“Trabalho com pacientes que têm
doenças neuromusculares gravíssimas,
muitas delas letais, que matam na juventude e na
infância, ou deixam a pessoa numa cadeira
de rodas. Então, o que eu mais quero na
vida é achar um tratamento para essas doenças.” Mayana
Zatz
“É muito triste quando você vê a
questão das células-tronco reduzida
a um STF, aos cientistas, a nós da universidade,
sem a participação de teólogos,
filósofos, sem acrescentar a ética
na discussão. O valor moral da vida humana
não pode ser definido só pela ciência
ou pela lei.” Elma Zoboli
“Na primeira divisão celular
já está definido o que você vai
ser. Isso não é um conceito ultrapassado.” Alice
Teixeira Ferreira
Chao Yun Irene Yan ressalta que o processo
de regressão da célula-tronco adulta
para a embrionária é bastante complicado: “A
repressão gênica é muito difícil
de estudar, porque é a ausência de alguma
coisa. É muito mais difícil entender
o conceito de zero do que o de um e dois.”
“Você tem que trabalhar com
várias possibilidades, para depois ver qual
a melhor alternativa.” Lígia da Veiga Pereira
“Há limites que a ciência
e a tecnologia estão proibidas de transgredir.
A caracterização dos limites éticos
na pesquisa deve incluir investigação
racional tão rigorosa quanto aquela exigida
pela própria ciência.” Maurício
de Carvalho Ramos
“Sobretudo no final do século
19, foi muito reforçado um preconceito vindo
dos humanistas, renascentistas, que taxavam a idade
média de idade das trevas. É uma coisa
que aparece até hoje na mídia, no meio
acadêmico.” Francisco Assis de Queiroz
“Destruir vários embriões
em detrimento do ‘mais viável' pode ser visto
como eugenia das mais cruéis. Se as
pesquisas com células-tronco embrionárias
destroem os embriões, ipso facto estão
destruindo vidas humanas em germe.” Eduardo Cruz
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A evolução
da ciência já permitiu à humanidade
realizar proezas inimagináveis até alguns
séculos atrás. Entre elas, está a
cura de doenças que, por muito tempo, fizeram
inúmeras vítimas e reinaram absolutas,
como a tuberculose. Hoje, em pleno século
21, cientistas travam árduas batalhas contra
outras moléstias ainda incuráveis,
tais como a diabetes, o mal de Parkinson, a lesão
de medula espinhal e as doenças neuromusculares.
Nessa empreitada, volta e meia surgem verdadeiros
dilemas éticos, que colocam em questão
até que ponto as pesquisas podem progredir
tecnicamente sem desrespeitar a dignidade humana.
Um dos campos de pesquisa mais promissores em todo
o mundo é a engenharia genética. Através
dela, pode-se descobrir que fatores determinam algumas
doenças e, a partir disso, desenvolver os
tratamentos mais adequados. Existe, inclusive, a
perspectiva de se fabricar órgãos humanos
novos e saudáveis, em substituição àqueles
que estiverem comprometidos. Para alcançar
esse objetivo, é fundamental a utilização
das chamadas células-tronco, capazes de se
transformar em qualquer tecido do nosso organismo.
Há dois tipos diferentes de células-tronco:
as adultas, encontradas no cordão umbilical
e na medula óssea, por exemplo, e as embrionárias,
que, como o próprio nome diz, só podem
ser obtidas em embriões humanos. Por já se
encontrarem num estágio de desenvolvimento
mais avançado, as células-tronco adultas
não têm tanto potencial de transformação
quanto as embrionárias. Somente essas últimas
podem se diferenciar nos 216 tecidos do corpo humano.
No entanto, a sua obtenção implica
na destruição de embriões.
Aqui se inicia uma grande polêmica: alguns
cientistas são totalmente contra o emprego
das células-tronco embrionárias em
pesquisas porque, para isso, vidas humanas em potencial
teriam que ser sacrificadas. Outros defendem sua
utilização, pois somente elas poderiam
apressar o processo de descoberta de curas para muitas
doenças, o que evitaria a morte de milhares
de pessoas.
No Brasil, a questão foi parar na justiça.
