Por Daniel Fassa
fotos: Francisco Emolo, Cecília Bastos e acervos pessoais

 

 

 

 

 

 

© Francisco Emolo
“Trabalho com pacientes que têm doenças neuromusculares gravíssimas, muitas delas letais, que matam na juventude e na infância, ou deixam a pessoa numa cadeira de rodas. Então, o que eu mais quero na vida é achar um tratamento para essas doenças.” Mayana Zatz

 

 

 

 

© Francisco Emolo
“É muito triste quando você vê a questão das células-tronco reduzida a um STF, aos cientistas, a nós da universidade, sem a participação de teólogos, filósofos, sem acrescentar a ética na discussão. O valor moral da vida humana não pode ser definido só pela ciência ou pela lei.” Elma Zoboli

 

 

 

 

 

© Francisco Emolo
“Na primeira divisão celular já está definido o que você vai ser. Isso não é um conceito ultrapassado.” Alice Teixeira Ferreira

 

 

 

 

 

 

 

© Jorge Maruta
Chao Yun Irene Yan ressalta que o processo de regressão da célula-tronco adulta para a embrionária é bastante complicado: “A repressão gênica é muito difícil de estudar, porque é a ausência de alguma coisa. É muito mais difícil entender o conceito de zero do que o de um e dois.”

 

 

 

 

 

arquivo pessoal
“Você tem que trabalhar com várias possibilidades, para depois ver qual a melhor alternativa.” Lígia da Veiga Pereira

 

 

 

 

 

 

 

 

© Cecília Bastos
“Há limites que a ciência e a tecnologia estão proibidas de transgredir. A caracterização dos limites éticos na pesquisa deve incluir investigação racional tão rigorosa quanto aquela exigida pela própria ciência.” Maurício de Carvalho Ramos

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

© Jorge Maruta
“Sobretudo no final do século 19, foi muito reforçado um preconceito vindo dos humanistas, renascentistas, que taxavam a idade média de idade das trevas. É uma coisa que aparece até hoje na mídia, no meio acadêmico.” Francisco Assis de Queiroz

 

 

 

 

 

 

Fapesp
“Destruir vários embriões em detrimento do ‘mais viável' pode ser visto como eugenia das mais cruéis.  Se as pesquisas com células-tronco embrionárias destroem os embriões, ipso facto estão destruindo vidas humanas em germe.” Eduardo Cruz



A evolução da ciência já permitiu à humanidade realizar proezas inimagináveis até alguns séculos atrás. Entre elas, está a cura de doenças que, por muito tempo, fizeram inúmeras vítimas e reinaram absolutas, como a tuberculose. Hoje, em pleno século 21, cientistas travam árduas batalhas contra outras moléstias ainda incuráveis, tais como a diabetes, o mal de Parkinson, a lesão de medula espinhal e as doenças neuromusculares. Nessa empreitada, volta e meia surgem verdadeiros dilemas éticos, que colocam em questão até que ponto as pesquisas podem progredir tecnicamente sem desrespeitar a dignidade humana.

Um dos campos de pesquisa mais promissores em todo o mundo é a engenharia genética. Através dela, pode-se descobrir que fatores determinam algumas doenças e, a partir disso, desenvolver os tratamentos mais adequados. Existe, inclusive, a perspectiva de se fabricar órgãos humanos novos e saudáveis, em substituição àqueles que estiverem comprometidos. Para alcançar esse objetivo, é fundamental a utilização das chamadas células-tronco, capazes de se transformar em qualquer tecido do nosso organismo.

Há dois tipos diferentes de células-tronco: as adultas, encontradas no cordão umbilical e na medula óssea, por exemplo, e as embrionárias, que, como o próprio nome diz, só podem ser obtidas em embriões humanos. Por já se encontrarem num estágio de desenvolvimento mais avançado, as células-tronco adultas não têm tanto potencial de transformação quanto as embrionárias. Somente essas últimas podem se diferenciar nos 216 tecidos do corpo humano. No entanto, a sua obtenção implica na destruição de embriões.

