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Professor Lauand: Menos técnicos, mais seres humanos

O mundo contemporâneo provoca o isolamento das pessoas, mesmo quando o diálogo mostra-se como única saída possível. O problema é tão fundamental que o professor Jean Lauand, titular da Faculdade de Educação da USP, enfatiza: “A conversa salva um país”. Segundo ele, “a grande força de uma nação está no ato de conversar, nos causos contados”. O contrário disso é a desumanização, o desencontro. O professor diz ter presenciado, recentemente, esta prática na Espanha, onde a conversa, o bate-papo, é um hábito saudável e cada vez mais praticado.
Coordenador do “Seminário Internacional II - Cristianismo — Filosofia, Educação e Arte”, que se realiza de 16 a 19 de abril na Faculdade de Educação da USP, Lauand vai propor aos alunos da graduação e aos interessados em geral o diálogo com a população excluída. O seminário, para o qual estão inscritas cerca de 450 pessoas, é parte da disciplina História da Educação Medieval, que aborda grandes pensadores cristãos desse período e do começo da era moderna, como São Tomás de Aquino e São Francisco de Assis. A temática do encontro é cristã e coincide com a parceria com o Núcleo Fé e Cultura da PUC e com a Diocese paulistana que, este ano, divulga a caridade.
“Caridade é um conceito muito distorcido, às vezes vinculado ao assistencialismo barato e não a compromisso, entrega e doação”, declara Lauand. “A justiça sem misericórdia é crueldade, mas a misericórdia sem justiça é dissolução. O Brasil é um país que, tradicionalmente, pende mais para a misericórdia do que para a justiça.”
Estão convidados para o encontro acadêmicos que trabalham com presidiários, homens de rua, psicóticos e prostitutas, que darão depoimentos, na tentativa de aproximar diferentes situações de vida. “A idéia é exatamente trazer a realidade para a Universidade, pois o que mais assusta é o espaço vazio que se abre entre ambas. A realidade corre por seus canais e na academia a teorização muitas vezes não se fundamenta nela”, acredita Lauand.
“Conversar é o ato de as pessoas verterem-se nas outras”, ensina, processo importante, cada dia mais raro. Se cada um se isolar em sua individualidade, sem querer saber quem é o vizinho, pois nele poderá estar um possível agressor, haverá muito a lamentar. “É claro que essa prevenção não é infundada, em razão da falta de segurança, mas, se passamos a ver no outro um inimigo em potencial, estaremos perdendo muito de nossas referências.”
A respeito de conversar, o professor Lauand conta que em latim existe a voz média, além da ativa e da passiva. “A voz média do latim está entre ambas, e dela sou protagonista. Da voz média são verbos como nascer, um ato que não é apenas passivo ou ativo.”
No latim, os verbos de voz média são chamados “depoentes”, como falar. Quer dizer que, falando a alguém, fala-se a si mesmo. “Só falo comigo se falar com alguém, ainda que esse alguém esteja em silêncio: isso não impedirá que idéias me surjam, pois as estou compartilhando.”
O professor exemplifica com o fato de dar aulas numa sala silenciosa. “Estarei falando também a mim mesmo e, talvez, até descubra algo que não descobriria caso não estivesse falando a respeito com meus alunos”, diz ele, acrescentando: “Apenas atinjo a mim se agir com o outro e, se não puder contar com ele para falar, me perco”. Cita Ortega y Gasset, pensador espanhol contemporâneo, para explicar o fato de o homem não estar desvinculado de sua realidade, mesmo que queira: “Yo soy yo y mi circunstancia; y sí no la salvo a ella no mí salvo yo” (eu sou eu e as circunstâncias que me cercam; se não as soluciono, não resolvo a mim). “Não posso dizer que os problemas sociais não me dizem respeito e, sim, que com eles estou envolvido, pois são as circunstâncias que me cercam.”
Vítimas do isolamento imposto pelo seu modo de vida, as pessoas terão de esperar, da universidade, a reversão desse quadro. Segundo Jean Lauand, a universidade deve comprometer-se em abrir discussões sobre problemas sociais e para quem protagoniza esses problemas.
Estudar, em latim, significa “amar”. A busca “amorosa” devia dar-se na universidade, infelizmente, segundo o professor, hoje um centro de capacitação técnica, não mais o local onde se discute a totalidade real. “É como frustrar o projeto original, a partir do qual surgiu, como grande inspiração de Platão, muitos séculos depois dele.” Nascida no século 12, a universidade tinha a vocação de definir o espírito humano com a conexão global do humano com o divino, expressando a abertura para a totalidade de que fala Platão em A República.
Promovendo reflexões, a instituição nada mais estará fazendo do que abraçar sua vocação de reunir muitas pessoas e atender ao indivíduo. “Deverá estar aberta a toda a realidade, não apenas para mostrá-la, mas para, através dela, promover o encontro e a reflexão serena e suprapartidária.”

