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Pregar no deserto não é tão inútil assim. Sempre pode passar algum beduíno disposto a ouvir a mensagem. Esta é a opinião e a prática do professor Alaôr Caffé Alves, da Faculdade de Direito da USP, que apresenta uma nova análise jurídica do desenvolvimento sustentável com justiça social – uma visão não funcionalista, como se a humanidade fosse um todo homogêneo, mas tomada numa perspectiva de conflito, em que o mercado e o capital são os grandes vilões. Alaôr não falou no deserto, porque o anfiteatro da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo não se parece nem um pouco com o Saara e as caravanas do “V Simpósio de Gerenciamento Ambiental na Indústria” ocuparam pelo menos um quarto dos lugares do auditório durante a programação de quatro dias (2 a 5) . O encontro de caráter interdisciplinar, promovido pelas faculdades de Direito, Saúde Pública e FAU, e coordenado pelo Núcleo de Apoio à Pesquisa e Extensão (Nisam), órgão da Universidade com sede na FSP, coincidiu com o final da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável realizada em Johannesburgo. Boa ocasião para que os participantes tentassem um balanço inicial e informal da reunião internacional. Professores da USP, representantes do governo paulista e ambientalistas não cederam à tentação de considerar um fracasso as notícias vindas da capital da África do Sul. Tanto Alaôr Caffé como o professor Arlindo Phillipi Júnior, da Faculdade de Saúde Pública e coordenador do Nisam, destacaram pontos altamente positivos, mesmo que não tenha havido consenso em torno de propostas importantes, como a brasileira relativa à geração de 10% de energia renovável, no total do consumo, nos próximos anos. Ambos consideram fato altamente positivo que um encontro consiga reunir mais de cem chefes de Estado e mobilize mais de 40 mil técnicos de 160 países em torno de problemas comuns. Problema identificado e discutido já é meio caminho andado para a solução, necessariamente lenta.
Outro conferencista, Fernando Cardoso Reis, presidente da Cetesb e representante no simpósio na FAU do secretário do Meio Ambiente de São Paulo, professor José Goldemberg, disse que o Estado paulista ocupa uma posição diferenciada do resto da Federação no que diz respeito à política ambiental, tem uma política bem definida na área e pôde levar a Johannesburgo propostas próprias. Uma delas, em seguida apoiada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, é a da energia renovável, aceita parcialmente no fórum internacional, sem estabelecimento de prazos. Disse ainda que estão totalmente renovadas a mentalidade e a consciência crítica do empresariado paulista, agora um parceiro do desenvolvimento sustentável.
A repercussão crítica, mas não negativa, do encontro internacional coincide também com a análise feita por boa parte da imprensa brasileira. O jornal O Estado de S. Paulo, por exemplo, que cobriu exemplarmente o evento, destaca entre os principais pontos acertados avanços relativos ao uso da água, à pesca, produtos químicos, saúde, pobreza, comércio, diversidade biológica, ajuda a países pobres, responsabilidade comum e diferenciada dos países na proteção do ambiente, além de energia. Não é outra a visão do presidente brasileiro, que recomenda aos países em desenvolvimento ações próprias, independentemente da colaboração, ou não, das grandes potências. “Não podemos esperar sempre que o conjunto dos países do mundo esteja de acordo para que se caminhe”, disse Fernando Henrique. Vale lembrar ainda que o Protocolo de Kyoto – acordo de proteção do clima do planeta com a redução da emissão de gases causadores do efeito estufa – recebeu agora a assinatura de países como Rússia, China e Estônia.

