O
professor Antonio Candido de Melo e Souza, que se aposentou do Departamento
de Letras da FFLCH em finais dos anos 70, é um dos últimos
representantes de uma geração de intelectuais que
marcou profundamente a cultura e a sociedade brasileiras. Nomes
como Paulo Emílio Sales Gomes, Décio de Almeida Prado,
Lourival Gomes Machado e Sérgio Buarque de Holanda
além do próprio Candido, é claro são
referências obrigatórias quando se tenta compreender
melhor o Brasil dos últimos 50, 60 anos. E todos eram também
amigos, daqueles de conviveram, estudarem juntos, trabalharem e
farrearem juntos. Nesta entrevista exclusiva ao Jornal da USP, Antonio
Candido relembra sua amizade de muitos anos com Sérgio Buarque
e fala das duas facetas marcantes do historiador centenário:
o intelectual e o brincalhão.
Jornal
da USP Quem foi Sérgio Buarque de Holanda?
Antonio Candido Sérgio Buarque de Holanda
foi dos homens mais interessantes que eu vi na minha vida, por causa
das qualidades aparentemente contraditórias.
JUSP
Quais seriam elas?
Candido Um homem de uma capacidade de reflexão,
de concentração fora do comum e um grande boêmio.
Um homem que encarava os problemas com uma seriedade, como eu tenho
visto poucas pessoas encararem, e extremamente moleque. Um grande
gozador. Vou contar um exemplo que hoje não é mais
segredo. Ele, jovem na Alemanha, teve um filho com uma moça
alemã. Ele veio embora para cá e o filho ficou por
lá. Mais tarde, muito tempo depois, tentaram localizar o
rapaz, mas não conseguiram. E Sérgio sempre teve aquele
jeito estrangeiro. Então, perguntavam: Professor, o
senhor é filho de alemão?. E ele respondia:
Não, sou pai de alemão.
JUSP
Que outras histórias poderiam caracterizar esse lado
brincalhão dele?
Candido Quando ele fez 60 anos, houve uma grande festa nasua
casa, na rua Buri. Fernando Henrique estava lá e se divertiu
muito. Numa certa hora, nós já tínhamos tomado
lá uns tantos uísques, o Sérgio Buarque começou
a cantar uma música alemã da qual ele gostava muito.
Então, de repente, ele falou: Vamos dançar
e nós improvisamos um balé. Lá estávamos
nós Sérgio com 60 anos, eu com 44 nos
pondo a dançar e cantar ali no meio da sala. Quando eu olho,
vejo sentados três jovens professores da faculdade, discípulos
dele, estarrecidos com o doutor Sérgio. Era o grande historiador,
o mestre deles, dançando, fazendo um balé com Antonio
Candido, ali, no meio de uma festa. Sérgio tinha uma imaginação
fantástica. Fazia brincadeira, fazia piada...
JUSP
E era, ao mesmo tempo, um pensador agudíssimo do Brasil,
não é?
Candido Era um grande trabalhador intelectual. Um homem de
uma cultura imensa. Eu não sei se eu já vi alguém
mais culto que Sérgio Buarque de Holanda. Veja que eu vivo
num meio de gente culta, brasileiros e estrangeiros, e eu não
sei se conheci alguém mais culto que Sérgio.
JUSP
E ele não fazia questão de transparecer essa
cultura.
Candido Não. Escreveu relativamente pouco. Seu primeiro
livro, Raízes do Brasil, foi publicado quando ele tinha 34
anos. Você imagina o escândalo. O segundo livro foi
Monções, escrito aos 41, 42 anos. Depois, o tempo
passou e ele só foi publicar outro livro com 54 anos. Era
um homem desinteressado, totalmente desinteressado. Não fazia
questão de aparecer, não fazia questão de ter
títulos. Ele não tinha aquela vaidade patológica
do Gilberto Freyre, por exemplo. Jamais.
JUSP
- Sérgio, Gilberto Freyre e Caio Prado Jr. foram os primeiros
grandes observadores do Brasil, não é verdade?
Candido - É, na nossa geração foram os três.
É isso que eu digo: são os contrastes de Sérgio
Buarque. Ele estava sempre pronto para estudar, para pesquisar,
mas também para ir a uma boate, para ir a um bar, a uma festa,
para sair de casa, para jantar fora, tudo. Era só telefonar,
ele ia atrás. E gostava muito de ouvir fofoca. Uma jovem
assistente dele da faculdade me contou que ele ficava zangado quando
ela não telefonava para ele depois que ele se aposentou,
porque queria saber das fofocas da faculdade. Depois Sérgio
me contava e eu falava: não quero ouvir.