Dois módulos

Entre os acadêmicos que estarão apresentando trabalhos inclui-se o professor Luiz Barros, que se assume como psicótico e adquiriu o título de doutor após 17 anos de esforços ininterruptos. Responsável pela criação de vários grupos de auto-ajuda, ele dirige alguns deles e orienta seus membros. “Estabelece-se clima de confiança, a partir do grande princípio do psicótico que é o de aceitar a própria doença.” Ensinados a conviver com o mal, passam a identificá-lo e administrá-lo, além de ter os familiares também tratados para poderem melhor conviver.
A professora Cristina Castilho trabalha com presidiários e prostitutas junto à Pastoral Carcerária e algumas dessas pessoas darão depoimentos durante o encontro. A abertura estará a cargo do cardeal arcebispo de São Paulo, D. Claudio Hummes, que falará sobre “Ética e Solidariedade: o verdadeiro conceito da caridade cristã”. Em sua palestra, o professor Lauand discorrerá sobre os fundamentos da Ética Clássica, citando S. Tomás de Aquino. O professor Pedro Garcez Ghirardi, um dos poucos acadêmicos brasileiros capazes de ler S. Francisco e o Cântico das Criaturas, escrito em italiano de 1200, fará palestra no dia 17. “São Francisco foi o primeiro a escrever o vernáculo em italiano; daí surgiu a literatura em língua vernácula, cem anos antes de Dante”, explica o coordenador.
Não há motivos para saudosismo, pois sempre houve gente boa e gente ruim. Mas os antigos, ao menos, tinham claro o que era bem e mal. Na época de São Tomás de Aquino, conta Lauand, também havia barbaridades, algumas já superadas, outras não havia — foram inventadas. Porém, o lexicon era muito rico. A percepção da realidade era, por exemplo, o dever de divertir-se com o bom senso de não ferir ninguém. Quando ocorria o contrário, havia um nome para isso, irrisor, que quer dizer ferir. “O nível de detalhe do mapeamento do bem e do mal se traduz numa realidade viva. Hoje não temos como expressar isso, porque as palavras desapareceram, as línguas modernas as esqueceram. Os antigos já diziam que o homem é um ser que esquece.”
Todo o esforço representado pelo pensamento de Aristóteles e Platão, que culminou com o mapeamento da alma humana, se perdeu e deu lugar a programas de televisão populares como Xuxa e Angélica. “Não se trata de descobrir coisas novas, mas de preservar o patrimônio do pensamento ocidental, que sempre foi nosso”, esclarece.
Experiências desenvolvidas pelos integrantes da “Toca de Assis”, confraria fundada há cerca de oito anos, serão conhecidas a partir de palestras do Irmão Alegria. Com a finalidade de tirar os excluídos das ruas, Irmão Alegria e outros devotos de São Francisco praticam o franciscanismo radical. Segundo o coordenador do encontro, este movimento vem crescendo muito, principalmente entre jovens.
Trata-se de reação ao individualismo, entende o professor, para quem a dignidade com que os “irmãos” tratam os mendigos é “impressionante”. “Os brasileiros não têm mais referenciais comuns, religiosos, literários, como os grandes clássicos, nem históricos. Nossa história e literatura não são estudadas — lê-se pouco na universidade — nem temos um livro sagrado capaz de integrar toda a população”, lamenta Lauand. Em troca, prossegue o professor, “temos como referencial a novela das oito, o futebol e o carnaval — todos em decadência — e o dia em que não mais os tivermos será o caos”.
O principal continuador da obra de Ortega y Gasset, o pensador espanhol Julián Marías, diz: “Tenemos que saber a que atenerse” (devemos saber a que nos devemos ligar). Para o coordenador do encontro na USP, a distinção de valores entre o bem e o mal não está clara para os brasileiros, pela falta de referencial histórico e religioso, resumindo-se em enorme problema de identidade.
O aluno, que é o produto dessa sociedade, vem lotando o auditório para saber mais a respeito do assunto. Tal comportamento leva o professor a entender que poderia promover mais desses encontros ao longo do ano. Reforça, assim, a sua percepção de que a universidade não deve apenas formar profissionais capacitados, mas seres humanos que pensam a realidade como um todo.

 




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