por Daniel Fassa
Fotos por Francisco Emolo


 

 

 

 

 


Prof. Ricciardi ao piano


Os vários "insights" de um professor compositor

"De novo! Mais uma vez!"

Essas frases são repetidas insistentemente numa aula de regência. A candidata a maestrina, aluna do Departamento de Música de Ribeirão Preto se esforça. À frente da sala, um professor aficionado da perfeição. Não basta falar, ele literalmente pega não mão dos alunos e mostra como devem ser os gestos de um regente. A uma das alunas chama a atenção para a expressão do rosto: "Não é possível fazer arte sem arte!" A expressão da aluna muda completamente.

Assim prossegue a aula do professor Rubens Russomano Ricciardi, um dos idealizadores e responsável pela implantação do curso de Música da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA) em Ribeirão Preto. Essa busca pela perfeição, a dedicação à música e ao ensino de qualidade talvez expliquem a carreira acadêmica meteórica percorrida por esse ribeirão-pretano que aos 15 anos já freqüentava as salas de aula da ECA em São Paulo, como aluno especial dos professores Olivier Toni (teoria musical) e Amilcar Zani (piano).

Ingressar no curso de graduação foi conseqüência natural do neto de um ilustre cidadão de Ribeirão, o maestro Edmundo Russomano. Após longa temporada de pesquisas em Berlim Oriental (1987-1991) na Universidade Humboldt e conclusão de mestrado (1995) e doutorado em musicologia na ECA (2000), Rubens Ricciardi foi contratado como professor na Escola. Em agosto de 2006, tornou-se professor titular, o quarto de uma lista de poucos no Departamento de Música de São Paulo e o primeiro da unidade em Ribeirão Preto. Diz que é preciso talento e vocação para seguir na profissão. "É necessário ser capaz de superar-se a si próprio."

 

 

 

 

 


Prof. Rubens Ricciardi em uma das aulas do Departamento de Música de
Ribeirão Preto

Compositor e pesquisador reconhecido internacionalmente, Ricciardi escolheu sua terra natal para implantar um projeto que substituiu, pelo menos por enquanto, um sonho antigo. A intenção era criar na cidade uma escola de música para crianças. "Trouxe a idéia a pelo menos três dos últimos prefeitos da cidade e deles só vieram promessas." A ousadia de querer implantar uma escola diferenciada vem do fato de que, para ele, a música está vinculada a um dom e é necessário que a iniciação musical ocorra na mais tenra idade, entre 4 e 5 anos. Ele alia a essas características seu conhecimento sobre a história da cidade. "Ribeirão Preto, já em 1897, tinha um dos melhores teatros do Brasil, o Carlos Gomes, e, em 1930, ganhou ainda o Theatro Pedro II, hoje um dos melhores da América Latina, excelente para música de câmara, sinfônica ou ópera."

Segundo Ricciardi, a cidade tem uma vocação cosmopolita. Ele lembra que uma das importantes conquistas é a manutenção da Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto, fundada em 1938, é a segunda orquestra profissional em atividade mais antiga do Brasil e a única que não é pública em todo o País. "Temos teatro, orquestra e a boa prática de música, temos o Grupo Pró-Música que desde os anos 60 fomenta concertos de música de câmara. Faltava uma escola de música de qualidade para viabilizar a boa formação profissional e a continuidade das atividades, não só para ser um centro de consumo, mas também um centro idealizador e realizador da atividade musical. Isso viabilizamos com o novo Departamento de Música da ECA em Ribeirão Preto, associando-o à alta qualidade de pesquisa e ensino do campus. Moro num país com condições precárias para a formação do profissional em música, então decidi me firmar no desafio de criar um novo centro musical, sem os vícios consolidados, possibilitando algo novo e competente. Ou vinha para Ribeirão Preto ou ficava no exterior", fala com a certeza de quem sabia o que queria.

