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Aulas dramatizadas ou com sons de flauta (abaixo) desenibem os alunos, que antes não ousavam nem argumentar com os
professores

Obrigados a conviver com verdades absolutas, apreciar sua comprovação e a não discuti-las, os alunos do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP acabam tendo relações pouco pessoais com seus pares. As aulas são consideradas “muito pesadas”, contra as quais é preciso encontrar o equilíbrio necessário para a sobrevivência saudável. A perspectiva de formar pessoas pouco sensíveis aos demais humanos, cujo raciocínio exato, matemático, possa trazer problemas no futuro, levou o professor Waldemar Setzer, titular do Departamento de Ciência da Computação, a propor a leitura dramática como matéria opcional do currículo. O curso de teatro vem sendo realizado há dois anos e passará a disciplina regular, uma das obrigatórias fora da área, em 2003. A procura não foi grande no período, mas suficiente para montar duas peças, uma delas apresentada na Casa das Rosas.
“No bacharelado os alunos usam o computador — máquina matemática — e no fundo utilizam raciocínio apenas matemático, embora nem tudo o que se passa no ser humano possa ser assim classificado”, alega Setzer, enfatizando a importância da mudança de comportamento manifestada pelos alunos.
Depois de assistirem às aulas de teatro, resumem: “A gente consegue se expressar melhor, falar em público — antes eu tinha medo, era muito difícil”, explica Seiji Isotani, de 22 anos, do último ano de Matemática. A opinião veio após cerca de um ano de prática teatral e o resultado foi considerado “surpreendente”. Isotani afirma ter melhorado seu desempenho escolar porque “está feliz, menos tenso”. Conta que, antes dessas aulas, “baixava a cabeça quando via pessoas a seu lado”.
Não era diferente com Michel Vale Ferreira, de 25 anos, também do último ano. Ele informa que tinha medo de tirar dúvidas em sala. Seu maior desafio, após a experiência teatral, foi “enfrentar” o professor, provando que ele estava errado.
“Aqui, se entende que o professor sempre fala a verdade e o aluno não tem muito para discutir. Mas eu consegui provar, matematicamente, que estava certo”, orgulha-se e completa: “Se eu tivesse assumido a posição em que me colocou, não teria insistido numa discussão construtiva que acabei ganhando”.
Na opinião de ambos, o professor não costuma considerar os argumentos apresentados: “Se você argumenta e ouve que está errado, em geral se cala”. Michel Vale define-se como “mais humano”, pois passou a lidar com seus sentimentos: “Com o curso, na verdade, a gente fica mais normal”. E, para não fugir totalmente à matemática, Isotani relata: “Estabelecemos uma média entre o centrado e o humano”.
Felizes por alcançar o “equilíbrio”, pretendem, depois de formados, continuar a manter esse tipo de vínculo. “No IME, a maioria das pessoas sequer se cumprimenta — não se olham nos olhos. E, quando se cruzam, apenas acenam com a mão, baixam a cabeça e se vão”, observa Isotani.
A parte sentimental, que não é exercitada, poderá ser afetada por esse tipo de convivência com a escola e a vida. “Apenas o intelecto é desenvolvido. O intelecto, aqui, é formal, simbólico — tudo é cálculo”. O professor Setzer compara com atividades oferecidas por cursos de Física Experimental, em que é possível lidar com “alguma coisa que existe no mundo; aqui não: é tudo conceito, tudo cabeça” Entende que tal envolvimento com o excesso de matemática, o rigor simbólico, formal, teórico, abstrato, intelectual, acaba moldando a maneira de pensar e de encarar o mundo. Tanta aridez prepara homens e mulheres para serem exatos e não precisos. A diferença é que precisão admite margem de erro, exatidão, não.
O quadro despertou a necessidade de levar os alunos a formação mais completa. O próprio Setzer, engenheiro eletrônico, formado pelo Instituto de Tecnologia Aeronáutica (ITA), “forçado pelos pais”, e doutorado em Matemática Aplicada e Computação pelo IME, quando “queria ser artista”, relata: “Tenho a impressão que a sensibilidade artística me permite enxergar formação mais completa para os alunos. É um absurdo ser totalmente matemático, pois o humano não é assim, embora possa ser um pouco.”
Na matemática pura e na aplicada ou no formalismo matemático, tudo é exato. O pensamento está sendo forçado a ser exclusivamente teórico, formal, abstrato e exato (matemático). O ser humano é capaz de fazer isso, prossegue o professor, mas não é o que existe na vida real. “Podemos ter pensamento lógico, nos expressar com clareza, mas não de maneira exata, pois a clareza é passível de erro.”

