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Crianças interagem com o molusco sem preconceito
Quem diria que um pequeno animal, todo desengonçado, que num primeiro momento causa aversão, não faz barulho, anda lentamente deixando um rastro gosmento, fosse capaz de ajudar na educação de crianças do meio rural e urbano de Pirassununga? Através do projeto de pesquisa “Dr. Escargot: Utilização de Pequenas Criações na Terapia e no Processo Educacional”, a professora Maria de Fátima Martins e sua equipe multidisciplinar, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP de Pirassununga, trabalham os moluscos bivalves Achatina fulica e Achatina fulica monocromático, semelhante ao escargot francês, como instrumento pedagógico para escolas municipais públicas e privadas de ensino médio e fundamental.
A proposta é introduzir pequenas criações de animais no ambiente escolar das crianças, com ou sem necessidades especiais, para trabalhar a socialização, o afeto, o relacionamento e uma educação baseada na autoconstrução de conhecimentos e valores. Sabe-se que os animais de estimação exercem importante papel humanizador e socializador nas interações humanas. “O escargot foi escolhido por apresentar propriedades comportamentais que não afetam a segurança das crianças sendo, inclusive, bem aceito por elas”, afirma Maria de Fátima. “Ele não morde, não arranha, não dá coice, é fácil de ser transportado e sua gosma está sendo pesquisada como cicatrizante e antimicrobiana, o que me deixa tranqüila quanto à não-transmissão de doenças.”
A pesquisadora também decidiu utilizar o escargot pelo fato de a criança ter curiosidade aguçada, ficar atenta ao molusco e curiosa por saber como pode carregar sua própria casa nas costas pra lá e pra cá.

Co-educador e co-terapeuta

Com início em 1994, o projeto só virou pesquisa reconhecida em 2000, quando a Fapesp passou a destinar uma verba para sua manutenção. Chegou a ser premiado pela Fundação Getúlio Vargas, que o considerou um dos melhores trabalhos em educação e cidadania.
Maria de Fátima conta que, embora se saiba que o homem, durante milênios, tem acumulado conhecimentos sobre a forma de criar, selecionar e produzir animais para a sua sobrevivência, companhia e proteção, não há muita informação disponível, principalmente na literatura brasileira, sobre a interação homem-animal no processo educacional e terapêutico.
Ter o escargot como co-educador e co-terapeuta representa um trabalho de pesquisa inédito no mundo e, também, um desafio construtivo e participativo. A pesquisadora acredita que, ao introduzir um animal diferente no cotidiano das crianças, está desenvolvendo uma educação empreendedora, na qual o animal funciona como um veículo de aprendizagem. As crianças são estimuladas a ter idéias, imaginar o que existe debaixo da concha do escargot e, assim, ativar o conhecimento próprio, a compreensão das demais formas de vida e, ainda, respeitar a natureza e o meio ambiente. “A partir dessa compreensão e respeito ao animal, é visível a mudança que elas passam a ter com seus animais de estimação e com os amigos da escola e do bairro”, analisa.
Para Maria de Fátima, a educação quando faz uso de animais torna as crianças capazes de entender e respeitar o planeta e, acima de tudo, melhorá-lo. “Afinal, elas são os futuros e autênticos artífices de um mundo melhor. É necessário, portanto, ensiná-las a respeitar, amar e conhecer todas as formas de vida. Fazê-las compreender que o futuro é condicionado pelo aprendizado presente.”

Valor protéico

A pesquisa vem trabalhando com três escolas diferentes: a rural, em que a criança termina o ensino fundamental tardiamente e já tem contato intenso com o mundo animal; a urbana municipal, em que os pais, de classe média, buscam um ensino de qualidade para os filhos; e a terceira que abrange a população mais rica de Pirassununga, em que as crianças têm computador em casa, freqüentam shopping e os pais têm nível universitário.
A ida da equipe da Universidade às escolas é quinzenal e utiliza-se qualquer espaço que esteja disponível, no mesmo período de aula das crianças. O projeto Dr. Escargot visita 311 crianças e adolescentes e interage com disciplinas de educação artística, português, matemática, estudos sociais e ciências. São 50 minutos cada aula. Os animais são lavados, higienizados, alimentados, colocados em caixas plásticas e transportados para as escolas participantes.
Um dos resultados observados pela pesquisadora foi que as crianças e os adolescentes interagem com o animal e aprendem as técnicas de criação — nascimento, manejo e abate —, pois se trata de um molusco comestível, com excelente valor protéico. Sem contar que os pais e familiares dos alunos envolvidos têm se mostrado receptivos à pesquisa.
Maria de Fátima acredita que por meio desse projeto o papel do médico veterinário possa ser ampliado na área educacional. Através da interação de diferentes profissionais e da formação de equipes multidisciplinares será possível criar mais parcerias com escolas públicas, para realizar um trabalho de extensão, gerando pesquisas acadêmicas e contribuindo para a formação de profissionais de psicologia, educação, biologia.
Outro objetivo é verificar possíveis interações do molusco como facilitador do aprendizado e do contato social, ou como co-terapeuta de crianças com necessidades especiais A pesquisa, além de ser aplicada nas escolas, para a qual se levam pequenos berçários com moluscos, também se realiza nas instalações do Heliciário Experimental Professora Doutora Lor Cury, que foi remodelado com recursos da Fapesp. Nesse local são executadas atividades de treinamento, capacitação dos educadores e estagiários envolvidos no projeto, aulas práticas com as crianças e criação de animais.
Poucos estudiosos têm abordado a educação com base na zooterapia, ou a criação de animais como alternativa de interação do ser humano com a natureza. Por isso a professora acredita que é tempo de educar humanizando. “É tempo de educar a criança na época em que ela realmente ignora os preconceitos.”



Molusco abrasileirado

É bom lembrar que o molusco Achatina fulica utilizado pela pesquisa da professora Maria de Fátima pode ser consumido, mas não é o mesmo dos franceses, conhecido como Helix asperça.
Enquanto o escargot original tem um custo muito alto de produção e não passa de 4 cm de tamanho, o Achatina fulica pesa 15 vezes mais e se reproduz em até 500 ovos por animal. Também é muito resistente e está totalmente adaptado ao clima tropical, pois é uma espécie africana de clima quente, ao contrário do escargot francês que precisa de temperatura baixa para sobreviver.
Luiz Ricardo Simione, pesquisador do Museu de Zoologia e especialista em bivalves, faz um alerta: “É preciso tomar certos cuidados para criá-lo, pois quando introduzido de maneira incorreta na natureza causa uma grande devastação, além de transmitir o verme paragônico causador da meningoencefalite”.
Simione diz ainda que muitos produtores, por não terem conseguido lucros com a produção do molusco, devolveram os animais à natureza, indiscriminadamente, e isso tem causado sérios problemas em algumas regiões brasileiras.
Maria de Fátima também acha essa atitude completamente irresponsável, mas pede provas ao pesquisador quanto à transmissão da doença conforme ele denunciou. A professora diz fazer parte de uma comissão do Ibama que vem analisando todos os casos de invasão relatados garantindo que não há nenhum fora de controle.

 




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