Isso porque, quando a Lei de Biossegurança
foi aprovada em março de 2005, o então
procurador-geral da República Cláudio
Fonteles entrou com uma ação direta
de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal
(STF), contestando-a. A lei autoriza, entre outras
coisas, a pesquisa com células-tronco embrionárias
obtidas de embriões humanos produzidos por
fertilização in vitro, desde
que esses embriões sejam inviáveis
ou estejam congelados há mais de três
anos e que haja consentimento dos genitores.
Fonteles baseou sua ação no artigo
5º da Constituição Federal, que
garante o direito à vida. Para ele, a destruição
de embriões viola esse direito. A fim de promover
o esclarecimento geral e fundamentar melhor sua decisão,
que deve ser tomada em breve, o STF realizou, no
dia 20 de abril de 2007, a primeira audiência
pública de sua história, levantando
a seguinte questão: quando começa a
vida? Participaram do debate cientistas pró e
contra o uso de células tronco embrionárias.
Para Elma Zoboli, professora da Escola de Enfermagem
da USP e 2ª vice-presidente da Sociedade Brasileira
de Bioética, o evento foi insuficiente para
auxiliar em qualquer decisão. “É muito
triste quando você vê a questão
das células-tronco reduzida a um STF, aos
cientistas, a nós da Universidade, sem a participação
de teólogos, filósofos, sem acrescentar
a ética na discussão. O valor moral
da vida humana não pode ser definido só pela
ciência ou pela lei.”
Controvérsias
A geneticista Mayana Zatz, pró-reitora de
Pesquisa da USP e diretora do Centro de Estudos do
Genoma Humano, é uma das defensoras da utilização
de células-tronco embrionárias para
a pesquisa, como já ocorre em outros países.
Segundo ela, o início da vida não é uma
preocupação da ciência, porque
a vida é um ciclo. “Trabalho com pacientes
que têm doenças neuromusculares gravíssimas,
muitas delas letais, que matam na juventude e na
infância, ou deixam a pessoa numa cadeira de
rodas. Então, o que eu mais quero na vida é achar
um tratamento para essas doenças. Se a gente
pode ter a esperança de um tratamento, eu
tenho que abraçar essa causa com tudo”, defende.
Os chamados embriões inviáveis, bem
como os congelados há mais de três anos,
têm origem no processo de reprodução
assistida, permitido pela legislação
brasileira. Nesse procedimento, biólogos coletam
os óvulos e espermatozóides dos genitores
e fazem a fecundação in vitro,
ou seja, num tubo de ensaio. De acordo com a necessidade,
para aumentar as chances de sucesso, costuma-se gerar
uma quantidade de embriões acima daquela que
será de fato implantada. Por isso, os excedentes
são armazenados nos bancos de embriões.
Mayana afirma que esses embriões não
têm nenhuma perspectiva de ser implantados
e que aqueles que apresentam alguma má-formação
ou doença genética acabam sendo descartados: “Eu
digo que são embriões inviáveis
porque eles nunca serão implantados. E, às
vezes, os embriões que são inviáveis
para formar uma pessoa podem formar um tecido. Esse é um
material para pesquisa fantástico”.
A pesquisadora e professora da Unifesp, Alice Teixeira
Ferreira, discorda: “Esses embriões são
inviáveis até para a pesquisa, porque
estão em processo de morte”. Ela acredita
que a utilização dos embriões
armazenados – que são sadios e não
estragam com o passar do tempo – para a obtenção
de células-tronco é incorreta e desnecessária. “Há uma
lista de 70 doenças degenerativas em que as
células-tronco adultas estão sendo
aplicadas. Além disso, já foi verificado
que existe a possibilidade de as células voltarem
para trás e assumirem características
embrionárias.”
De fato, artigos publicados pelas revistas científicas Nature e Cell
Stem Cell em 7 de junho deste ano revelam
que pesquisadores dos EUA e do Japão retiraram
células comuns da pele de camundongos e
conseguiram reprogramá-las para que elas
se comportassem como células-tronco embrionárias.
No entanto, a embriologista e professora da USP
Chao Yun Irene Yan ressalta que esse processo de
regressão da célula-tronco adulta para
a embrionária é bastante complicado.
