|
Tanto os pedestres como os motoristas
se deparam com uma paisagem assustadora |
Imagine
ter de começar o dia enfrentando uma avenida por onde circulam
422 ônibus por hora no sentido bairro-centro. Uma confusão
aumentada por outros 4.444 veículos (o número 4 pode
não ser cabalístico, mas, neste contexto, é
infernal) passando ao mesmo tempo e na mesma direção.
A avenida Francisco Morato é a segunda com maior movimento
de ônibus na cidade. Só perde para a rua Teodoro Sampaio.
E está entre os 25 principais corredores de São Paulo.
A sensação
tanto do pedestre como do motorista é exatamente a mesma:
“Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. E o
pior: não dá nem para olhar para o céu e fingir
que não está nem aí. Mesmo porque, diante da
poluição visual com cartazes, faixas e out-doors de
todos os tamanhos, além dos fios que se embaraçam
pelo ar, é impossível pegar leve.
Cansados
desse pesadelo diário, representantes da comunidade resolveram
enfrentar o bicho. Pediram a colaboração da Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, que apresentou o problema
para o curso de pós-graduação “Estruturas
Ambientais Urbanas”. Sob a orientação do professor
Issao Minami, 50 alunos acompanharam, durante todo o semestre passado,
o dia-a-dia da avenida. Ouviram os moradores, comerciantes, pessoas
que transitam pela região. Fizeram uma pesquisa detalhada
de todo o entorno. E conseguiram desenvolver, com a colaboração
da comunidade e da Subprefeitura do Butantã, um projeto para
diminuir a poluição visual, resgatar a paisagem e
buscar a identidade e a história da região.
Importante
lembrar que não é a primeira vez que os paulistanos
apostam no empenho da FAU para solucionar os problemas da cidade.
“Os desdobramentos dessas atuações têm
sido notoriamente verificados”, orgulha-se a diretora Maria
Ruth Amaral do Sampaio. “A organização visual
da centenária Vila de Paranapiacaba e da avenida Angélica
ou os trabalhos de intervenção visual no Centro e
na conhecida Galeria do Rock são alguns exemplos da participação
dos alunos e professores.”
Abaixo
a poluição
O projeto
da FAU para tirar a avenida Francisco Morato do caos, garantir,
especialmente, a sua despoluição visual e resgatar
a sua história está longe de ser um simples trabalho
acadêmico. É, na verdade, uma amostra do que a população
consciente pode fazer pela sua cidade. Em tempos em que o Plano
Diretor parece mais ameaçar do que salvar São Paulo,
esse projeto é um exemplo da importância do diálogo
e do bom senso. Vale destacar que os 50 alunos são profissionais.
Entre eles estão arquitetos especializados em urbanismo e
paisagismo. Também
há fotógrafos, publicitários, designers, experts
em turismo ambiental. Enfim, gente que tem entre as suas tarefas
diárias o exercício de olhar, refletir e repensar
a qualidade de vida da cidade. Quem sabe a prefeita Marta Suplicy
arranje um tempinho entre suas tarefas diárias para conversar
com essa equipe e perceber que a avenida Francisco Morato merece
uma atenção especial. As mudanças sugeridas
pela população e avaliadas pela equipe da FAU não
têm nada de mirabolante ou faraônico. Exigem apenas
a vontade política de mudar para melhor.
“A
legislação, muito farta em leis e decretos, não
leva em conta a paisagem da cidade”, afirma o professor Issao
Minami. “Desde as normas de uso do solo, por exemplo, que
permitem a verticalização sem considerar as leis visuais
ou a possibilidade de percepção da topografia da cidade,
até a legislação atual de anúncios,
bastante genérica e permissiva em todos os lugares, todo
o arcabouço legal acaba tornando os espaços urbanos
muito iguais.”
Minami
lembra que a gestão e a fiscalização da paisagem
são inexistentes. “Por outro lado, inexiste também
uma manutenção de serviços urbanos, fundamental
para que a qualidade da paisagem urbana seja preservada. Assim,
por exemplo, a conservação de fachadas e calçadas,
na maioria das vezes, deixa a desejar. Enfim, a deterioração
física e ambiental revela uma omissão sucessiva de
gestões municipais e baixos padrões de manutenção
urbana, contribuindo para a degradação ambiental.”
