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Betty: criação compartilhada


A
antropóloga e economista paulista Betty Mindlin acaba de ganhar o Prêmio Érico Vannucci Mendes de 2002. Escolhida entre 34 concorrentes, cujas obras foram analisadas por uma comissão julgadora composta por representantes da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), do Ministério da Cultura (MinC) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a vencedora vai receber R$ 5 mil. A cerimônia de entrega deverá ocorrer em julho, durante a realização da 54ª Reunião Anual da SBPC, em Goiânia, Goiás, onde Betty brindará os participantes da cerimônia com uma apresentação de sua trajetória em defesa dos direitos e da cultura de diferentes povos indígenas brasileiros.
O Prêmio Érico Vannucci Mendes é destinado àqueles que realizam estudos e pesquisas sobre a cultura brasileira, contribuindo para a preservação da memória nacional por meio da manutenção das tradições populares e traços culturais de minorias étnicas e sociais. Concedido por Marta Vannucci, mãe de Érico, morto em 1986 aos 42 anos, o prêmio tem, entre outras metas, manter a memória do trabalho do pesquisador, um defensor das raízes culturais do Brasil, servindo como estímulo para que outros pesquisadores tenham carreiras semelhantes.
De acordo com Betty, além da insistência de Reginaldo Prandi, professor da USP, autor de Mitologia dos Orixás (Companhia das Letras), entre outras obras, e ganhador do Prêmio Érico Vannucci Mendes do ano passado, para que ela se candidatasse, o maior estímulo veio do fato de que sua atuação e seus livros não foram criados apenas por ela, mas por todos os índios com os quais conviveu e pesquisou ao longo desses anos. “Eles mereciam esse espaço de divulgação, na medida em que o prêmio chama a atenção da sociedade para os seus problemas e o que vem sendo feito para diminuí-los”, diz. “Espero que a sociedade se sensibilize cada vez mais, ajudando a manter viva a cultura indígena, que faz parte da nossa própria identidade nacional.”
A obra da pesquisadora é formada por cerca de uma dúzia livros, sendo três em inglês, incluindo um sobre economia, Planejamento do Brasil (Editora Perspectiva, 1970), e 37 artigos publicados em jornais, revistas, períodicos científicos e como capítulos de outros livros, no Brasil e no exterior. Entre as obras de mais destaque estão as que relatam e analisam alguns dos mitos de diferentes povos: O Primeiro Homem (Cosac&Naify, 2001), antologia formada por versões sobre as origens do mundo e da humanidade; Couro dos Espíritos (Senac/Terceiro Nome, 2001), obra criada a partir da iniciativa dos gavião-ikolen, de Rondônia, que procuraram Betty para ajudá-los a registrar suas tradições; Terra Grávida (Rosa dos Tempos, 1999), antologia com mitos que narram a origem de diversos elementos naturais, como o Sol, a Lua, a água, o fogo, entre outros; e Moqueca de Maridos (Rosa dos Tempos, 1997), constituído por histórias sobre o amor e o eterno confronto entre os sexos masculino e feminino, presente em todas as sociedades humanas. Este último será lançado em setembro, em inglês, na cidade de Londres, com o título Barbecued husbands, pela editora Verso.

Da macroeconomia à floresta

Filha do empresário e bibliófilo José Mindlin, Betty foi casada com Celso Lafer, ministro das Relações Exteriores, com quem teve dois filhos, Manuel Mindlin Lafer, músico, médico e pesquisador da questão da aplicação das vacinas nas comunidades indígenas do Parque do Xingu, e Inês Mindlin Lafer, psicóloga. Economista formada pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, da qual também foi professora entre os anos de 1964 e 1969, com mestrado pela Universidade de Cornell, Estados Unidos, a pesquisadora é dona de uma trajetória de vida pouco comum. “Minha migração para a antropologia começou em meados dos anos 70, quando conheci Carmen Junqueira, na época professora da PUC, onde fiz o doutorado sob sua orientação, após ter me encantado com seu trabalho de pesquisa sobre as raízes culturais brasileiras, tendo como foco os povos indígenas”, recorda. “Entretanto, tanto em minhas atividades de economista, das quais nunca me afastei cem por cento, como no trabalho com os índios, o que sempre me move é um profundo sentimento que extrapola a pura ideologia de ter que lutar para acabar com as desigualdades sociais.”
Sobre a discípula, Carmen escreveu, na apresentação da obra Nós Paiter: Os suruí de Rondônia, primeiro livro de Betty sobre a questão indígena: “Certo dia, em 1973, fui procurada por uma moça que se dizia interessada na questão indígena. Todos nós que trabalhamos com antropologia sabemos o quanto se fantasia a figura do índio, na visão de perda que lamentamos (...) foi pensando nisso que resolvi receber a moça que me procurara. Eu saberia cortar-lhe os sonhos. Bastaria uma ou outra foto de índio esfarrapado, sem dentes, para que o encanto se quebrasse. Ela não era a primeira e não seria a última. A cada Semana do Índio podia se esperar novos surtos de nostalgia. Mas a jovem que vi diante de mim mais me pareceu uma guerreira, mestre em economia, por Cornell, estava decidida a pensar sobre a questão indígena, conhecer o que falavam os antropólogos e combater a política odiosa que esmaga culturas milenares (...)”.
As primeiras pesquisas de Betty foram com os índios panará, estudados anteriormente por Carmen. A partir de 1979, passou a trabalhar com os suruí, que se autodenominam paiter (gente ou nós mesmos), habitantes da região central de Rondônia. Foram sete viagens no decorrer de cinco anos, apoiadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pela Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (Eaesp-FGV), onde foi professora. Nessa época, a pesquisadora acompanhou as rápidas e profundas mudanças pelas quais Rondônia passava, com um enorme fluxo migratório, invasões, ameaças e mortes, o assédio de empresas e a inserção das nações indígenas na sociedade e na economia nacional, o que a levou a se engajar nas intensas lutas pela demarcação de terras indígenas, notadamente as do entorno do Programa Polonoroeste, responsável pela construção da rodovia Cuiabá-Porto Velho. “Isso ocorreu pelo fato de ter sido convidada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, a Fipe, ligada à USP, para coordenar a avaliação dos impactos sobre 60 povos indígenas dessa região”, explica. “Nessa época, que vai de 1982 a 1987, marcada ainda pelos excessos do regime militar, conseguimos a aprovação das demarcações de cerca de 40 áreas, num total de 1 milhão e 800 mil hectares.”
Apesar dos problemas, Betty, que também foi professora do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA), pesquisadora do Centro de Estudos Sociais e Indígenas (Cesind) e da Rockefeller Foundation, além de consultora do holandês Institute of Social Studies Advisory Service e é, desde 1988, assessora da Fapesp, vê o futuro com otimismo. “Hoje nossa legislação já reconhece a existência da escola, da educação e do professor indígena enquanto práticas diferenciadas, mas fundamentais para a manutenção da identidade desses povos e de outras minorias”, afirma. “Nessas escolas já temos o ensino das línguas desses povos ao lado do português, o que os habilita na produção e registro de suas próprias pesquisas e estudos sobre sua cultura, ao mesmo tempo em que permite uma integração à sociedade brasileira, incluindo a possibilidade de entrar para uma universidade”, diz. “Claro que ainda há muitos problemas, mas temos que continuar, que persistir na busca de soluções pacíficas, que tenham o ser humano no centro de suas metas.”

 




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