NESTA EDIÇÃO

 

No ambulatório paciente e esposa trabalham o equilíbrio

 

Criança recebe incentivo motor das estagiárias de Teoria Ocupacional



 

Comunidade participa de atividades com deficientes

 

Atendimento domiciliar para reintegrar


Sapopemba é um dos bairros carentes onde o Qualis implantou o programa de atendimento a famílias, em casa

R
uas estreitas, portas pequenas e baixas, buracos, ladeira, descida acentuada, escadarias, sujeira. São esses e muitos outros obstáculos que dificultam o acesso de centenas de pessoas deficientes, moradoras de bairros carentes, a um tratamento adequado.
Foi pensando nisso que Eucenir Fredini Rocha, professora do Departamento de Fonoaudiologia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da USP, elaborou o Programa de Atenção à Saúde da Pessoa Portadora de Deficiência e Reabilitação, que está sendo implantado pelo Qualis/PSF — Qualidade Integral em Saúde/ Programa da Saúde da Família, em duas regiões da cidade de São Paulo, na zona sudeste (Sapopemba) e zona leste, Casa de Saúde Santa Marcelina.
A idéia do programa é oferecer um atendimento diferenciado do tradicional, ou seja, a equipe multidisciplinar dirige-se até o paciente em seu domicílio, sendo que o tradicional é feito pelas grandes instituições, que geralmente se encontram no centro da cidade, e é o deficiente quem tem de ir até o local para receber o tratamento. “O grande mérito do PSF é que a equipe descobre as pessoas que estão completamente carentes de qualquer tipo de atenção à saúde. É o PSF quem vai até o deficiente”, esclarece Eucenir.
Como o PSF prevê uma equipe de saúde da família composta de um médico (clínico-geral), enfermeira, auxiliar de enfermagem e seis agentes comunitários que trabalham numa determinada região, a professora Eucenir vislumbrou ser esse um ponto de partida para a implantação de atendimento a deficientes carentes. Além das famílias serem cadastradas e receberem atendimento dessa equipe nas unidades, são mensalmente visitadas na residência e acompanhadas em todos os aspectos de sua saúde.
Atualmente o Ministério da Saúde está implantando o Programa da Saúde da Família (PSF) em todo o País. Algumas unidades do Qualis/PSF, na cidade de São Paulo, possuem junto com a equipe de família básica atendimento com neurologistas, obstetras, ginecologistas e vários outros especialistas que dão retaguarda às equipes de família. Há também os programas de Saúde Bucal, Saúde Mental e da Saúde da Pessoa Deficiente e Reabilitação.

Formiguinhas em construção

Tanto a equipe do Qualis como a da USP, que dá consultoria e coordena os estagiários, trabalham em conjunto feito formiguinhas na construção de um atendimento mais humanizado, menos burocratizado e com ações práticas de resultados altamente positivos. “Nunca houve nenhum tipo de atendimento organizado para a pessoa deficiente no PSF. Esta experiência é pioneira”, explica Eucenir.
As instituições tradicionais, como AACD e Apae, normalmente fazem um atendimento segmentado por patologias e nem sempre o paciente tem uma única patologia. É exatamente nesse ponto que o Programa da Saúde da Família busca se diferenciar.
Ele é desenvolvido na região sudeste, na unidade da Fundação Zerbini e na região leste, na Casa de Saúde Santa Marcelina, desde outubro de 2000. Foi adotado um modelo de equipe interdisciplinar, na qual dois técnicos de reabilitação em Fonoaudiologia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional são responsáveis por, em média, oito equipes de família. Cada região abrangida pelo projeto tem um ambulatório em reabilitação, sediado em uma Unidade de Saúde Qualis, referência dos casos mais complexos.
São 29 técnicos que realizam atividades domiciliares com os usuários, que possuem grandes dificuldades de acesso a serviço de saúde por meios próprios. Alguns dias são dedicados ao atendimento no ambulatório.
A equipe de reabilitação é referência para 39 equipes de saúde da família na região sudeste e 89 na região leste, totalizando 128. “São elas que encaminham as famílias com problemas de deficiência para a nossa equipe. Temos 134.600 famílias envolvidas no projeto. De dezembro de 2000 a outubro 2001 foram atendidas 1.586 pessoas deficientes ou incapacitadas na zona leste e 864 na sudeste”, acrescenta Márcia Regina Kretzer, coordenadora regional Qualis sudeste.
A zona sudeste tem 10 unidades de saúde e a leste, 22. “Nessas 10 unidades”, exemplifica Eucenir, “o técnico vai duas vezes por semana prestar atendimento, que pode ser individual ou em grupo, dentro da unidade ou na própria comunidade — na igreja, associação de moradores, centro esportivo. O que estiver disponível no bairro”, acrescenta.
Muitos atendimentos se dão no próprio domicílio para pessoas restritas a uma cama, com deficiências graves ou agudas, que não têm condições de se locomover.
A professora deixa claro que o atendimento domiciliar só ocorre nos casos crônicos. Mesmo assim a meta é tirar as pessoas deficientes de dentro de casa e facilitar a sua inclusão e inserção na comunidade. “Estamos trabalhando no desmonte da exclusão social desses indivíduos. Encontramos, na favela, deficientes vivendo em condições subumanas, que muitas vezes o próprio vizinho desconhece”, esclarece.
Conseguir a adesão da família para que o paciente seja atendido na unidade de saúde é mais uma das metas do programa e o primeiro passo para a inserção em algumas atividades da comunidade, como caminhada, recreação, artesanato, capoeira, dança do ventre. “Temos dificuldade em fazer com que a família aceite o atendimento fora de casa, pois para ela é mais fácil que se faça no domicílio, visto que demanda uma série de obstáculos a serem enfrentados”, explica Márcia.

