Cultura


LITERATURA
Oscar Wilde - do céu ao inferno
Sempre seu, Oscar: Uma biografia epistolar traz pela primeira vez ao público brasileiro as cartas do período mais importante da vida de Oscar Wilde, quando o escritor irlandês saiu da glória do cenário cultural europeu para as celas das prisões

MARIA EUGÊNIA DE MENEZES
Certa vez, Yeats disse a Oscar Wilde: "Invejo os homens que se tornam um mito ainda em vida". Ao que ele lhe respondeu, "creio que um homem deve inventar seu próprio mito". Seguindo à risca suas próprias palavras, Wilde foi a figura mítica de seu tempo. O escritor irlandês entrou para a história como o símbolo do século 19. Encarnação da modernidade, foi o personagem de grandes feitos e tragédias, com quase tudo contido no espaço de uma década. Apenas uma década entre sua ascensão vertiginosa e a queda, para que descesse dos salões londrinos aos porões das prisões. A paixão sem pudores por um menino de pouco mais de vinte anos, Lord Alfred Douglas — o Bosie — levou Wilde aos tribunais, onde foi condenado por homossexualismo. Dois anos de prisão e trabalhos forçados por ter amado um rapaz.

O melhor registro desses dez anos, em que partiu do seu pedestal para o cárcere e a miséria, são as palavras de Wilde. Sempre seu, Oscar: Uma biografia epistolar, livro organizado por Marcello Rollemberg, traz uma seleção das cartas que Oscar Wilde escreveu entre 1890 e 1900. Até então inéditas no Brasil, à exceção da já traduzida e aclamada De Profundis, que escreveu para Douglas da prisão, essas cartas dão voz ao protagonista dessa história para que ele apresente a sua própria versão dos fatos. Missivista compulsivo, essa sua versão é minuciosa; aos amigos com que se correspondeu e que estiveram sempre ao seu lado, ele entregou suas preocupações estéticas e literárias, seu amor dilacerante, sua dor profunda.

O retrato de Dorian Gray foi o passo definitivo em sua carreira de literato. Publicado em 1890, esse seu primeiro e único romance rendeu-lhe fama e o ambicionado reconhecimento. Não que fosse um desconhecido: seu humor sarcástico, seus conceitos estéticos e sua extravagância faziam com que seu nome circulasse pelos teatros e salões literários da Inglaterra e dos EUA, sua peça Vera ou Os Niilistas chegou a ser montada em Nova York, mesmo que sem grande sucesso, Poemas já havia sido publicado na Inglaterra, além de seus contos O Fantasma de Canterville , de 1887 e O Príncipe Feliz, de 1888. Mas foi Dorian Gray a prova incontestável de sua genialidade.

No final da década de 1880, faltava ao esteticismo — corrente que defendia a supremacia da arte sobre a vida — um exemplo. O romance de Wilde preencheu esse vazio, não por seguir cegamente seus preceitos mas justamente por ter mostrado seus perigos, sua complexidade. Wilde já havia rejeitado a idéia da arte pela arte, ainda que o prefácio teime em afirmar o contrário, louvando o que a obra condena. Tratava-se da tragédia e não da celebração do esteticismo.

Ao primeiro passo para o sucesso seguiram-se outros. As primeiras cartas de Sempre seu, Oscar apresentam um Wilde defensor incansável de sua arte. Consciente da própria genialidade, ele questiona as interpretações equivocadas de Dorian Gray, discute cada detalhe de O leque de Lady Windermere, estrondoso sucesso que o transformou no homem mais requisitado de Londres, e se revolta quando Salomé é proibida de ser encenada na Inglaterra, por tratar de um tema bíblico. O que se vê, e do melhor ângulo possível, são as angústias do processo de criação de um artista.

Misturadas a essas cartas, outras, as do amor obsessivo por Bosie. Nessa época, com 35 anos, já casado e pai de dois filhos, Wilde mantinha há algum tempo casos homossexuais, mas nada parecido com o que foi sua paixão devastadora por Alfred Douglas, mais pungente e dramática do que as que concebeu em sua ficção. "Você é a atmosfera de beleza através da qual eu vejo a vida, a encarnação de todas as coisas lindas." Para o seu "queridíssimo menino", o "mais querido entre todos os garotos", o "garoto de cabelos cor de mel" ele jurou um "amor imortal". Começava aí o primeiro ato de sua tragédia.

O ano de 1895 prometia ser de louros e glórias. A importância de ser Prudente, por muitos considerada sua maior peça, e Um marido ideal, brilhavam nos palcos londrinos. Contudo, no dia 28 de fevereiro, um cartão do Marquês de Queensberry, pai de Douglas, chamando-o de sodomita, mudou o rumo das coisas. Douglas nutria pelo pai um enorme ódio, para humilhá-lo e se livrar de suas perseguições, convenceu Wilde a abrir um processo contra o marquês por difamação. Mesmo alertado pelos amigos sobre os enormes riscos que corria, Wilde foi em frente. Não foi difícil para Queensberry virar o jogo, apresentando provas incontestáveis contra ele: suas cartas de amor esquecidas por Bosie em hotéis ou furtadas por michês.

Mais do que a vingança individual de Queensberry, o processo contra o autor de A importância de ser Prudente pode ser visto como o acerto de contas da sociedade vitoriana com aquele que riu de seus costumes, se recusou a viver dentro das normas estabelecidas e desafiou o falso puritanismo.

