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O professor de Bioética Marco Segre: a teoria concepcionista
é "um dogma"






U
ma nova legislação pode ajudar a fazer com que os cientistas coloquem à disposição da medicina uma avançada tecnologia — a clonagem terapêutica. O projeto de lei 285/99, do senador Sebastião Rocha (PDT-AP) — atualmente em tramitação no Congresso Nacional —, prevê o uso de células somáticas para fins terapêuticos. Com isso, será permitido fazer pesquisas que utilizem células humanas para a fabricação de tecidos. No futuro, um paciente com um coração degenerado poderá doar uma célula a fim de, com ela, obter em laboratório um tecido cardíaco e implantar no órgão defeituoso.
Mas o projeto de Rocha descarta o uso de células embrionárias, extraídas de embriões em estágios muito iniciais de desenvolvimento. É nesse tipo de célula, porém, que os cientistas que trabalham com doenças genéticas depositam as maiores expectativas. Diferentes das células-tronco adultas — que parecem poder se transformar em apenas alguns tecidos, mas não em todos —, as células embrionárias têm a capacidade de se diferenciar em qualquer outro tipo de célula (leia texto na página 7).
O senador Sebastião Rocha considera que é necessário, primeiro, “esgotar todas as possibilidades” das células somáticas antes de se pensar em utilizar células embrionárias. “Não sabemos ainda tudo o que poderemos fazer com as células somáticas”, disse Rocha ao Jornal da USP, por telefone. “No futuro, quando elas se mostrarem insuficientes, aí poderemos pensar em usar embriões”, disse. O senador pediu aos cientistas “uma moratória” de pelo menos cinco anos. “Até lá, a ciência já poderá indicar se as células somáticas são suficientes ou não.”
Na justificativa que acompanha o projeto, Rocha considera que a clonagem terapêutica representa “uma verdadeira revolução em termos médicos e de saúde pública”. Entre os benefícios que a técnica poderá trazer no futuro, ele cita o tratamento de doenças como a leucemia e o transplante de medula óssea. “Por isso, ainda que as aplicações terapêuticas de transferência do núcleo de células somáticas permaneçam conjecturais — uma vez que muito trabalho de pesquisa é ainda necessário para validar a tecnologia de base e muito tem que ser respondido antes que possamos distinguir fatos de especulação —, a clonagem terapêutica encerra um conjunto de promessas muito caras ao sonho humano para que seu progresso seja impedido antes que algumas dessas possibilidades se mostrem viáveis”, afirma o senador na justificativa. “Essa é a razão pela qual não se deve proibir, no Brasil, a experimentação da clonagem terapêutica, e sim a clonagem humana para fins de reprodução, permitindo a continuação e o desenvolvimento de toda uma linha de pesquisa da qual podem resultar enormes benefícios para toda a medicina.”
Para a coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, professora Mayana Zatz, a permissão para o uso de células somáticas em pesquisas científicas é “algo ótimo”. Mas ela lembra que tal avanço nada significa para os portadores de doenças genéticas. Como estes possuem a anomalia em todas as células, fabricar um tecido com seu material genético significa reproduzir a doença. Para essas pessoas, a única solução possível são as células embrionárias — aquelas que se transformam em qualquer tecido. Tome-se um menino portador de uma distrofia muscular — doença que causa a atrofia dos músculos. Ele só será curado se se puder obter células embrionárias, transformá-las em músculo e injetá-las em seu corpo. “O uso de células embrionárias é um caminho muito promissor para problemas assim”, analisa Mayana, referindo-se principalmente aos "inúmeros" embriões que são descartados pelas clínicas de fertilização artificial. “Se temos um caminho, temos de lutar com todas as forças para segui-lo” (leia entrevista com Mayana Zatz nas páginas 10 e 11).