A equipe
da FAU foi para as ruas fotografar, conversar com os moradores e
ouvir as suas queixas e reivindicações. Esse levantamento
incluiu também o histórico da região, o uso
e ocupação do solo, os sistemas de transportes, a
urbanização e os elementos paisagísticos, a
sinalização urbana existente, os serviços públicos,
o mobiliário urbano e a percepção dos usuários.
Ao
serem indagados sobre “o que você mudaria na avenida”,
a população sugeriu: “Aumentaria a arborização;
diminuiria o tráfego; melhoraria as calçadas; colocaria
uma passarela; implantaria um corredor de ônibus; aumentaria
o canteiro da avenida; aumentaria a largura da avenida; aumentaria
a iluminação; desviaria os caminhões; aumentaria
a largura das calçadas; diminuiria o barulho; diminuiria
a poluição visual e colocaria mais lixeiras”.
Diante
das reivindicações, a equipe traçou diretrizes
e propostas com o objetivo de fortalecer a interação
da comunidade com a região. Entre elas destacam-se: melhoria
dos anúncios promocionais ou indicativos através de
assessoria aos comerciantes; substituição do cabeamento
aéreo pelo subterrâneo ou pintura dos postes e troca
dos deteriorados; e projetos de paisagismo para praças e
ruas. Também prioriza melhorias no espaço do pedestre
com a disciplina de uso e ocupação das calçadas
e praças; padronização de calçamentos
de modo a garantir a qualidade estética, a resistência,
a segurança e a facilidade de manutenção; a
reordenação do mobiliário urbano e acesso para
idosos e portadores de deficiência. Propõe ainda a
reestruturação da circulação de veículos
com a qualificação das paradas de ônibus, pontos
de táxi e de carga e descarga de mercadorias; e melhorias
nas sinalizações de acesso a locais e instituições
importantes da região. A pesquisa com a população
foi sintetizada pelos alunos Ana Carolina Serra Fráguas,
Antonio Fabiano Júnior, Camilla Santino, Júlio César
de Freitas, Tatiana Elizabeth Domingos e Viviane Cristina Thomé.
Para
propor uma identidade visual para a avenida, os alunos foram buscar
elos na história do bairro. A equipe – integrada por
Antonio Roberto Zanolla, Benedito Tadeu de Souza, Daniela Nogueira
Secondo, Fábio de Castro Bortoloto, Guen Yokoyama, Ibiraci
Vieira Pinto, José Mendes André e Viviane Garcia Lima
– observou a evolução da região no contexto
da cidade. Estudou as instituições que foram se instalando,
como o Palácio dos Bandeirantes, a USP, o Jockey Club e o
Estádio do Morumbi, até chegar aos seus dois shoppings
e ao comércio diversificado. Constatou também que
a área tem como símbolo e referência a paineira
no entroncamento das avenidas Eusébio Matoso, Francisco Morato,
Lineu de Paula Machado, Vital Brasil e Waldemar Ferreira. Por essa
lembrança, a folha da árvore é o signo de comando
ou o logotipo que os alunos sugerem para reforçar a imagem
da avenida. Nos cartazes, nas placas, o projeto tenta apresentar
a região da paineira. E as cinco avenidas desse entroncamento
são identificadas pelas cinco pétalas da flor da paineira.
Cada uma delas com uma cor diferente. Por exemplo, a Waldemar Ferreira
é verde. Então, todos os elementos de sinalização
têm a cor verde.
|
|
Também
destacando a importância da configuração visual
da avenida, Fernanda Meneghello, José Roberto Yasoshima,
Lucia Balula e Ricardo Cauduro Alonso sugerem a ordenação
de todos os elementos publicitários e de sinalização
de ruas, praças e indicação de serviços
essenciais. A equipe desenvolveu ainda várias idéias
para padronizar o mobiliário urbano e promover a limpeza
visual. Com a despoluição, esse pessoal acredita que
a população irá redescobrir a avenida como
um local prazeroso para se viver, trabalhar, comprar ou passear.