A sombra que

não o deixa

Nas três prisões pelas quais passou, mesmo enfrentando dificuldades para conseguir papel e tinta, Wilde nunca deixou de escrever, especialmente para Robert Ross. Com esse seu amigo mais fiel e mais tarde seu executor literário trocou inúmeras cartas. Ross era sua forma de contato com o mundo exterior. Resolvia suas questões financeiras, e também as pessoais, intermediando sua relação com Douglas que nunca lhe escreveu enquanto esteve preso. Submetido ao seu silêncio, Wilde passa a analisar a conduta de Bosie, a forma como o submeteu a seu ódio cego pelo pai, como o levou à falência, esbanjando todo o seu dinheiro com caprichos e gastos extravagantes. Sem condições de arcar com as custas do processo que abriu e que o levou ao cárcere, Wilde teve sua falência decretada.Sua situação era de total penúria.

A amargura e a memória, que guardou os detalhes de cada momento com Douglas, atormentaram Wilde até que ele resolvesse gastar três meses de sua vida de prisioneiro, de janeiro a março de 1897, para escrever sua carta mais importante, De Profundis. Espécie de relato autobiográfico dos seus últimos cinco anos, De Profundis é antes de tudo uma extensa e grandiosa carta de amor. Resposta ao silêncio de Douglas, ela extrai sua força do desprezo que o dilacera. Wilde coloca-o como não merecedor do seu afeto, acusa-o por sua ruína ética e artística, culpa-o por sua prisão. " Não foi seu pai o causador da minha prisão. Do princípio ao fim, o responsável sempre foi você." Na descrição que faz da relação dos dois, surge a imagem de um Bosie cruel e mesquinho. "Dei-lhe a minha vida e você a jogou fora para saciar seu ódio, a sua vaidade e a sua cobiça — três da piores, mais degradantes e desprezíveis das paixões humanas. Em menos de três anos você conseguiu arruinar-me completamente, sob todos os pontos de vista." Enquanto se recrimina, Wilde não deixa de revelar uma enorme admiração por sua própria imagem, louva sua arte e a nobreza de seus sentimentos. Tomado pelo amor-próprio, ele reitera insistentemente a culpa de Douglas, e considera a fraqueza como a sua maior falta, punindo-se por não ter sido forte o bastante para romper com ele muito antes. "Você esgota qualquer um", ele lhe escreveu. "Foi o triunfo do menor caráter sobre o maior". Servindo-se de diferentes metáforas para girar sempre em torno dos mesmos pontos de dor, a carta toma a mesma forma de seu sofrimento — circular.

O sofrimento, "a mais sensível de todas as coisas criadas", é o ponto de partida para o encontro do consolo. Uma das partes mais importantes de De Profundis é certamente aquela em que trata da descoberta de Cristo na prisão. Descrito de uma maneira bastante pessoal,com matizes do esteticismo, o Cristo de Oscar Wilde é a união da personalidade e da perfeição, o criador da beleza, o mais supremo dos artistas.

Ao longo da carta, ele renega o ódio, fazendo do texto a libertação de um fardo de amargura. Quando terminou de escrever, Wilde enviou a missiva a Ross, que deveria fazer uma cópia e só depois entregá-la a Douglas. Curiosamente, De Profundis não se chamava De Profundis. Responsável pela publicacão póstuma, Ross alterou o título original In carcere et Vinculis, escolhido por Wilde.

Segundo Rollemberg, " longe de ser um simples desabafo, De Profundis é um livro, é o testamento literário de Wilde, onde estão suas considerações estéticas, onde se coloca por inteiro." O maior mérito de Sempre seu, Oscar talvez seja a forma como lança luzes a essa "carta-livro", contextualizando-a, mostrando suas motivações e especialmente seus desdobramentos.

Sua revolta e ódio contra Douglas chegaram a tal intensidade que reverteram-se em nova atração. Nesse mesmo ano de 1897, Wilde foi posto em liberdade. Na França e na Itália, países que escolheu para seu exílio voluntário, encontrou-se com ele. De Profundis havia regenerado seu amor. Os amigos, por motivos óbvios, foram absolutamente contra a reconciliação. Mesmo consciente dos riscos que corria, Wilde mais uma vez não lhes deu ouvidos. Douglas lhe era uma espécie de condenação. "Meu retorno para Bosie era psicologicamente inevitável", escreveu a Ross."Não consigo viver sem a atmosfera do Amor: tenho de amar e ser amado, seja qual for o preço que eu tiver que pagar por isso." Vivendo às custas dos amigos e de uma pequena pensão da mulher, ele tentou voltar à literatura. Sua última obra, A balada do cárcere de Reading, é um longo poema em que conta a execução de um prisioneiro e fala da angústia da prisão.

Como era de se esperar, quando o pouco dinheiro que tinha acabou, o seu "querido garoto" o abandonou mais uma vez. Bosie esteve profundamente ligado à sua ruína mas, nesse momento, perdê-lo foi perder também toda a motivação para a literatura. " La joie de vivre foi-se e ela, ao lado da força de vontade, é o fundamento da arte."

Hospedada em um hotel barato do Quartier Latin em Paris, restava a sombra do homem que fora um dia. Em seu lugar nascera Sebastian Melmoth, nome que escolheu para substituir o seu, para que pudesse ficar anônimo, em paz.

Tristemente reveladora, a última carta que escreveu foi para cobrar de um amigo uma dívida de 200 libras. Em 1900, depois de contrair um meningite, morreu Oscar Wilde, na mais absoluta miséria. Absolutamente só.