Nada de festas

Vocês não estudam juntos, não fazem festas nem trocam idéias? — “Sim, sobre matemática. Aqui é muito raro alguém falar de namoradas, mesmo porque poucos namoram ou freqüentam festas. A gente acaba incorporando esse jeito de ser. Se metade fosse feliz e metade triste, tudo bem, dava para misturar. Mas a maioria é apática, então, incorporamos isso”, explica Seiji Isotani.
Apenas na licenciatura existem disciplinas fora da matemática, como pedagogia, na Faculdade de Educação. No IME, é matemática e física o tempo todo, situação que parece exagerada para o professor Setzer. “Os alunos sofrem um massacre durante pelo menos quatro anos; há os que fazem em oito.” Por isso, esforça-se para fazê-los conviver com sua porção humana, através da Leitura Dramática, cuja instrutora é a atriz, dramaturga e diretora teatral Yolanda Gentilezza.
Numa dessas demonstrações, a instrutora e um ator profissional contaram a história da criação do mundo, com interferência dos alunos, em auditório lotado, no final de fevereiro. Posicionados como nos telejornais, os atores leram o divertido noticiário:
— Sentindo a necessidade de se comunicar, o homem inventou o verbo.
— Quando teve a primeira raiva de um vizinho, inventou o adjetivo. E, ao dar topada numa pedra, criou o palavrão. Aí teve uma idéia genial: chamou o local onde morava de pátria e começou a apedrejar todos os que moravam do outro lado.
Vai por aí, com falas que fizeram rir matemáticos — calouros e veteranos.
O professor Setzer, que percebeu a necessidade desses alunos, quer ver a iniciativa estendida a toda a Universidade — sobretudo para cursos de ciências exatas.
Para ele, não será possível passar em branco todas as nossas vivências, por isso preocupa-se: “Tenho muito medo que saiam daqui com o pensamento rígido como a matemática, onde, se você perde um único algarismo numa conta de multiplicar, perderá tudo”. A postura em ser exato, colocando tudo no lugar correto, é fantasiosa, pois “no mundo não existe isso”.
A leitura dramática permite expressar-se e falar em público; colocar a voz alta e firme, com emoção; perceber como o público reage ao que estão apresentando e, quando forem professores, poderão entusiasmar os alunos — “tudo absolutamente essencial para os matemáticos”.
O mesmo se forem gerentes, vendedores ou qualquer outro profissional, onde ser sensível ao impacto com outro ser humano será fundamental. “A finalidade não é ensiná-los a ser atores, mas a usar os sentimentos para enfrentar a vida, pois aqui são muito racionais”, afirma Yolanda Gentilezza. Ela os faz reconhecer raiva, inveja, amor, piedade e outras manifestações humanas, sem que precisem temê-las. Poderão vivê-las através de personagens, pois “fica mais fácil”. Lembra a timidez dos que ali iniciaram o curso, cuja voz não conseguiam pôr para fora. “Olhavam para o chão, trancados em si mesmos. Com a leitura — aprenderam a entender a palavra — vão se soltando, exibindo criatividade encantadora, rapidamente”, diz ela, para quem é preciso “temperar” o rigor (necessário) das ciências exatas com a criatividade.