JUSP
E ele era um grande crítico literário também,
não é?
Candido Um grande crítico. A meu ver, o maior crítico
literário brasileiro do século 20. Sem dúvida
nenhuma. Mas não tinha coluna fixa, não exerceu a
crítica assiduamente. Mas há pouco tempo o Antonio
Arnoni Prado reuniu essas críticas em dois volumes [publicados
pela Cia. das Letras, N.R.]. O Arnoni trabalhou sete anos nesses
volumes. O Sérgio era um grande crítico literário
e um grande historiador.
JUSP
- O senhor acha que Sérgio Buarque de Holanda é suficientemente
valorizado no Brasil?
Candido - Olha, eu acho que é. Você vê agora
o centenário dele, está correndo gente de todo lado
para organizar, fazer coisas. Mas ele nunca fez propaganda de si
mesmo. Menos propaganda do que ele, só o Caio Prado, que
não fazia propaganda nenhuma. O Caio era, sobretudo, um militante.
O Sérgio, não. Ele era um homem que tinha um gosto
de viver extraordinário. Gostava de comer bem, gostava de
beber e bebia muito , gostava de vinho, gostava de
uísque, gostava de anedota, de piada, de rir, gostava de
conversa. À noite ele gostava de conversar. À noite
ele não estudava.
JUSP
Ele estudava a que horas?
Candido Ele acordava geralmente muito tarde. Ele acordava
lá pelo meio dia, uma hora da tarde, aí ele comia
uma canjica e estudava até oito, nove horas da noite. Depois
disso, conversava com os amigos até uma, duas horas da manhã.
JUSP
E como era a relação dele com os alunos?
Candido Ele fazia muita questão de dar assistência
aos alunos. Ele recebia muitos estudantes em casa. Era muito sociável
e isso para os alunos era ótimo. Iam à noite à
casa dele e ele conversava, se dava, emprestava livro, segurava
o aluno até tarde, ele gostava muito de conversar. Ele era
um homem muito humano. De modo que ele era, realmente, uma personalidade
rara. Interessante é que quando ele falava de coisas intelectuais,
acabava a piada. Inclusive a cara dele ficava séria. Aí
ele começava a falar com muito conhecimento, mas não
gostava de parecer sábio, de parecer erudito.
JUSP
Como Sérgio Buarque entrou na USP?
Candido É muito curioso. O professor de História
da Civilização Brasileira na USP era o Alfredo Hélio,
que ficou com uma grave doença nervosa, de coordenação,
e teve que ser substituído. O Sérgio Buarque era diretor
do Museu Paulista e professor de História Social do Brasil
no curso de mestrado da Escola de Sociologia e Política.
Aí o Lourival Gomes Machado disse: Vamos convidar o
Sérgio Buarque de Holanda. Não sei se os historiadores
receberam bem a sugestão, mas acabaram aceitando. O Sérgio
não era da casa e o pessoal da História era sempre
muito de panela.
JUSP
Mas ele já era diretor do museu?
Candido Era diretor do museu desde 46. Isso se passa
em 56, 57. Aí o Sérgio foi e começou a dar
as aulas, mas precisava fazer a tese, não é? Prestar
concurso. Foi nesse momento que ele escreveu, em um ano de trabalho
insano diz Maria Amélia que alterou, inclusive, o
ritmo de sono dele , seu monumento, sua obra-prima, que é
Visão do Paraíso. A Gilda [de Melo e Souza, mulher
de Antonio Candido, N.R.] assistiu ao concurso dele. Eu era professor
em Assis e diz que o pessoal de história ficou um pouco enciumado.
E uma das coisas mais importantes que ele fez na USP foi criar o
Instituto de Estudos Brasileiros. Ele, como figura humana, era um
homem exemplar. Ele era um homem de uma lealdade absoluta, de uma
grande coragem moral.
O
legado dos Intérpretes do Brasil
Maria Eugênia de Menezes
A ruptura
que Raízes do Brasil, obra inaugural de Sérgio Buarque
de Holanda, representa só pode ser entendida se analisada
a partir de um contexto histórico e relacionada a outros
dois autores também empenhados na tarefa de redescobrir o
País Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior. Nos
anos 30, juntos eles formaram a tríade que ficou conhecida
como Intérpretes do Brasil. No seu clássico prefácio
para o clássico de nascença, Raízes
do Brasil , Antonio Candido explica o impacto dessas obras, que
apontavam um novo olhar para o Brasil. Os homens que estão
hoje um pouco para cá ou um pouco para lá dos 50 anos
aprenderam a refletir e a se interessar pelo Brasil sobretudo em
termos de passado e em função de três livros:
Casa-grande e Senzala, de Gilberto Freyre, publicado quando estávamos
no ginásio; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque
de Holanda, publicado quando estávamos no curso complementar;
Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado
Júnior, publicado quando estávamos na escola superior.