Ela explica que, como as células adultas se
encontram num estágio mais avançado,
alguns dos seus genes são silenciados, a fim
de que outros se manifestem. Por isso, descobrir
quais foram os genes reprimidos e retornar ao estágio
de indiferenciação inicial não é uma
tarefa simples. “A repressão gênica é muito
difícil de estudar, porque é a ausência
de alguma coisa. É muito mais difícil
entender o conceito de zero do que o de um e dois”,
esclarece.
Segundo Lígia da Veiga Pereira, professora
do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva
do Instituto de Biociências da USP, o feito
dos cientistas americanos e japoneses é uma
prova da necessidade das células-tronco embrionárias. “Se
eles não tivessem podido usar as embrionárias
dos camundongos, não teriam conseguido descobrir
como fazer a transformação”, afirma.
Apesar de considerar essa possibilidade de regressão
uma boa alternativa à utilização
de embriões, Lígia acha que a ciência
não deve apostar todas as suas fichas apenas
nisso. “Esse trabalho é fantástico,
no sentido da plasticidade das células, e
resolve o problema da incompatibilidade porque possibilita
o uso de células-tronco do próprio
indivíduo que vai recebê-las, eliminando
o risco de rejeição. Mas você tem
que trabalhar com várias possibilidades, para
depois ver qual a melhor alternativa.”
Por outro lado, Alice Ferreira afirma que vida humana
começa com a fecundação e deve
ser respeitada. “Na primeira divisão celular
já está definido o que você vai
ser. Isso não é um conceito ultrapassado”,
atesta. Irene Yan, por sua vez, embora ressalte que
a determinação do início da
vida não é uma preocupação
da ciência, admite que quando acontece a fecundação,
forma-se um ser singular: “Do nosso ponto de vista,
quando não se implanta um embrião,
perde-se um indivíduo único. Aquele
embrião você nunca mais vai ter”.
Para a geneticista Mayana Zatz, a pesquisa é uma
maneira de evitar que embriões congelados
sejam simplesmente descartados, sem destino. “Esses
bancos de embriões existem e vão continuar
existindo. O que a gente tem que fazer, é respeitar
a maioria. A academia de ciências de 66 países
apóia essas pesquisas. Se eu sou contra, eu
não vou doar meu embrião e não
vou fazer a pesquisa. Mas eu não posso impedir
que os outros façam.”
Lígia Pereira acredita que os embriões
não devem ter o mesmo status e os mesmos direitos
de uma pessoa que já nasceu. Por outro lado,
ela assevera que eles não são um material
trivial ou um simples conglomerado de células
e devem ser tratados com respeito. Em sua opinião,
uma forma de fazer isso é utilizá-los
apenas em pesquisas realmente importantes, que tenham
um grupo de cientistas extremamente qualificado.
A estudiosa de bioética, Elma Zoboli, é contrária
a essa idéia: “A vida humana tem valor em
si. Não se devem estabelecer escalas de valor.
Ao destruir um embrião para poder pesquisar,
você tem que pensar que está negando
uma solidariedade ontológica às pessoas
que são da comunidade humana”, justifica.
Aqueles que são estritamente contrários à utilização
desses embriões vêem na adoção
uma das soluções possíveis.
Há, na Itália, na Espanha e nos Estados
Unidos, por exemplo, casos em que um embrião
foi adotado, implantado, nasceu e hoje está vivo.
Mayana, por seu lado, refuta a idéia. “Eu
acho uma aberração, num país
como o nosso, com tantas crianças abandonadas,
você adotar um embrião. De qualquer
maneira, existem inúmeros casais que dizem.
Eu não quero meu embrião implantado
no útero de ninguém, mas permitiriam
que eles fossem usados em pesquisas que salvassem
vidas, como a gente imagina que vai acontecer no
futuro”, argumenta.
Diante de toda a polêmica suscitada pela possibilidade
de utilização de embriões humanos
para pesquisa, Maurício de Carvalho Ramos,
professor de Filosofia da Ciência na USP, chama
a atenção para a necessidade de uma
problematização ética: “Há limites
que a ciência e a tecnologia estão proibidas
de transgredir. A caracterização dos
limites éticos na pesquisa deve incluir investigação
racional tão rigorosa quanto aquela exigida
pela própria ciência – o que significa
dizer que os debates amplos com a sociedade, apesar
de importantes, não são suficientes;
também está errado pensar que o apelo
ao foro íntimo ou ao bom senso seja suficiente
para enfrentar questões éticas difíceis
que envolvem a vida e a dignidade dos humanos”.