Aqui se inicia uma grande polêmica: alguns cientistas são totalmente contra o emprego das células-tronco embrionárias em pesquisas porque, para isso, vidas humanas em potencial teriam que ser sacrificadas. Outros defendem sua utilização, pois somente elas poderiam apressar o processo de descoberta de curas para muitas doenças, o que evitaria a morte de milhares de pessoas.

No Brasil, a questão foi parar na justiça. Isso porque, quando a Lei de Biossegurança foi aprovada em março de 2005, o então procurador-geral da República Cláudio Fonteles entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF), contestando-a. A lei autoriza, entre outras coisas, a pesquisa com células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro, desde que esses embriões sejam inviáveis ou estejam congelados há mais de três anos e que haja consentimento dos genitores.

Fonteles baseou sua ação no artigo 5º da Constituição Federal, que garante o direito à vida. Para ele, a destruição de embriões viola esse direito. A fim de promover o esclarecimento geral e fundamentar melhor sua decisão, que deve ser tomada em breve, o STF realizou, no dia 20 de abril de 2007, a primeira audiência pública de sua história, levantando a seguinte questão: quando começa a vida? Participaram do debate cientistas pró e contra o uso de células tronco embrionárias.

Para Elma Zoboli, professora da Escola de Enfermagem da USP e 2ª vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética, o evento foi insuficiente para auxiliar em qualquer decisão. “É muito triste quando você vê a questão das células-tronco reduzida a um STF, aos cientistas, a nós da Universidade, sem a participação de teólogos, filósofos, sem acrescentar a ética na discussão. O valor moral da vida humana não pode ser definido só pela ciência ou pela lei.”

Controvérsias

A geneticista Mayana Zatz, pró-reitora de Pesquisa da USP e diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano, é uma das defensoras da utilização de células-tronco embrionárias para a pesquisa, como já ocorre em outros países. Segundo ela, o início da vida não é uma preocupação da ciência, porque a vida é um ciclo. “Trabalho com pacientes que têm doenças neuromusculares gravíssimas, muitas delas letais, que matam na juventude e na infância, ou deixam a pessoa numa cadeira de rodas. Então, o que eu mais quero na vida é achar um tratamento para essas doenças. Se a gente pode ter a esperança de um tratamento, eu tenho que abraçar essa causa com tudo”, defende.

Os chamados embriões inviáveis, bem como os congelados há mais de três anos, têm origem no processo de reprodução assistida, permitido pela legislação brasileira. Nesse procedimento, biólogos coletam os óvulos e espermatozóides dos genitores e fazem a fecundação in vitro, ou seja, num tubo de ensaio. De acordo com a necessidade, para aumentar as chances de sucesso, costuma-se gerar uma quantidade de embriões acima daquela que será de fato implantada. Por isso, os excedentes são armazenados nos bancos de embriões.

Mayana afirma que esses embriões não têm nenhuma perspectiva de ser implantados e que aqueles que apresentam alguma má-formação ou doença genética acabam sendo descartados: “Eu digo que são embriões inviáveis porque eles nunca serão implantados. E, às vezes, os embriões que são inviáveis para formar uma pessoa podem formar um tecido. Esse é um material para pesquisa fantástico”.

A pesquisadora e professora da Unifesp, Alice Teixeira Ferreira, discorda: “Esses embriões são inviáveis até para a pesquisa, porque estão em processo de morte”. Ela acredita que a utilização dos embriões armazenados – que são sadios e não estragam com o passar do tempo – para a obtenção de células-tronco é incorreta e desnecessária. “Há uma lista de 70 doenças degenerativas em que as células-tronco adultas estão sendo aplicadas. Além disso, já foi verificado que existe a possibilidade de as células voltarem para trás e assumirem características embrionárias.”

De fato, artigos publicados pelas revistas científicas Nature e Cell Stem Cell em 7 de junho deste ano revelam que pesquisadores dos EUA e do Japão retiraram células comuns da pele de camundongos e conseguiram reprogramá-las para que elas se comportassem como células-tronco embrionárias.

