NESTA EDIÇÃO

 

A rua Tabatinguera, da pintora Bertha Worms, baseada na foto de Militão

 

Avenida da Luz, tela de Giuseppe Perissinotto, um dos artistas pouco lembrados

 

Caminho na Roça, tela de Oscar Pereira da Silva, de 1938

 

Dia de Sol: cena do cotidiano de Lopes de Leão

 

Torquato Bassi e Almeida Júnior: cores vivas em suas paisagens

 

Clodomiro Amazonas era conhecido como o pintor das árvores coloridas






A
ntes do Modernismo, nossa cidade também vibrava sob a emoção, o sonho e a criatividade dos artistas. Fluía e crescia em todos os tons nas aquarelas de Carlos Eckman, nos óleos sobre tela de Benedito Calixto, nas paisagens de Oscar Pereira da Silva. É exatamente sobre esse tempo que Ruth Sprung Tarasantchi dedicou sua tese de doutorado defendida na Escola de Comunicações e Artes. Em uma edição muito especial, a Edusp e Imprensa Oficial apresentam esta pesquisa resgatando um painel curioso da criação artística do século 19. Pintores Paisagistas - São Paulo 1890 a 1920 mostra uma fase importante, porém pouco lembrada, do desenvolvimento da arte brasileira.
Com muito cuidado, Ruth documenta a paisagem paulista através das telas. Consegue esboçar o panorama artístico e, ao mesmo tempo, conta a história e o desenvolvimento da cidade com uma seqüência curiosa de paisagens. “Pouco se falava em arte em São Paulo no final do século 19”, lembra Ruth. “Quando aparecia alguma notícia nos jornais, ficava espremida entre crimes, desastres, pessoas desaparecidas, política. Que não era uma cidade muito amante das coisas de arte podemos ver pela notícia que saiu no Diário Popular em 1890. Informava que o fotógrafo Haenen estava com uns quadros encalhados e se viu obrigado a fazer uma remarcação.”
Ruth explica que, naquela época, o motivo da maioria dos quadros era o retrato a crayon, em geral cópia de fotos, e os artistas, quando não estrangeiros, eram professores de escola normal ou simples amadores. “Os artistas que expunham regularmente na última década do século 19 eram Almeida Júnior, Pedro Alexandrino, Benedito Calixto, a francesa Bertha Worms que tinha fixado residência na cidade e Oscar Pereira da Silva que, na volta de seus estudos na Europa, abriu seu ateliê na capital.”
Logo nas primeiras páginas, Ruth vai integrando o leitor em São Paulo. De forma didática, mostra a evolução da cidade e, conseqüentemente, da arte. “Nos primeiros anos do século 20, São Paulo tinha 240 mil habitantes. Grande parte formada por fazendeiros, caipiras, ex-escravos e imigrantes, em sua maioria, operários artesãos e profissionais liberais”, explica. “A cidade estava evoluindo. Foi construída a Estação da Luz, uma réplica da Central de Sydney, Austrália, sendo importados até os tijolos. Já tínhamos a Escola Politécnica e a Escola Normal Caetano de Campos, ambas projetadas por Ramos de Azevedo.”
A pesquisadora fala também dos espaços que impulsionaram a arte como o Liceu de Artes e Ofícios, fundado em 1882, que tinha como professores, artesãos italianos como o escultor Amadeo Zani, o arquiteto Domiciano Rossi, o pintor Enrico Vio e alguns pintores brasileiros como Pedro Alexandrino e Oscar Pereira da Silva. “Havia cursos de serralheria, ebanisteria, modelação, fundição de metais, entre outros. O diretor Ramos de Azevedo, a partir de 1895, incentivou os artistas a terem ateliê no liceu.”
Na época, os pontos de encontro para troca de idéias na cidade eram poucos. “Em geral, discutia-se nos cafés, nas redações de jornais e de revistas, onde muitas vezes os artistas colocavam seus quadros. Como não havia galerias ou salões de arte, os únicos eventos do setor eram as exposições individuais, sempre em locais improvisados. Expunham em São Paulo os pintores da terra, sendo sempre preferidos os cariocas ou os artistas viajantes, considerados superiores aos nossos.”
Ruth resgata as primeiras mostras importantes desde a Exposição de Belas Artes Industriais de 1902, montada no Largo do Rosário com 406 trabalhos. Cita, entre outras, a 1ª Exposição Brasileira de Belas Artes de São Paulo (1911-1912), no Liceu de Artes e Ofícios. O roteiro vai traçando o ambiente artístico e os espaços que foram sendo abertos como a Pinacoteca do Estado, fundada em 1905.


Paulo do Valle Júnior: paisagens com tons líricos

Paisagem em tons vivos


Os pintores da virada do século 19 para 20 têm, na pesquisa de Ruth, uma atenção especial. Ela fez questão de detalhar a sua história e sua arte sem considerações críticas, mas atenta ao perfil humano, ao caminho que cada um deles trilhou. “Para entendermos a pintura da paisagem nas primeiras décadas do século 20, temos de lembrar a influência que nossos artistas receberam dos pintores realistas, do tardo impressionismo francês e também da escola italiana de paisagem, todos eles preocupados com a luz, a hora do dia e a estação do ano”, considera. “Assim, pintaram eles paisagem rural, outros, em menor número, a urbana e praias do litoral paulista. Como muitos dos italianos aqui radicados, lecionavam pintura. Foram eles que deram as bases para os principiantes que, mais tarde, se especializaram na França e na Itália.”
Ruth esclarece que os pintores mais consagrados da época utilizavam um registro realista, preocupados em reproduzir o que viam. Agora, os da segunda geração aboliram, quase todos, o contorno. Usaram mais a mancha e empregaram uma pasta densa e espatulada. “Os quadros em grande parte foram executados ao ar livre, transparecendo espontaneidade, pois o artista, diante da natureza, fica subjugado por ela. Como os efeitos provocados pela incidência da luz mudam rápido, em geral a tinta era preparada, tanto o tom certo como a cor na paleta, que depois o artista aplicava diretamente na tela sem titubear.”
Até a década de 1930, e mesmo depois, os pintores paisagistas, segundo confirma a pesquisadora, tinham seu lugar na sociedade. “Eram sustentados pela sociedade burguesa paulista e reconhecidos pelas autoridades oficiais que prestigiavam a arte tradicional. Sempre havia compradores que escolhiam, para enfeitar suas casas, pinturas com as quais estavam acostumados e que entendiam facilmente.”