História dramatiza

No Departamento de História, a idéia de Setzer foi adotada nos cursos de pós-graduação da professora Anita Novinsky. “Conversando com o Waldemar, resolvi introduzir a leitura dramática nos cursos de História”, diz ela. São os primeiros cursos em que a leitura se faz sobre a própria matéria, e nos quais os alunos representam figuras da História da Inquisição no Brasil. Entusiasmada com a inovação — “os alunos sabem tudo de Inquisição, passam a viver a aula” —, a professora resolveu introduzir a leitura dramática também nas aulas de graduação, às quais pretende retornar. “Imagine vivenciar Nero, César, a democracia de Atenas!”
No lançamento de seu oitavo livro, Prisioneiros do Brasil, em 5 de fevereiro, na Associação A Hebraica, Anita Novinsky contou com grupo de 16 alunos que representaram a situação vivida por 1.076 prisioneiros brasileiros condenados pela Inquisição, durante o período colonial. O trabalho foi realizado a partir de sinopse sobre o assunto de que trata o livro, preparada pela professora e dramatizada por Yolanda Gentilezza.
“É a informação mais completa que existe sobre o assunto, do Brasil da época”, afirma a pesquisadora.
O personagem principal, Antonio José da Silva, foi representado por um ator profissional. Retirados de suas casas e jogados nos cárceres portugueses, esses brasileiros foram queimados ou reduzidos à miséria. A obra traz nomes, número de processos, local de nascimento, profissão, dados estatísticos. “A maioria dos crimes era a prática, em segredo, do judaísmo, por cristãos novos”, informa. Eram acusados de judaizar, ou seja, acender velas às sextas-feiras, não comer pão no dia da Páscoa e não comer carne de porco.
Outros “crimes”, como proposição herética, blasfêmias, feitiçarias, sodomias e homossexualismo foram detectados. Mas a maior parte era judaizante, segundo levantamento feito nos séculos 16, 17 e 18.
“É bastante ingênuo afirmar que no Brasil não existe racismo. No período colonial, o País foi dirigido e governado por racistas e o povo reagia à discriminação — não colaborava com o poder quando requisitado a denunciar seus pares, a não ser fortemente pressionado.” Para a professora, é importante que os alunos representem situações como essas, para que percebam a importância de não tê-las de volta. “Se as conhecerem, terão medo de apoiar certos regimes fascistas e totalitários.”
Na Inquisição vivia-se regime totalitário, racista, anti-democrático, absolutista do qual foi vítima Antonio José da Silva, hoje considerado o maior poeta de língua portuguesa do século 18. Sua trajetória é descrita desde a prisão aos 21 anos, quando foi torturado — era cristão novo, de origem judaica. “Ao ser libertado, não pôde assinar a saída porque tinha as mãos deformadas”, lembra a professora. Ainda assim, voltou a Coimbra e conseguiu se formar.
Segundo Anita Novinsky, a leitura dramática de todo o processo mostrou a vida de um prisioneiro acusado injustamente, que não foi queimado por seus crimes, mas por suas idéias liberais e avançadas — por toda a sua obra.
Aos 32 anos, foi novamente preso, em Portugal (Lisboa), denunciado por uma escrava. Pessoas denunciavam tudo o que queriam pois a Inquisição aceitava qualquer denúncia, até mesmo carta anônima motivada por rivalidades. Depois disso, o denunciante era também condenado a cárcere e hábito penitencial perpétuo — roupa que o distinguia dos demais — e obrigatoriedade de comparecer ao poder superior periodicamente.
A Inquisição durou até 1821 e por ela o papa João Paulo II pediu perdão: “Só a vítima pode perdoar”, alega a professora. Antonio José escrevia peças de teatro, nas quais debochava da nobreza de Portugal. “Com suas sátiras, introduziu o teatro de marionetes naquele país que, até então, só existia na Itália.” O autor fazia muito sucesso. Mesmo na noite em que foi queimado, o povo pôde assistir às suas peças e divertir-se com elas. No rol de obras fantásticas, incluem-se modinhas, apresentadas durante o lançamento do livro.
Apoiada por dez pesquisadores doutorandos e mestrandos do departamento, a professora pretende editar a série “Os Grandes Processos da História”, que serão publicados na íntegra. Em 3 de abril, ela fará conferência sobre o assunto no Collège de France e, no mesmo mês, em Lisboa. Fora de Portugal, o maior arquivo sobre a Inquisição no Brasil está no Departamento de História da USP.


 




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