São esses livros as marcas de um radicalismo intelectual
que começava a soprar seus ventos por aqui quando o máximo
que se tinha era um pensamento conservador bem articulado. Mas nada
surgiu ao acaso.
Para começar a remar contra a maré interpretativa
vigente, eles encontraram um quadro histórico favorável.
O Brasil começava a buscar a modernidade e querer romper
com suas tradições coloniais e arcaicas. Na década
de 20, em meio a turbulências políticas e governos
repressores, os Dezoito do Forte de Copacabana inauguravam o movimento
tenentista que se consolidaria com a Coluna Prestes. Enquanto os
jovens tenentes buscavam saídas se insurgindo contra a ordem
militar, os modernistas, em sua Semana de Arte de 1922, contestavam
o ufanismo e a arte acadêmica para construir uma identidade
verdadeiramente nacional. A Revolução de 30, que punha
fim à hegemonia dos coronéis no poder, trouxe novas
inquietações. Depois do entusiasmo inicial, entretanto,
logo uma ordem autoritária foi se instaurando, e a ditadura
não tardou a chegar com o Estado Novo.
Impunha-se pela primeira vez uma polarização ideológica
o socialismo de um lado, o fascismo de outro que exigia
a tomada de posições e a multiplicação
das análises. Esses intelectuais foram então buscar
na história, cada um a sua maneira, pistas para as questões
do presente. Mergulharam para resgatar nosso sentido de formação,
explicar o Brasil e os brasileiros. Com Casa-grande e Senzala, Gilberto
Freyre provocava, em 1933, um grande impacto nos meios culturais
ao apontar a contribuição negra para a formação
brasileira. Seu estilo ensaístico combinava uma grande quantidade
de informação com uma narrativa diferente, próxima
do literário. Com franqueza e um tratamento inspirado na
antropologia cultural praticada pelos norte-americanos, fazia uma
devassa na vida sexual e privada do patriarcalismo. Ainda que tenha
um ranço aristocrático e seu livro seja hoje considerado
conservador, Freyre deixava uma enorme contribuição:
reconhecia o negro como portador de cultura. A historiografia
que se fazia até então era ao estilo do Instituto
Histórico e Geográfico, puramente narrativa e factual.
Eles inauguraram um novo jeito de pensar o País e ainda não
perderam a atualidade, explica a professora de História
da USP, Suely Robles.
Raízes do Brasil chegou três anos depois. A literatura
também tomava o território da história, mas
o livro de Sérgio Buarque de Holanda era completamente diferente.
Outra era a sua inspiração e também as suas
referências os estudos sociais alemães, a nova
história francesa. Através de um jogo dialético
de elementos contrários, Sérgio Buarque fazia uma
crítica radical aos nossos fundamentos agrários e
patriarcais.
Caio Prado Júnior lança Formação do
Brasil Contemporâneo já em pleno Estado Novo. A beleza
no estilo não lhe interessa tanto, e ele tenta convencer
pela força de seu argumento e a contundência das informações.
O materialismo histórico, pela primeira vez, era a forma
de captar e organizar o real. Sem transportar simplesmente o marxismo
para o Brasil, deu à doutrina, como nunca antes, uma roupagem
verdadeiramente nacional. Um marxismo à brasileira, adaptado
às nossas condições e não a situações
ideais ou estrangeiras.
Essa geração de intérpretes do Brasil
Gilberto Freyre na antropologia, Sérgio Buarque de Holanda
na história e Caio Prado Júnior na sociologia
ainda demarca o imaginário político e inspira intelectuais
brasileiros. Esses três livros quebraram mitos e destruíram
silêncios. Eles mudaram a maneira de se fazer história,
motivaram novos temas e os livros que vieram depois foram fortemente
influenciados, diz Suely. Esse debruçamento sobre nossa
realidade para encontrar uma explicação satisfatória
para aquele Brasil dos anos 30 construiu clássicos. Marcos
fundamentais do que Antonio Candido chamaria de pensamento radical,
ou seja, um pensamento que visa à transformação
da sociedade num sentido de igualdade e justiça social, implicando
a perda de privilégios da classe dominante.
|