No entanto, a embriologista e professora da USP Chao Yun Irene Yan ressalta que esse processo de regressão da célula-tronco adulta para a embrionária é bastante complicado. Ela explica que, como as células adultas se encontram num estágio mais avançado, alguns dos seus genes são silenciados, a fim de que outros se manifestem. Por isso, descobrir quais foram os genes reprimidos e retornar ao estágio de indiferenciação inicial não é uma tarefa simples. “A repressão gênica é muito difícil de estudar, porque é a ausência de alguma coisa. É muito mais difícil entender o conceito de zero do que o de um e dois”, esclarece.

Segundo Lígia da Veiga Pereira, professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da USP, o feito dos cientistas americanos e japoneses é uma prova da necessidade das células-tronco embrionárias. “Se eles não tivessem podido usar as embrionárias dos camundongos, não teriam conseguido descobrir como fazer a transformação”, afirma.

Apesar de considerar essa possibilidade de regressão uma boa alternativa à utilização de embriões, Lígia acha que a ciência não deve apostar todas as suas fichas apenas nisso. “Esse trabalho é fantástico, no sentido da plasticidade das células, e resolve o problema da incompatibilidade porque possibilita o uso de células-tronco do próprio indivíduo que vai recebê-las, eliminando o risco de rejeição. Mas você tem que trabalhar com várias possibilidades, para depois ver qual a melhor alternativa.”

Por outro lado, Alice Ferreira afirma que vida humana começa com a fecundação e deve ser respeitada. “Na primeira divisão celular já está definido o que você vai ser. Isso não é um conceito ultrapassado”, atesta. Irene Yan, por sua vez, embora ressalte que a determinação do início da vida não é uma preocupação da ciência, admite que quando acontece a fecundação, forma-se um ser singular: “Do nosso ponto de vista, quando não se implanta um embrião, perde-se um indivíduo único. Aquele embrião você nunca mais vai ter”.

Para a geneticista Mayana Zatz, a pesquisa é uma maneira de evitar que embriões congelados sejam simplesmente descartados, sem destino. “Esses bancos de embriões existem e vão continuar existindo. O que a gente tem que fazer, é respeitar a maioria. A academia de ciências de 66 países apóia essas pesquisas. Se eu sou contra, eu não vou doar meu embrião e não vou fazer a pesquisa. Mas eu não posso impedir que os outros façam.”

Lígia Pereira acredita que os embriões não devem ter o mesmo status e os mesmos direitos de uma pessoa que já nasceu. Por outro lado, ela assevera que eles não são um material trivial ou um simples conglomerado de células e devem ser tratados com respeito. Em sua opinião, uma forma de fazer isso é utilizá-los apenas em pesquisas realmente importantes, que tenham um grupo de cientistas extremamente qualificado.

A estudiosa de bioética, Elma Zoboli, é contrária a essa idéia: “A vida humana tem valor em si. Não se devem estabelecer escalas de valor. Ao destruir um embrião para poder pesquisar, você tem que pensar que está negando uma solidariedade ontológica às pessoas que são da comunidade humana”, justifica.

Aqueles que são estritamente contrários à utilização desses embriões vêem na adoção uma das soluções possíveis. Há, na Itália, na Espanha e nos Estados Unidos, por exemplo, casos em que um embrião foi adotado, implantado, nasceu e hoje está vivo. Mayana, por seu lado, refuta a idéia. “Eu acho uma aberração, num país como o nosso, com tantas crianças abandonadas, você adotar um embrião. De qualquer maneira, existem inúmeros casais que dizem. Eu não quero meu embrião implantado no útero de ninguém, mas permitiriam que eles fossem usados em pesquisas que salvassem vidas, como a gente imagina que vai acontecer no futuro”, argumenta.

Diante de toda a polêmica suscitada pela possibilidade de utilização de embriões humanos para pesquisa, Maurício de Carvalho Ramos, professor de Filosofia da Ciência na USP, chama a atenção para a necessidade de uma problematização ética: “Há limites que a ciência e a tecnologia estão proibidas de transgredir. A caracterização dos limites éticos na pesquisa deve incluir investigação racional tão rigorosa quanto aquela exigida pela própria ciência – o que significa dizer que os debates amplos com a sociedade, apesar de importantes, não são suficientes; também está errado pensar que o apelo ao foro íntimo ou ao bom senso seja suficiente para enfrentar questões éticas difíceis que envolvem a vida e a dignidade dos humanos”.