Com
um olhar muito apurado, os paisagistas, urbanistas e designers foram
pontuando todos os pólos de cultura, saúde, educação
e lazer. Observaram a volumetria arquitetônica existente,
a forma como o comércio foi se implantando e fizeram o levantamento
de tudo o que polui visualmente o bairro. Esse trabalho contou com
a análise de Daniel Barone, Elizabeth C.I. Huang, Francisco
Borges Filho, Gilberto M. Rizzi, Ingrid M. Wanderley,
Luiz F. Cury, Moacir Cyrino Filho, Paulo Pinhal, Albano S. Martins
Júnior, Emilene Miossi, Paulo Silva Flores e Stela M. Rodrigues.
Cada um destes profissionais desenvolveu uma proposta explorando
o potencial paisagístico, promovendo especialmente a arborização
da avenida e arredores.
Todos
os grupos consideraram os prós e os contras que a avenida
oferece. Destacaram, entre as potencialidades, o seu papel de via
de distribuição de tráfego local e regional,
conectando o centro expandido com os bairros e outros municípios
a sudoeste, como Taboão da Serra, Embu e Itapecerica da Serra.
Observaram que a avenida é um eixo viário de passagem
interestadual, intermunicipal e local. Uma passagem das mais importantes
e, ao mesmo tempo, das mais críticas. Além do trânsito,
tem os problemas causados pela intensa atividade comercial e de
serviços. Esse movimento possui o saldo negativo de inúmeros
acidentes e atropelamentos. A expectativa da população
é que a instalação das duas estações
do Metrô previstas na avenida alivie o tráfego. Também
há a previsão da conclusão da alça oeste
do Rodoanel, que deve criar novas dinâmicas urbanas mas que
tanto pode causar aumento como diminuição de veículos
na região.
Os
50 integrantes desse projeto procuraram, no entanto, explorar aspectos
positivos compatíveis com a realidade. Nesse ritmo, conseguiram
até aliar a arquitetura da região à música.
André Luis Feliciano de Oliveira, Antonio Fernando Abrão,
Claudir Segura, Núria Molena e Paulo Henrique Frediani de
Moura garantem que é possível dar novas cores à
arquitetura óbvia e cinza da região e apresentam uma
proposta “intersemiótica” de intervenção
visual. Ou seja, fizeram um código cromático inspirado
na música “A Barcarola de Veneza”, de Mendelson.
Através da pintura dos prédios e estabelecimentos
comerciais da avenida em diferentes tons (o prédio correspondente
ao lá seria anil, o si seria violeta, o dó vermelho
, por exemplo), a população poderia decifrar uma seqüência
musical. Mesmo quem não tivesse sensibilidade para essa harmonia
teria os seus sentidos apurados pelas cores. Imagine ver os edifícios
e lojas da avenida com tons diferentes que espalhassem alegria,
melodia ou poesia pelo ar... Será que a população
seria capaz de sentir essa diferença?
Enfim,
vale o direito de sonhar, de planejar, de batalhar por uma cidade
melhor. Muito melhor. Por esse ideal, essa gente da FAU não
mede esforços nem criatividade. Tem promovido reuniões
com a comunidade, representantes da Prefeitura, Associação
Comercial e outras entidades para avaliar o futuro da avenida Francisco
Morato. Em agosto, fez uma apresentação dos projetos
no Centro Cultural do Butantã que teve uma recepção
muito positiva. “Não sei qual é a proposta que
a Prefeitura tem para a avenida, nem qual o rumo que o Plano Diretor
irá traçar, porém a FAU está à
disposição com suas idéias, experiências
e com seus cidadãos de boa vontade”, salienta o professor
Issao Minami. “Vale lembrar que esse grupo de trabalho é
integrado por pessoas que residem no ABC, Mogi das Cruzes, Jundiaí,
Sorocaba, Santos e também em outros Estados, como nas cidades
de Guaxupé e Alfenas, em Minas Gerais, e em Londrina, no
Paraná. Também há moradores da própria
Francisco Morato e arredores. São pessoas que se reuniram
com a disposição de pensar e repensar uma São
Paulo mais humana e mais bonita.”
|