Ciência, ética e religião
Em meio aos inúmeros debates sobre a utilização
de células-tronco embrionárias para
a pesquisa, a questão religiosa não
tardou em aparecer. Ao ser questionado sobre se sua
ação de inconstitucionalidade teria
motivação religiosa, o subprocurador-geral
da República Cláudio Fonteles, que é católico,
acusou Mayana Zatz de ter um viés judaico.
Segundo ele, os judeus consideram que a vida começa
apenas no momento do nascimento e, por isso, a geneticista
seria favorável às pesquisas, argumento
que ela desmente: “Isso nunca esteve em questão.
Sou uma cientista e estou representando não
só a Academia de Ciências brasileira
como a academia de ciências de 66 países
que aprovam essas pesquisas”.
O historiador da USP Francisco Assis de Queiroz,
chama a atenção para o fato de que
as pessoas podem ter uma posição contrária
a essas pesquisas por outras razões, que não
apenas religiosas. Ele explica que o confronto entre
os pensamentos laico e religioso é muito mais
uma construção do que algo que realmente
caracterizou a história da ciência. “Sobretudo
no final do século 19, foi muito reforçado
um preconceito vindo dos humanistas, renascentistas,
que taxavam a Idade Média de idade das trevas. É uma
coisa que aparece até hoje na mídia,
no meio acadêmico”, afirma.
É por isso que a 2ª vice-presidente
da Sociedade Brasileira de Bioética Elma Zoboli
acredita que, a fim de se chegar a um acordo na polêmica
questão das pesquisas com células-tronco
embrionárias, é fundamental que haja
uma integração entre conhecimento biológico
e filosófico. Além disso, para ela, é necessária
a abertura de um “diálogo inclusivo”, extenso,
no qual todos os interlocutores tenham o mesmo peso,
o que inclui o aclaramento dos interesses que estão
por trás de cada posição defendida. “O
consenso você não vai achar. Numa sociedade
moderna, com tal pluralidade, o consenso é quase
impossível, mas você consegue um determinado
equilíbrio para o momento”, afirma. Elma explica
que, para a bioética, principalmente a latino-americana,
acima de todos os interesses tem que estar a vida
humana.
Para o teólogo Eduardo Cruz, professor da
PUC de São Paulo, a utilização
de embriões para pesquisa, mesmo que com o
objetivo de descobrir a cura de doenças letais,
tem implicações das mais sérias: “Destruir
vários embriões em detrimento do ‘mais
viável' pode ser visto como eugenia das mais
cruéis. Se as pesquisas com células-tronco
embrionárias destroem os embriões, ipso
facto estão destruindo vidas humanas
em germe. Se há a possibilidade de se
usar células-tronco adultas, como se tem evidenciado
recentemente, por que colocar mais lenha na fogueira
de uma discussão ética?”
Cruz acredita que o Estado deve sempre buscar um
equilíbrio entre o individual e o público,
reconhecendo as demandas dos diversos grupos sociais
que compõem a sociedade. Porém, faz
a ressalva: “Querer jogar a decisão sobre
a vida e a morte de seus cidadãos para o nível
puramente individual é abrir-se ao arbítrio
e à lei do mais rico e do mais poderoso”.
O filósofo Maurício Ramos explica
que obter uma definição satisfatória
do que é um ser humano exige um trabalho que
combine história, epistemologia e ciência. “Não é mais
difícil dizer se um embrião é ou
não humano do que se o Homo neandertalensis era
ou não humano”, afirma. “Quando pretendemos
ser realmente responsáveis, devemos decidir
o quão ‘desnecessário' (ou obrigatório)
deve ser um procedimento, considerando os valores éticos
(e aqueles que a eles podem se associar, como os
sociais, os ecológicos, os estéticos,
etc.) no mínimo tão importantes quanto
os valores de outras naturezas (científicos,
cognitivos, técnicos, econômicos, políticos,
etc.)”, conclui. |