Os organizadores do encontro: debates interdisciplinares


Perspectiva do conflito

Ao explicar sua visão da realidade mundial do ponto de vista da perspectiva do conflito, Alaôr Caffé Alves disse que o meio ambiente não é “uma coisa” que possa ser tratada e entendida independentemente das relações entre as nações. Tem tudo a ver com os bens e os meios de produção, e com o mercado. “As funções destrutivas do mercado são enormes”, afirmou, acrescentando que o monopólio das decisões econômicas, estabelecidas nas bolsas de valores e nos grandes conglomerados de capitais, se sobrepõe às decisões políticas e se reflete na questão ambiental. Por isso mesmo, é absolutamente necessário buscar mecanismos para que a sociedade participe do processo, a exemplo do que ocorria naquele momento em Johannesburgo.
Segundo o professor da Faculdade de Direito, diante da pressão do mercado internacional, numa estrutura capitalista, até os Estados perdem a soberania e os governos não sabem como manipular os meios a sua disposição. “Todos estão à mercê do capital financeiro internacional, com grande sacrifício dos países.”
Para o modelo neoliberal, “danem-se as demandas sociais”, enquanto as desigualdades se acentuam. Segundo Alaôr, “problema ambiental é problema social, econômico e político” e “o mercado decide rapidamente o que a política decide lentamente”. Sem contar que as políticas públicas são calcadas em interesses privados, não nacionais. “Isso é a perspectiva de conflito”, quando interesses antagônicos se refletem no meio ambiente.
Onde está o remédio? O professor aponta: o direito precisa preparar as bases para a reconstrução da ordem social e ambiental. A correção depende do acerto da relação entre os homens, não do crescimento do capital. Em resumo, “a degradação (ambiental) não parte da natureza, mas do homem”, e o oposto da democracia não é o autoritarismo político, mas o mercado no modelo neoliberal. Do ponto de vista do direito, a política de gestão deve levar em conta interesses universais, com a participação de todos, não apenas funcional, mas política e engajada. Para a conquista dessa consciência crítica há necessidade de ações das universidades, da mídia e até das novelas.
Até aqui, a palestra no seminário; em entrevista, depois de lembrar que, apesar de tudo, a conferência de Johannesburgo foi importante por reunir mais de uma centena de estadistas e discutir problemas comuns ao mundo todo, o professor disse que um consenso está muito distante, porque uma política oriunda da hegemonia econômica leva ao mascaramento do mundo. “Ficamos numa atmosfera ideológica extremamente densa, que não permite ver um pouco à frente, um olhar que buscasse as causas das mazelas sociais. O sistema mercantil pressupõe um capitalismo selvagem em termos globais. Estamos perdendo a perspectiva civilizatória do capital, que está desconstruindo o mundo.”
Se algum beduíno passou na hora da palestra e da entreevista, talvez tenha estranhado a mensagem, tão severa nesse ponto, do professor Alaôr.

Cobrança vem da sociedade

Para o professor Phillipi Júnior, as grandes potências que relutam em aderir aos acordos propostos em fóruns internacionais enfrentam não apenas pressões dos países em desenvolvimento, mas também da sociedade interna. “A sociedade democrática fará a cobrança dos seus governantes, em prazo curtíssimo. Vai exigir um comprometimento tendo em vista os interesses da qualidade de vida.” Ele considera um sucesso reunir tanta gente do mundo todo, dez anos depois da reunião similar no Rio de Janeiro, para examinar o que aconteceu nesse prazo, as conquistas, as falhas e principalmente a pobreza. Essa pressão sobre governantes é, para ele, notória nos Estados Unidos e foi claramente admitida pela embaixadora daquele país no Brasil, em recente entrevista ao jornalista Bóris Casoy, da TV Record. Os EUA só estariam pedindo um time, a hora certa para ceder.
Phillipi Júnior considera ter havido no Brasil na década de 90 avanços significativos na área de políticas públicas, com a criação das leis de recursos hídricos – que estabeleceu a política ambiental –, da política nacional de desenvolvimento urbano e da política nacional de unidades de conservação. “Todas colocam a importância de contar com conselhos e com a participação social nesses conselhos, para definir a gestão a ser aplicada.”
Outros avanços, mas no caso específico do Estado de São Paulo, foram lembrados pelo presidente da Cetesb. Fernando Cardoso Reis disse que cresce a cada dia o número de empresas certificadas, refletindo a visão de empresários conscientes de que o capital se torna mais rentável quando obedecida a política ambiental e quando seus produtos são ecologicamente corretos. Entre outras medidas adotadas pela Secretaria do Meio Ambiente ele citou a reforma do decreto que regulamenta o poder de polícia dos órgãos fiscalizadores, a descentralização dos licenciamentos e o diálogo com as câmaras técnicas setoriais – cinco por enquanto, 17 no plano. O desafio, segundo ele, é preparar cidadãos ativos e nisso conta com o apoio das universidades.

 




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