A meta é resgatar a história da arte

Com a pesquisa Pintores Paisagistas - São Paulo 1890 a 1920 , Ruth Sprung Tarasantchi revela um tempo precioso na história da arte brasileira. “Nas últimas décadas, os estudiosos de arte se interessaram pelo Modernismo e suas inovações, porém ninguém se preocupou em conhecer o substrato do qual ele nasceu, nem contra o que ele se insurgiu”, esclarece. “É justamente nesse período que grande número de pintores paulistas viveu e produziu em São Paulo, mas hoje estão ofuscados pelo brilho dos cariocas, dos estrangeiros e dos modernistas, quando não esquecidos e relegados a plano secundário. Temos de reavaliar o trabalho desses pintores e colocá-los no lugar que merecem.”
Com esta proposta, Ruth conseguiu a proeza de um levantamento minucioso. “Os que iniciaram a produção nesse período foram seguidos até o fim de suas carreiras. Maior ênfase foi dada aos que nos pareceram mais relevantes, ou de quem tivemos a possibilidade de encontrar exemplares significativos da obra.”
Na avaliação da professora e crítica de arte Maria Cecília França Lourenço, que assina a apresentação do livro, este alentado estudo desvela questões históricas, éticas e estéticas significativas para a realidade brasileira. “A investigação, agora revista, constituiu-se inicialmente em tese de doutorado defendida na ECA. Estamos diante de uma pesquisadora dedicada, há 30 anos, a aprofundar um tema e um problema. O tema estudado exige atributos específicos, pois aborda o métier e o legado dos antepassados. Já o problema é de enorme atualidade, ou seja, a ausência ou esquecimento na história de certas tendências, localidades e artistas.”


Sob a emoção de pincéis e tintas

A São Paulo que os pintores captaram é viva. Bonita. E próspera. É esta cidade repleta de energia que Ruth Sprung Tarasantchi revela em sua pesquisa. Junto com a história da cidade, ela conta a evolução da arte e a trajetória dos artistas.
Mostra, por exemplo, o trabalho singular de Benedito Calixto (1853 - 1927): pintor, decorador, professor de pintura, historiador, músico, cartógrafo e astrônomo. Todos estes dons ficam explícitos em suas telas. “Seu trabalho causou tamanho entusiasmo que foi solicitada a ajuda do visconde de Vergueiro, na época, morando na Europa, para enviá-lo à França a fim de aprimorar os conhecimentos. Em 1883, seguiu para Paris, sem ter freqüentado sequer o ateliê de algum pintor ou academia, como os outros costumavam fazer.”
Ruth revela nuances curiosas dos artistas. “Calixto tinha um carinho todo especial pelos índios e chegou a hospedar, certa vez, um grupo no seu quintal, para melhor desenhá-los.” Narra também a vida de Oscar Pereira da Silva (1865 - 1939). “Ele pintava com muita naturalidade e tinha uma exuberância que deixava sua filha Helena pasma”, destaca. “O Museu Paulista possui várias obras suas.”
O aquarelista Alfredo Norfini (1867 - 1944) também tem seu espaço na pesquisa. “A aquarela é mais difícil que outras técnicas, pois exige segurança e firmeza por parte do artista. Não aceita retoques, senão a obra perde logo a leveza, que é uma de suas maiores qualidades. Norfini conseguiu sempre grande transparência e um colorido vivo em suas composições, qualidades que mereceram a admiração do público e dos colegas.”
Traz também Torquato Bassi (1880 - 1967), o artista dos crepúsculos e das alvoradas. “Bassi desenhava desde pequeno e não perdoava nem as paredes das casas vizinhas. Pertencia a uma família alegre e unida, que gostava de reunir-se em festas que demoravam três dias, revezando-se as pessoas para dormir. Ingressou no Liceu de Artes e Ofícios, onde estudou com Aladino Divani. Além de pintor, foi também decorador, tendo enfeitado muitas fazendas da zona de Ribeirão Preto, de São Paulo.”
Ruth vai apresentando uma seqüência de biografias de artistas conhecidos e desconhecidos. Entre os esquecidos está Giuseppe Pasquale Perissinotto (1881- 1965). “Pertence à geração de pintores filhos de família de imigrantes italianos que foram, por causa de sua origem, relegados a segundo plano. Nunca foi um pintor que estivesse na crista da onda, mas seus quadros eram bem aceitos pela burguesia.”
Outro pintor importante é Túlio Mugnaini (1895 - 1975), chamado por Tarsila do Amaral como o poeta lírico das cores bonitas por usar tintas alegres, limpas, intensas e líricas. “O objeto fundamental na sua obra é a luz em seus diferentes estados, e as propriedades construtivas e o corte sólido do desenho foram constantes em sua produção. Não usou a linha, não contornou e não detalhou, apesar de procurar captar a poética e o tom local.”

 




ir para o topo da página


O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]