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Jornal de Letras (JL), de Lisboa, publicou, na década de 80, uma longa entrevista com Ilya Prigogine, em que o Nobel de Química (1977) abordava vários temas afetos à ciência e à epistemologia. Em 1991, tive o privilégio de conversar pessoalmente com o consagrado cientista em um congresso internacional em Buenos Aires, onde apresentou resultados de laboratório e reflexões de uma equipe interdisciplinar que liderava na Bélgica. Na oportunidade, pude constatar, tanto na conferência magna quanto no contato direto, a simplicidade do sábio e a forma com que faz a transposição da experiência científica para uma visão de mundo aplicável ao cotidiano do comum dos mortais.
Na entrevista ao JL, Prigogine sugeria, a certa altura, que a compreensão da geologia no que se refere às camadas da crosta terrestre, e o fato de elas estarem em deslizamento, oferecia um entendimento mais refinado para os processos sociais. Assim, “camadas” histórico-culturais deslizam em convivência, sem que as ancestrais sejam superadas pelas atuais. Há a tendência de interpretar os fatos sociais como se fossem passíveis de enquadramento numa estrita linearidade evolucionista – a metáfora da escada do progresso. Ao propor a concepção geológica para as ciências humanas, o pensador nos ajuda a encarar de outra maneira processos históricos como, por exemplo, o Jornalismo.
Ao que tudo indica, quando o Jornalismo se configura como fenômeno social, nos alvores da Modernidade e ao longo dos cinco séculos posteriores, convivem três camadas de produção simbólica nitidamente presentes na comunicação social contemporânea. A hipótese que se levanta é de que as narrativas da atualidade, em todos os tempos, espelham necessidades humanas recorrentes na História. As três variáveis em questão compõem um mosaico expressivo: primeiro, a assinatura individual dos significados atribuídos ao mundo por determinado autor; segundo, o anonimato dos desejos e das carências de informação factual das comunidades humanas; e terceiro, a grande narrativa que cruza distintas experiências, culturas e idéias em conflito ou debate.
Os primeiros jornais já denotam a presença das camadas simbólicas – consagram-se, na história do Jornalismo, peças de autoria individual, desenvolve-se a prestação de serviços informativos e amplia-se o trabalho de campo, logo denominado de reportagem. Quem observa um periódico do século 19, aí encontra a composição, nunca harmoniosa, diga-se de passagem, do Jornalismo de Tribuna (opiniões), dos Serviços Informativos (noticiário) e do Jornalismo Interpretativo (reportagem). Sem demérito para qualquer uma dessas tendências, percebe-se a historicidade recorrente dos três campos de significação, não propriamente como categorias ou gêneros jornalísticos, mas como camadas culturais em deslizamento.
Nos espaços de opinião, comparece sempre a força simbólica do indivíduo ou do grupo de poder que pretende defender suas posições ou persuadir o interlocutor de que seus argumentos são os legítimos. E isso ocorre no universo ideológico, no palanque político ou no púlpito dogmático. Mas também se manifesta no domínio sofisticado do conhecimento científico. No extremo oposto da arena conceitual, está a necessidade factual, a dos serviços informativos voltados para a vivência contemporânea. Não há como menosprezar a circulação noticiosa diante dos espaços opinativos. E nem só de opiniões e notícias imediatas, dispersas, vive o cidadão. Tornam-se indispensáveis produtores culturais que viajem em todos os espaços (repórteres), que costurem nexos e que armem a conflituosa textura dos significados das coisas. Esses, os comunicadores, criam uma mediação autoral que, quando se expressam ética, técnica e esteticamente, ganham os registros históricos e a veneração do imaginário coletivo.
Em regimes de censura ou em culturas autoritárias – outra recorrência histórica – vive-se a resistência cultural, a luta contra o cerceamento ou a atrofia das três camadas da grande narrativa que é o Jornalismo. Nem os serviços informativos fluem das fontes para os usuários, nem a reportagem de fôlego autoral na interpretação de fatos, comportamentos e idéias encontra meios de circulação, nem tampouco a tribuna de opinião se pluraliza nas diferenças e nas discordâncias.A arte de tecer o presente, desafio constante para o Jornalismo, envolve um delicado equilíbrio entre a consistência e a paraconsistência (para lembrar Newton da Costa). Nos labirintos das contradições e das controvérsias, o jornalista, fiel à missão de mediador social, muitas vezes opta pela volatilidade das interrogações, deixando de lado a sólida trilha das afirmações consagradas. Eis aí um risco que a profissão o obriga a correr.
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