 

 

 

 

 

"Temos teatro, orquestra e a boa prática de música, temos o Grupo Pró-Música que desde os anos 60 fomenta concertos de música de câmara. Faltava uma escola de música de qualidade para viabilizar a boa formação profissional e a continuidade das atividades", Ricciardi

Ao não conseguir apoio para seu projeto da escola para crianças e adolescentes na cidade, decidiu redirecionar os esforços e ingressou como docente na Universidade, em 1999, mas já com o objetivo de trazer o curso de Música pela ECA para Ribeirão Preto. Para Ricciardi, uma escola de música de alta qualidade tiraria a criança do crime e das drogas. "É projeto de ascensão social comprovada." Preocupado com o que se faz no País hoje, em termos de inclusão social, não poupa nem mesmo o projeto do próprio governo do Estado. "Um projeto muito perigoso nessa área é o Guri. É assistencialismo que não traz qualidade de ensino, não viabiliza uma formação profissional de qualidade. Falta massa crítica nesse projeto. Ensinar música mal é pior que não ensinar. A escola depende da qualidade do professor", não cansa de repetir.

Como todo pesquisador, infiltrado nas entranhas da reflexão, tira suas próprias conclusões sobre a música hoje no mundo. Para ele, a indústria cultural, que ele chama de "universo musical mediano", pois é a música da "mídia", e também uma audição pela "metade", "um fundo musical de consumo e entretenimento fácil apenas fragmentado", e quase a totalidade dos meios de comunicação a reproduzem, não sobrando espaço suficiente para a "música enquanto arte".

"Vivemos em meio a um padrão industrializado da reprodução em série de artigos efêmeros, ou, como diria Adorno, da liberdade para o sempre igual – uma verdadeira poluição audiovisual e de terrível mau gosto gerada por esse sistema de manipulação."

E vai mais longe em sua análise. "A música popular brasileira está em extinção ou mesmo já morreu. Os universos musicais são finitos, na Europa a música popular ou folclórica, quase como um todo, já morreu no final do século 19. Lá tem-se ou uma música mediana ou então a música enquanto arte na tradição grafocêntrica, ou seja, o logos criativo que é centrado na escrita. Vou dar um exemplo: Portugal já não tem mais cantor de fado." O Brasil e seu grande celeiro de artistas entraram na análise: "Tivemos uma importante canção popular em determinado momento com o apoio da indústria cultural, principalmente na geração que vem desde Noel Rosa, Chico Alves, que inventou um novo jeito de cantar, que impregnou toda a produção do cancioneiro brasileiro até a bossa nova. Talvez o Chico Buarque seja o último dessa geração.

 

 

 


O professor regendo uma apresentação dos alunos do Departamento de Música de Ribeirão Preto durante as festividades em comemoração aos 15 anos do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências Farmacêuticas


O professor aponta um abismo cada vez maior que separa a música enquanto arte, ou seja, do universo musical da "écriture", ou "escritura", um conceito de Jacques Derrida, que cita com seu lógos grafocêntrico, mantida pelas universidades que abrigam os compositores de fato, da música mediana da indústria cultural. "A criação musical sobrevive ainda no século 21 porque as universidades a viabilizam, assim como no passado os compositores trabalharam para a Igreja ou para as Cortes. A profissão do músico realmente artista – principalmente de compositor, já teria sido extinta se não fosse a universidade." Segundo Ricciardi, "a atividade de um DJ, por exemplo, nada tem a ver com a música enquanto obra de arte. O DJ não é colega, não é profissional do mesmo ofício que o nosso". Para Ricciardi, "na universidade as artes têm uma contribuição muito grande para dar, não só na criação, mas na pesquisa. A arte não é descrição da história, ela é a própria história".

Perguntado sobre seu hobby predileto, uma vez que sua profissão é o hobby de muitos, surpreende: "Gosto muito de assistir aos jogos do meu time de futebol, o Comercial de Ribeirão Preto, no Estádio Palma Travassos, e sempre em companhia de meu compadre, o também compositor Zé Gustavo Julião. Mesmo na segunda divisão, somos torcedores apaixonados e outro time não temos – fora, é claro, a Seleção Brasileira".


 

 


 
 
 
 
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