Barreiras legais

O grande sonho de Mayana enfrenta imensas barreiras legais para se tornar realidade. Segundo a professora Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, livre-docente em Direito Penal pela USP, a legislação brasileira considera que a vida existe desde o momento da fecundação do óvulo pelo espermatozóide — a chamada teoria concepcionista. Como o direito à vida é assegurado, o embrião torna-se inviolável desde o instante em que o óvulo é fecundado pelo espermatozóide. “A lei resguarda os direitos do nascituro a partir da concepção”, diz Maria Celeste. O Código Civil — tanto o antigo como o novo, que entrará em vigor em janeiro de 2003 — expõe claramente, nos artigos 1º e 2º, a teoria concepcionista. Também o Código Penal considera crime tirar a vida de alguém “a partir da concepção”. Até mesmo a Constituição impede, segundo Maria Celeste, o uso das células embrionárias, uma vez que garante o direito à vida. “E essa é uma das chamadas cláusulas pétreas, que não podem ser mudadas porque se referem a um direito fundamental do ser humano”, acrescenta a professora. “Ou seja, grande parte do ordenamento jurídico teria que ser mudado para permitir essa tecnologia.”
Mas Maria Celeste lembra que, se é “muito difícil” mudar toda essa legislação, sempre é possível haver exceções. Ela cita como exemplo os casos de aborto, considerado um crime. No entanto, em algumas situações — como uma gestação de alto risco para a mãe — ele é permitido. “Quem sabe se, também no que se refere ao uso de células embrionárias, a lei não possa abrir exceções?”
Se o direito brasileiro impõe tantas restrições à clonagem terapêutica com células embrionárias, o mesmo parece não acontecer com a ética. O professor Renato Janine Ribeiro, que leciona Ética na USP, destaca que a sociedade moderna crê firmemente na idéia de que a ciência progride sem parar, mas acha que, ao contrário, a ética é permanente. “Ora, nada justifica que a ética não mude”, diz Janine. “Se não ousamos dizer que a ciência chegou a seu estágio final, não devemos dizer isso da ética” (leia texto ao lado).
Com isso concorda o professor de Bioética da Faculdade de Medicina da USP Marco Segre. Ele lembra, por exemplo, que considerar a concepção como o momento do surgimento da vida é “um dogma” que depende da cultura da sociedade que o adota. No passado, diz o professor, uma pessoa era considerada morta somente se o coração parasse de bater. Atualmente, em razão da necessidade de obter órgãos para transplante, é plenamente aceitável que o falecimento ocorre quando se dá a “morte cerebral”. "Por que a mesma mudança não pode ocorrer no que se refere ao surgimento da vida?"
Segre considera até mesmo que a clonagem reprodutiva — que tem a finalidade de criar seres humanos — não pode ser “proibida aprioristicamente”. “É claro que tem que ser muito bem controlado, mas não faz sentido proibir a priori qualquer pesquisa nessa área”, diz, reproduzindo o legítimo pensamento científico — aquele que deseja perscrutar todas as coisas “divinas e humanas”, como já dizia o filósofo grego Platão. A clonagem reprodutiva poderia ser útil, por exemplo, para casais que, ao invés de tentar gerar filhos através de reprodução assistida, gerassem um bebê através daquela tecnologia. Para o professor de Bioética, os critérios que devem nortear as pesquisas sobre clonagem dizem respeito à autonomia do ser humano. “O que precisa ser garantido é a não-violação do desejo de cada indivíduo.”
Originalmente, o projeto do senador Sebastião Rocha, apresentado em 1999, proibia todo tipo de clonagem humana. Nos dias 11 e 12 de junho passado, depois de promover um seminário sobre o assunto no Senado Federal — em que reuniu cientistas, religiosos, políticos e representantes de associações de defesa de portadores de doenças genéticas —, Rocha incluiu uma emenda permitindo a clonagem terapêutica através de células somáticas. Atualmente o projeto se encontra na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, cujo relator é o senador Leomar Quintanilha. Segundo previsões de Rocha, o relator deverá dar seu parecer somente em outubro, após as eleições. Depois da votação na comissão, a proposta vai a plenário, provavelmente no ano que vem. Em seguida, será encaminhada à Câmara dos Deputados. “Para ser aprovada nas duas casas, deverá levar uns cinco anos, a não ser que o presidente da República se interesse pelo projeto”, prevê Rocha. Até lá, o senador pede a contribuição dos cientistas: “É muito importante que eles participem das audiências públicas que realizamos, para que exponham o seu ponto de vista”.


 
Janine: como a ciência, a ética também muda 

A ética kantiana da clonagem

Para o professor Renato Janine Ribeiro, a clonagem humana não representa necessariamente uma afronta à ética. Segundo ele, a ética pode mudar assim como muda a ciência. “Uma das crenças básicas da nossa sociedade é que a ciência progride sem cessar”, compara o professor, que leciona Ética e Filosofia Política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. “Só que, quando pensamos em ética, acreditamos no contrário: que ela não mude com o tempo. Cremos no progresso da ciência, mas na permanência da ética. Ora, nada justifica que a ética não mude. Se não ousamos dizer que a ciência chegou a seu estágio final, não devemos dizer isso da ética”, escreveu Janine no artigo “Prometeu versus Narciso: a ética e a clonagem”, que publicou no suplemento “Clonagem” da revista Pesquisa Fapesp número 73, de março passado.
Segundo Janine, a chave de uma ética atual só pode ser um respeito intenso ao outro. “É retomar a idéia kantiana de que o homem é um fim em si mesmo, e não meio”, sugere, referindo-se ao pensamento ético do filósofo alemão Immanuel Kant, do século 18. Em outras palavras, diz, isso significa reconhecer o direito à igualdade e, curiosamente, o direito à diferença. “O direito à igualdade quer dizer que todos devemos ser aceitos como iguais, ao menos em direitos e oportunidades”, afirma o professor. “Já o direito à diferença significa que cada um pode usar sua liberdade como quiser, desde que não prejudique a outrem.”
Lembrando que todo ser humano deve ter respeitado seu direito a ser ele próprio, Janine questiona como aplicar esse princípio a um eventual clone. “Quem clona um filho não está tentando bloquear todas as coordenadas de uma vida que deveria ser livre? E o que será quando der errado isso?”, pergunta. “O importante, porém, é que essas perguntas só têm valor ético se percebermos que não se referem apenas a um eventual clone, mas a toda criatura — ou a toda criança. Não há diferença essencial entre controlar geneticamente o perfil de meu filho e controlá-lo educacionalmente: entre determinar quais serão os traços naturais da criança e quais serão os seus traços culturais.”
 




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