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Fuad: "Amor à ciência e ao próximo"





O
Congresso Pan-Americano de Flebologia e Linfologia, realizado recentemente em Córdoba, Espanha, reconheceu um trabalho da angiologia brasileira sobre transplante autólogo de veias como pioneiro mundial no assunto. A técnica é do professor Fuad Al Assal, livre-docente de Clínica Cirúrgica da Faculdade de Medicina da USP, e pode representar a cura das úlceras venosas das pernas — feridas na pele decorrentes de inflamação crônica das veias — que, segundo a Organização Mundial da Saúde, faz tantas vítimas quanto o câncer e a diabete. O procedimento pode ser utilizado, ainda, na reconstrução de veias dilaceradas por traumatismos, como acidentes sofridos por atletas ou decorrentes de atos de violência como tiros e facadas.
Apesar de ser uma técnica nova e ainda pouco utilizada, os resultados obtidos por Fuad e sua equipe, em 20 anos de trabalho, são animadores. Dos 200 casos que ele operou, pelo menos 140 foram bem-sucedidos. Os outros 60 não obtiveram melhora significativa, mas também não pioraram. O quadro clínico manteve-se igual. Aplicando-se essas estatísticas aos mais de 2 milhões de habitantes que sofrem dessa inflamação no Brasil, é possível estimar que cerca de 70% dessas pessoas poderiam voltar a levar uma vida normal se fossem submetidas ao transplante de veias.

Costurar veias é possível?

O ineditismo do trabalho de Fuad está, na verdade, no fato de que representa a quebra de um grande tabu da medicina, o de que seria impossível costurar uma veia em outra. Essa teoria, que foi sustentada durante anos, foi sendo legitimada pelos resultados ruins obtidos na maioria dos casos em que se tentou realizar tal proeza. Segundo Fuad, “trata-se de um procedimento difícil, mas não impossível”. Para ele, a solução está em aplicar ao transplante princípios da microcirurgia, tipo de operação realizada com microscópio. “Não é um ato necessariamente microcirúrgico, mas para se obter bons resultados é preciso aplicar os princípios dessa técnica, que pouca gente conhece.”
A cirurgia consiste basicamente em substituir a veia obstruída por causa da inflamação por uma outra sadia, retirada do próprio paciente, como usada na tradicional ponte de safena em cardiologia. É como se, em uma estrada congestionada, fosse aberto um desvio por onde os veículos pudessem voltar a circular normalmente. A veia sadia reativa a circulação sangüínea, desinchando o membro e permitindo à pessoa — que em geral fica impedida de trabalhar, de caminhar longas distâncias e de fazer determinados tipos de esforço — voltar a uma vida normal. No caso de veias dilaceradas por traumatismos, como acidentes, tiros ou facadas, a veia sadia substitui as danificadas assumindo a sua função. Mas, como a técnica ainda não está bem difundida, na maioria das vezes, veias danificadas são simplesmente amarradas e ficam inutilizadas. A irrigação daquela região acaba, portanto, interrompida.
O procedimento é lógico, mas muito complexo. Entre outros motivos, por se tratar de um mundo de dimensões muito pequenas e difícil de ser manipulado. Com o microscópio, que aumenta a imagem de seis a 40 vezes, o médico é capaz de enxergar esses tecidos com uma riqueza maior de detalhes, o que lhe permite fazer o que Fuad chama de “uma sutura bem feita”. Uma sutura bem feita é aquela perfeitamente simétrica e regular. Um feito extremamente delicado considerando-se que, na maioria das vezes, a distância entre um ponto e o outro é menor do que 1 mm. “É um trabalho de artesanato”, admite Fuad.
A estrutura que constitui as veias também não ajuda muito. Ao contrário das artérias, que podem ser suturadas sem grandes problemas, elas possuem a parede fina, pouca musculatura e muito tecido fibroso. Essas e outras dificuldades contribuíram para legitimar a crença de que seria impossível suturar uma veia em outra sem que depois de algum tempo ela se obstruísse. Mas, segundo Fuad, esse procedimento também pode ser aplicado nas veias, a única diferença é que as veias são mais “intolerantes”. “Certos erros técnicos que podem ser tolerados pelo sistema arterial causariam trombose nas suturas veno-venosas”, explica Fuad, citando um pesquisador norte-americano. O grau de primor exigido é o que faz dessa cirurgia a mais difícil operação vascular.

Começo com camundongos

São essas dificuldades todas que, segundo Fuad, desmotivam outros profissionais a adotarem a técnica.”É um processo muito trabalhoso, requer técnica e experimentação. Eu, por exemplo, comecei com camundongos”, justifica o professor. Ele conta que operava os pequenos animais e os levava para sua própria casa, onde acompanhava a recuperação para entender melhor o processo todo. Foi com experimentação, pesquisas e estudos que o professor construiu seu know-how sobre o assunto. E, segundo ele, é esse conhecimento de causa que o tornou apto a desenvolver a técnica de enxerto e torná-la altamente eficaz. Trata-se de um conhecimento que ele, agora, anseia passar para a frente. “Muitos médicos têm medo de experimentar coisas novas. Minha esperança é de que, amanhã, os jovens profissionais dêem esse passo e comecem a fazer a cirurgia”, conta.
O conhecimento técnico necessário para tratar a úlcera venosa, entretanto, não se restringe ao ato cirúrgico. Todo o processo começa no diagnóstico que, segundo Fuad, também não costuma ser bem aplicado. Reconhecer a úlcera no paciente é relativamente simples, são feridas na pele visíveis a olho nu. Determinar a origem dessas alterações requer um pouco mais de estudo. “O diagnóstico é difícil, porque nem todas as úlceras são decorrentes da flebite. Mais da metade delas é conseqüência de problemas de varizes, mas, na fase final, o quadro clínico dos dois casos é muito semelhante”, explica.
Para ele, a melhor forma de garantir um diagnóstico seguro neste tipo de caso é através de uma espécie de radiografia das veias, a flebografia. Um profissional qualificado, com experiência na leitura desse tipo de imagem, é capaz de determinar, com precisão, o local obstruído, a extensão da obstrução e a causa da úlcera. Se for de origem flebítica, o transplante costuma ser a melhor saída. Caso a alteração seja conseqüente de problemas de varizes, uma cirurgia convencional de varizes será eficaz em quase 100% dos casos.
Apesar dos inúmeros sucessos que Fuad tem para contar, ele possui também uma frustração: a de não ter visto, ainda, o seu trabalho totalmente reconhecido. Toda novidade sofre certa resistência e essa não é uma exceção. Ele guarda com carinho e muito zelo cada agradecimento e cada homenagem que recebeu de renomados profissionais do Brasil e do exterior, mas admite que ainda enfrenta dificuldades. Além de haver poucos médicos que fazem o mesmo trabalho que ele, grande parte dos que desconhecem a técnica a desaconselha. Em conseqüência disso, quase todos os pacientes beneficiados pelo transplante eram do Inamps e do SUS. “Muito poucos eram particulares. Os próprios colegas não aconselham a cirurgia a seus pacientes, que acabam ficando com medo e não se submetem à cirurgia. É uma pena”, lamenta. “O que me motiva é o amor à ciência e ao próximo. Dá muita pena ver pessoas sofrendo 20, 30 anos, sendo que poderiam ser curadas.”

 




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