Cultura


MÚSICA
Um brasileiro no ritmo da palavra
O tom nacionalista de Camargo Guarnieri é lembrado pela musicóloga norte-americana Marion Verhaalen em um lançamento da Edusp e Imprensa Oficial

LEILA KIYOMURA MORENO

Sou e quero ser um compositor nacional do meu país. Se cada ser humano tem uma responsabilidade sobre a terra, certamente a do músico será contribuir, na medida de sua capacidade, para o enriquecimento da música universal. – Foi com este tom que Camargo Guarnieri deixou nas suas pautas a história da música brasileira. Uma história em que se destaca como protagonista. E sentia orgulho quando seu nome – sempre elogiado pela crítica – era lembrado junto com o de Mário de Andrade.

São as nuances desta e de outras lembranças que a pianista e musicóloga norte-americana Marion Verhaalen reúne no livro Camargo Guarnieri : expressões de uma vida, lançado no Brasil pela Edusp em parceria com a Imprensa Oficial. A tradução é de Vera Silvia Camargo Guarnieri, esposa do compositor.

Na avaliação de José Maria Neves, doutor em Musicologia pela Universidade de Paris-Sorbonne, que assina o prefácio, embora a obra de Camargo Guarnieri tenha sido motivo de muitas pesquisas e capítulos especiais, faltava uma análise sistemática e exaustiva sobre a sua trajetória. "Este estudo aparece agora, fruto do trabalho longo e apaixonado de Marion Verhaalen", destaca. "Sua origem está na tese de doutorado desta pesquisadora sobre a obra pianística do compositor, defendida em 1971, na Columbia University. Ela conseguiu elaborar uma obra de referência, abrangendo a totalidade da produção do autor."

Neves lembra que, com esta pesquisa, a musicologia brasileira fica mais rica. "Músicos, estudantes de música e amantes de música do Brasil – e também dos Estados Unidos – saberão mais sobre Camargo Guarnieri e sobre uma fase importante da música brasileira."

O que difere Camargo Guarnieri: expressões de uma vida de outras obras sobre o compositor é a delicadeza com que Marion imerge na sua música e, o mais curioso, como consegue entender nuances da nossa cultura que, até para muitos autores brasileiros, passaram despercebidas. Ela consegue traçar todo o panorama do Movimento Modernista, acompanhando cada fase da trajetória de Guarnieri. Também procura contextualizar a sua obra nos diferentes momentos políticos e sociais do País. "Quando estava realizando as suas pesquisas, Marion se hospedava na residência dos Guarnieri, em São Paulo", explica Neves. Foi exatamente este convívio junto de sua família que resultou em um perfil humano. "Poucos estudiosos puderam reunir igual quantidade de informações e seria exagero perdoável, se não correspondesse à verdade estrita, dizer que a autora sabe mais sobre a obra de Guarnieri do que ele próprio."

 

Admiração

recíproca

É uma amizade que nasceu logo nas primeiras notas. Quando Camargo Guarnieri tocou para Mário de Andrade, na manhã de 28 de março de 1928, tanto um quanto outro se identificaram na busca pelas raízes da cultura brasileira. O compositor e pianista sempre fazia questão de lembrar: "Com a delicadeza e cordialidade tão próprias de seu espírito (que muito contribuíram para acalmar meus nervos), Mário nos fez entrar e logo começamos a conversar. Depois de algum tempo, pediu para eu tocar alguma coisa. Ouviu com a maior atenção e interesse. O que posso dizer é que, daquele momento em diante, Mário de Andrade se colocou na defesa de minha obra nascente, me ajudando em tudo o que era possível".

A paixão de Guarnieri pela música foi herdada do pai, Miguel, amante de ópera, pianista, flautista, contrabaixista. E fez questão de lhe dar o nome de seu compositor preferido: Mozart. Só que o filho preferia ser chamado de Camargo Guarnieri para "não ofender o mestre", como ele próprio justificava. "Miguel alugou um pequeno piano e pediu à esposa para dar aulas ao menino", conta Marion. "O teclado do acanhado piano francês logo ficou pequeno demais para Guarnieri e Miguel conseguiu que ele estudasse no piano de um clube situado em frente de sua casa, de onde era possível ouvi-lo. No entanto, passava a maior parte do tempo improvisando. Na verdade, a improvisação foi o início de seu desenvolvimento criativo e teve influência definitiva em sua música, na fluência e espontaneidade que a caracterizam."

Segundo a pesquisadora, essas improvisações geraram a primeira peça escrita por Guarnieri, Sonho de Artista publicada em 1920, pela Casa Mignon, em São Paulo. A valsa ganhou os elogios dos críticos, que ficaram surpresos ao saber que o compositor só tinha 13 anos. Ainda adolescente, começou a a trabalhar como pianista oficial do Cine Teatro Recreio, na avenida Rio Branco. Depois da apresentação, ainda varava a madrugada tocando em um cabaré. Era o filho mais velho e precisava ajudar no sustento da família. Em 1928, tornou-se professor de piano e acompanhamento no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Pouco tempo depois, começou a se destacar como compositor e regente. Em 1935, a pedido de Mário de Andrade, o prefeito de São Paulo, Fábio Prado, cria um Departamento de Cultura com o Coral Paulistano, sob a direção de Guarnieri.

Em meados de 1938, Guarnieri ganha do governo estadual uma bolsa de estudos na Europa. Tem a oportunidade de apresentar suas canções em recitais e dirigir concertos em Paris. Seu nome começa a se projetar internacionalmente.

Guarnieri

e a USP

Apesar de ser reconhecido como um dos músicos mais importantes do Brasil, Guarnieri acalentava um sonho antigo. Queria ter uma orquestra própria. No dia 28 de novembro de 1975, a Universidade de São Paulo funda sua orquestra sinfônica, criada especialmente para o compositor. "Eu queria trabalhar não com subalternos, mas com amigos, como em família", afirmou na época. "Uma orquestra é como um organismo humano, só tem bom desempenho quando age harmoniosamente."

A Orquestra Sinfônica da USP apresentou seu primeiro concerto no dia 21 de fevereiro de 1976. "A década de 1980 encontrou Guarnieri ocupado com seus ensaios diários, que normalmente deixariam um homem mais jovem com pouca energia para compor", lembra a pesquisadora Marion Verhaalen. "Ele sempre levou muito a sério sua profissão de compositor. Andava a pé os dois quarteirões que separavam sua residência de seu estúdio, na rua Pamplona, sempre pronto para trabalhar desde cedo. Esse trabalho englobou a composição, o ensino de muitos jovens, a regência, entre outras responsabilidades." Entre os talentos que passaram por seu estúdio estão Osvaldo Lacerda, Sérgio Vasconcellos Correa, Ailton Escobar, Almeida Prado e Marlos Nobre.

Marion explica que na vida de Guarnieri — faleceu no dia 13 de janeiro de 1993 — não faltaram louvores, nem ataques, mas o compositor procurou aceitar tanto as críticas como os aplausos. "Escrevo música da mesma maneira que respiro. Para mim, compor é uma função vital, uma necessidade", dizia.