Saúde integral

Outro fator importante do programa, segundo Eucenir, é o fato da ação envolver, além da reabilitação, a prevenção. “Nas visitas às famílias, muitas vezes encontramos outros problemas de saúde que não dizem respeito só a deficiência, por exemplo, ginecológico ou cardiológico, com isso estamos prestando uma atenção à saúde integral do indivíduo e sua família”, esclarece.
A preocupação com a formação do profissional é outro aspecto, já que muitos deles ainda têm uma visão assistencialista, de piedade. “Às vezes”, afirma Eucenir, “o profissional se sente constrangido em atender um deficiente, tem medo e até mesmo receio. Não foi preparado, em seus estudos universitários, para essa abordagem mais direta, na própria residência do paciente, onde se encontram outros problemas além da deficiência, como a miséria, a sujeira, falta de infra-estrutura”.
A partir do programa, o profissional vem recebendo uma formação mais global da deficiência. Dessa forma ele agrega ao seu conhecimento diversas práticas de atuação nunca antes trabalhadas. Por exemplo, a equipe de família (médicos, enfermeiros, agentes comunitários), por estar trabalhando em conjunto com a equipe de reabilitação, aprende diversas práticas de reabilitação básica, que passam a ser utilizadas sem a necessidade de um técnico especializado.
Um modelo assistencial em reabilitação baseado numa prática não assistencialista, junto à comunidade, partiu da concepção da professora Eucenir Fredini Rocha. Desde suas atividades de graduação, mestrado e doutorado, ela vem estudando e pesquisando linhas de reabilitação que não seja especializada, fragmentada, mas sim global e multidisciplinar. A reabilitação no Programa da Saúde da Família foi concebida por ela, que também dá consultoria às equipes técnicas, estágio supervisionado para os alunos de graduação em Terapia Ocupacional. Também desenvolve um estudo de prevalência de deficiências, incapacidades e desvantagem na população abrangida pelo projeto.
As equipes de família, junto com os profissionais da área de saúde do deficiente, passaram por atividades de sensibilização e capacitação a partir de técnicas psicopedagógicas, psicodramáticas, teatro de bonecos e pequenos debates, com o objetivo de aproximar as pessoas em torno do tema e criar vínculos entre os participantes.

Quando o paciente colabora

Uma outra fase do projeto está sendo direcionada para o estudo da prevalência de pessoas com deficiências, incapacitadas e com desvantagens, das regiões sudeste e leste de São Paulo, abrangidas pelo PSF/Qualis, sob a coordenação da Secretaria de Saúde do Estado e do Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da USP. “A intenção é detectar essa população atendida pelas equipes de saúde da família e da saúde da pessoa deficiente a fim de organizar uma melhor intervenção. Não temos na literatura médica dados sobre essa população. São poucos os estudos acerca da prevalência da deficiência em nossas cidades”, descreve Eucenir.
O estudo é censitário. O agente comunitário detecta os suspeitos através de um protocolo específico, em seguida, esse paciente é encaminhado para a equipe de reabilitação que avalia a suspeita e classifica a deficiência ou incapacidade. A intervenção reabilitacional é estabelecida segundo necessidades e prioridades de cada indivíduo.
Com os dados levantados, será possível para a equipe do PSF/Qualis concluir o diagnóstico da situação de atenção à saúde e reabilitação da população, planejar com maior propriedade as intervenções e determinar as necessidades de recursos humanos, materiais e tecnológicos para as diferentes ações.
O PSF/Qualis também recebe a atuação de estagiárias do curso de Terapia Ocupacional da USP. Sob a supervisão da terapeuta ocupacional Priscila Narimoto Shimizu, seis estagiários, por semestre, recebem orientação e aplicam os conceitos teóricos à prática terapêutica. “Queremos também consolidar a formação do aluno em sintonia com as novas propostas de atenção à pessoa deficiente e reabilitação dentro da saúde pública e, mais particularmente, no Programa da Saúde da Família”, afirma.
Priscila, além de considerar essa experiência para o estagiário um grande crescimento profissional, também acredita ser uma chance do paciente deficiente de mudar sua realidade pessoal.
“O senhor Hélio”, exemplifica a terapeuta ocupacional, “de 50 anos de idade, teve AVC — acidente vascular cerebral. Não saía de casa e ficava o tempo todo na cama, esperando que os outros fizessem as coisas para ele. Depois da visita da equipe de família, Hélio está há um mês recebendo tratamento no PSF/Qualis. Hoje ele já anda sem ajuda do andador e está aprendendo a subir escadas novamente. Sem contar que a relação com a família mudou. Para quem não tomava banho, não fazia a barba, não trocava de roupa, já é uma grande conquista”.

 




ir para o topo da página


O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]