Ciência, ética e religião

Em meio aos inúmeros debates sobre a utilização de células-tronco embrionárias para a pesquisa, a questão religiosa não tardou em aparecer. Ao ser questionado sobre se sua ação de inconstitucionalidade teria motivação religiosa, o subprocurador-geral da República Cláudio Fonteles, que é católico, acusou Mayana Zatz de ter um viés judaico. Segundo ele, os judeus consideram que a vida começa apenas no momento do nascimento e, por isso, a geneticista seria favorável às pesquisas, argumento que ela desmente: “Isso nunca esteve em questão. Sou uma cientista e estou representando não só a Academia de Ciências brasileira como a academia de ciências de 66 países que aprovam essas pesquisas”.

O historiador da USP Francisco Assis de Queiroz, chama a atenção para o fato de que as pessoas podem ter uma posição contrária a essas pesquisas por outras razões, que não apenas religiosas. Ele explica que o confronto entre os pensamentos laico e religioso é muito mais uma construção do que algo que realmente caracterizou a história da ciência. “Sobretudo no final do século 19, foi muito reforçado um preconceito vindo dos humanistas, renascentistas, que taxavam a Idade Média de idade das trevas. É uma coisa que aparece até hoje na mídia, no meio acadêmico”, afirma.

É por isso que a 2ª vice-presidente da Sociedade Brasileira de Bioética Elma Zoboli acredita que, a fim de se chegar a um acordo na polêmica questão das pesquisas com células-tronco embrionárias, é fundamental que haja uma integração entre conhecimento biológico e filosófico. Além disso, para ela, é necessária a abertura de um “diálogo inclusivo”, extenso, no qual todos os interlocutores tenham o mesmo peso, o que inclui o aclaramento dos interesses que estão por trás de cada posição defendida. “O consenso você não vai achar. Numa sociedade moderna, com tal pluralidade, o consenso é quase impossível, mas você consegue um determinado equilíbrio para o momento”, afirma. Elma explica que, para a bioética, principalmente a latino-americana, acima de todos os interesses tem que estar a vida humana.

Para o teólogo Eduardo Cruz, professor da PUC de São Paulo, a utilização de embriões para pesquisa, mesmo que com o objetivo de descobrir a cura de doenças letais, tem implicações das mais sérias: “Destruir vários embriões em detrimento do ‘mais viável' pode ser visto como eugenia das mais cruéis.  Se as pesquisas com células-tronco embrionárias destroem os embriões, ipso facto estão destruindo vidas humanas em germe.  Se há a possibilidade de se usar células-tronco adultas, como se tem evidenciado recentemente, por que colocar mais lenha na fogueira de uma discussão ética?”

Cruz acredita que o Estado deve sempre buscar um equilíbrio entre o individual e o público, reconhecendo as demandas dos diversos grupos sociais que compõem a sociedade. Porém, faz a ressalva: “Querer jogar a decisão sobre a vida e a morte de seus cidadãos para o nível puramente individual é abrir-se ao arbítrio e à lei do mais rico e do mais poderoso”.

O filósofo Maurício Ramos explica que obter uma definição satisfatória do que é um ser humano exige um trabalho que combine história, epistemologia e ciência. “Não é mais difícil dizer se um embrião é ou não humano do que se o Homo neandertalensis era ou não humano”, afirma. “Quando pretendemos ser realmente responsáveis, devemos decidir o quão ‘desnecessário' (ou obrigatório) deve ser um procedimento, considerando os valores éticos (e aqueles que a eles podem se associar, como os sociais, os ecológicos, os estéticos, etc.) no mínimo tão importantes quanto os valores de outras naturezas (científicos, cognitivos, técnicos, econômicos, políticos, etc.)”, conclui.

 

 
 
 
 
 
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