla em inglês:
Comitê Internacional para Controle de Narcóticos),
entidade ligada à Organização
Mundial da Saúde, em um relatório divulgado
há dois anos.
A falta de controle permite distorções
como a detectada pelo Cebrid (Centro Brasileiro de
Informação sobre Drogas Psicotrópicas),
da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Um estudo com mais de 100 mil prescrições
observou que a maioria dos médicos (81,5%)
dá até dez receitas de psicotrópicos
por ano, média considerada normal. Por outro
lado, existem “profissionais” que ultrapassaram 1.000
receitas anuais. Nesses casos se encaixam os esquemas
fraudulentos associados às farmácias
de manipulação e as freqüentes
recomendações de comprimidos para emagrecer.
Os médicos que encabeçam as prescrições
são endocrinologistas, ginecologistas, cardiologistas
e neurologistas.
Os principais motivos que levam as mulheres ao consultório
são: vontade de perder peso rapidamente e
as queixas de estresse. O uso inadequado da medicação – aumento
das doses por conta própria e/ou ingestão
continuada após o fim do tratamento – causam
dependência e sérios distúrbios
psicológicos.
“As farmácias e médicos deveriam ficar
alertas, porque quem tem o vício pode levar à corrupção”,
diz Valéria Perencin, funcionária da
Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz),
em Piracicaba. Dependente dos remédios, ela
pagava o dobro para que as farmácias de manipulação
lhe vendessem anfetamínicos. “Se custava 50,
pagava 100. Eles se viravam para procurar receita.” A
primeira dosagem foi receitada porque ela queria
perder cinco quilos. Hoje, depois de dois filhos,
Valéria pesa 56 quilos ao longo dos seus 1,53
metros. A assistente acadêmica reconhece que
tem um índice de massa corporal adequado,
mas não se considera magra. “Toda mulher acha
que tem cinco quilos a mais. É como ver no
espelho uma imagem que não é dela”,
justifica.
No mais famoso site de relacionamentos, o Orkut,
milhares de internautas compartilham experiências
semelhantes à de Valéria em comunidades
virtuais que geralmente têm o mesmo nome do
medicamento – Clube do Frontal, Eu Tomo
Alpraz ou ainda Adoro Meus Calmantes.
A maioria dos membros aparenta sofrer de ansiedade,
indisposição física e distúrbios
do sono. “Quando eu paro de tomar meu calmante predileto,
dá até tremedeira.” Esta é uma
das mensagens que circulam entre alertas sobre o
uso indevido de remédios, receitas próprias
e muita informação equivocada.
Questões sociais
Fala-se muito no modelo de beleza magra imposto à mulher.
Mas, imposto por quem? Segundo explica a psicanalista
Sílvia Brasiliano, coordenadora do Promud
(Programa de Atenção à Mulher
Dependente Química), do Instituto de Psiquiatria
(IPq) da USP, “o culto à magreza é algo
narcísico, pois procura satisfazer um desejo
da própria mulher. Não se trata de
buscar ser aceita pelo namorado ou marido. O que
se vê na nossa cultura é o homem valorizando
corpos mais cheios, não das modelos de moda.
Quem gosta de corpo magro é a mulher”.
Outra especulação aponta para a entrada
feminina no mercado de trabalho como o grande responsável
pelo estresse nas ex-donas de casa. “Muito pelo contrário”,
garante o professor Elisaldo Carlini, diretor do
Cebrid na Unifesp. “A mulher que só fica em
casa dá mais sinais de ser infeliz e tem mais
queixas de solidão.” O pesquisador cita estudos
norte-americanos que revelam o aumento no consumo
de psicotrópicos em função da
jornada de trabalho dentro do lar. Quanto maior a
jornada de trabalho doméstico, maior o uso
de medicamentos.
A funcionária Maria Helena Braga, do Instituto
de Física de São Carlos, chegou a usar
calmantes depois de passar por uma gestação
difícil aos 40 anos: “Não sabia se
[ a gravidez ] ia pra frente, eu estava
muito tensa e a primeira coisa que o médico
sugeriu foram os medicamentos. Durante uma semana
eu fiquei abatida e sonolenta. No trabalho, a cobrança
existia mesmo assim, ninguém queria saber
se eu estava voltando de uma gravidez. Por isso parei
de tomar o calmante”, conta. Para mudar a situação,
a saída encontrada por Maria Helena foi aliviar
a tensão através de exercícios:
ginástica, caminhada e acupuntura. “Aos pouquinhos
fui melhorando. Hoje, eu e minha filha de seis anos
estamos bem.”
O exemplo de Maria Helena é incomum. “As
pessoas querem respostas rápidas, querem alívio
para ontem. É a cultura do imediatismo”, fala
Patrícia Hochgraf, psiquiatra e coordenadora
do Promud, do IPq. “Para resolver um mal-estar, tem-se
usado calmantes no lugar de terapias ou exercícios,
porque apresentam efeitos mais rápidos. Está errado,
a pessoa fica sujeita aos efeitos colaterais, inclusive
risco de dependência. Quem quer emagrecer quatro
ou cinco quilos também não pode tomar
anfetaminas. Remédio só no caso de
obesidade mórbida, não importa se você tem
um cruzeiro de férias no mês que vem”,
afirma Patrícia.
A pesquisadora vê apenas uma forma dos médicos
lidarem com a cobrança dos pacientes no consultório: “Se
não tem indicação, não
dê a receita. Se o paciente te achar chato
e não voltar mais, não dá para
fazer nada”. A professora Sílvia Brasiliano,
também do IPq, completa: “O modelo de pouco
esforço não ajuda a refletir e organizar,
nem trata das causas. Remédio para emagrecer
dá o chamado efeito rebote: a mulher engorda
tudo de novo”.
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