NESTA EDIÇÃO

 
Maria Cristina: acervo precioso




 
Os pesquisadores em seu trabalho de restauro daquilo que a censura podou: trabalho lento e insistente de recuperação da memória do teatro brasileiro

São 6 mil processos de censura de peças teatrais entre as décadas de 30 e 70, que fazem parte do acervo do Serviço de Biblioteca e Documentação Técnica da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. A maioria é formada por textos inéditos e compõe os arquivos do Departamento de Diversões Públicas (DDP), órgão pertencente à Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, a partir da década de 30, que tinha a responsabilidade de liberar ou não as peças para todo o Estado, sendo depois substituído pelo antigo Departamento Estadual de Ordem Política e Social, o Dops.
Consciente da riqueza do material, o professor Miroel Silveira (leia texto à dir.), levou-o para o Departamento de Artes Cênicas da ECA, onde era professor até vir a falecer, em 1988. Desde então, esse acervo vem sendo mantido intocado, para angústia dos pesquisadores.

Foi pensando em liberar esse arquivo para consulta que uma equipe de três estagiários de iniciação científica do CNPq, coordenada por Maria Cristina Costa, professora da ECA, Bárbara Julia Leitão, diretora técnica de serviços da biblioteca, e Analucia Recine, bibliotecária responsável pelo projeto Miroel Silveira, passa vinte horas semanais fazendo o levantamento histórico, que futuramente terá uma base de dados on-line disponível para consulta.

Segundo Cristina, o acervo é uma preciosidade. “Contamos com uma porção de textos teatrais inéditos. Alguns não foram encenados e outros nem publicados.” Como é o caso da peça Beco sem saída, do autor polonês Slavonir, traduzida por Ziembinski em 1965, que tratava do último prisioneiro político na Polônia. Não foi encenada porque a empresa desistiu da apresentação, segundo explicação dos autos de censura. “O texto refere-se a um diálogo entre o chefe de polícia e o prisioneiro, que queria assinar um documento se redimindo de sua atitude política de esquerda, só que o chefe de polícia não acha que o prisioneiro deva tomar essa atitude, pois também concorda que o governo não presta e tenta convencê-lo do contrário”, exemplifica a pesquisadora estagiária Natasha Dias.

De Piolin ao teatro de revista

A coleção conta com uma mesma peça que, levada aos censores com dois títulos diferentes, foi proibida pelo mesmo motivo. Silvio e o Cigano e Sangue Cigano deveriam ter cortada do texto a palavra Lara. “Esse nome era do personagem principal chamado Conde de Lara e, provavelmente, havia alguém influente na época com esse nome”, explica a estagiária Karina Ribeiro Yamamoto.
Outro exemplo é a peça Cerca dura, de Augusto Boal, que, embora não tenha sido proibida, foi caracterizada como imprópria para 18 anos e teve de sofrer cortes nos palavrões para poder ser apresentada no Teatro de Arena.

São centenas de histórias como essas que podem trazer informações e conhecimento sobre o desenvolvimento da história do teatro em São Paulo e no Brasil, tendo por foco a época em que o teatro se profissionalizava, mostrando desde a dramaturgia das companhias circenses até o surgimento do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e das primeiras companhias profissionais. Piolin, Manuel da Nóbrega, teatro de revista e uma infinidade de diretores e autores compõem o panorama dessa produção teatral submetida à censura. “Pesquisar esses processos não vai só permitir uma análise da censura entre as décadas de 30 e 70, mas vai fazer também um levantamento da memória dos teatros brasileiros, da linguagem, do desenvolvimento da cultura brasileira. É um material que nos possibilita várias vertentes”, analisa a professora Cristina Costa. “Temos a hipótese de que a censura nessas décadas passou por critérios de mudanças de uma censura moralista em termos de bons costumes para uma mais política. Só com a pesquisa conseguiremos provar isso.”

Outro ponto de grande riqueza do material é o fato de as peças abarcarem o período áureo do desenvolvimento do teatro moderno brasileiro. “Como o teatro é uma obra efêmera e a reconstituição histórica tem que ser feita com base em publicações de jornal, sendo a crítica a maior fonte de informações, o que destaca-se nessa coleção”, afirma Cristina, “é o fato de estarmos lidando com os originais das peças de teatro que eram armazenadas com o processo de censura.”

A pesquisa vai permitir conhecer o nome dos censores, que muitas vezes eram pessoas conhecidas e instruídas. “Muitos intelectuais compactuavam e participavam dos órgãos de censura exercendo a função de censores”, conta a pesquisadora.

Mas nem tudo é tão simples como parece. Embora seja uma pesquisa de grande importância para a história do teatro brasileiro, a equipe está precisando lutar por mais verbas, e convida parceiros para essa empreitada. A coordenadora explica que uma pesquisa desse porte demanda um trabalho de infra-estrutura, de desmontagem de volumes, de copiagem e higienização que precisam ser feitos para que se possa disponibilizar as peças ao público interessado. Para isso querem fazer cópias eletrônicas, já que os originais não podem ser manipulados sem os devidos cuidados. “Precisamos de parceiros. Só assim conseguiremos dar um resultado de valor para a relíquia que temos em mãos.”


A biblioteca da ECA

Tudo isso só é possível graças à atuação do Serviço de Biblioteca e Documentação Técnica da ECA, mais conhecido entre os seus usuários como biblioteca da ECA. “Somos considerados uma referência em todo o Brasil na área de Comunicações e Artes”, ressalta Bárbara Julia Leitão, diretora técnica de serviços da biblioteca.

Além de livros, periódicos, teses da área de comunicação e artes, há também um acervo de slides de artes plásticas, arquitetura, cinema e quadrinhos produzidos pela própria equipe da biblioteca. Esse acervo possui aproximadamente 20 mil slides que são usados pelos professores em sala de aula e para pesquisa. Outra particularidade é o raro arquivo de mais de mil catálogos de exposições de artes.

A música é outra área que a biblioteca trata com carinho. São 10 mil partituras e um acervo de 5 mil discos de vinil, as famosas bolachas pretas, a maioria de música erudita. Bárbara conta que estão sendo repassados em CD para que os usuários possam emprestá-los.

São mais de 600 visitantes diários, sendo que há épocas de pico em que a biblioteca chega a receber 800 pessoas. E, para que o atendimento seja cada vez melhor e eficiente, a rede de computadores foi toda reformulada, sem contar o novo guarda-volumes, doado pelo Banespa, que otimizou o trabalho de gerenciamento de informação. “Agora o próprio usuário é quem faz isso”, explica Bárbara.

Um serviço muito procurado pelos amantes de bibliotecas é o Pronto-Socorro dos Livros, coordenado por Carlos Roberto Alves. A biblioteca oferece curso gratuito de conservação e restauro de livros e obras em geral. “Já formamos aproximadamente 180 restauradores de livros”, orgulha-se Alves.

A biblioteca da ECA também está presente nas comemorações dos 30 anos dos cursos de pós-graduação da ECA, que vêm acontecendo durante este ano todo. “Não queremos que a biblioteca fique fora dessa comemoração porque ela tem sido essencial para todas as conquistas que a ECA, com seus nove departamentos, tem conseguido durante esses anos de existência”, conta Cristina Costa.

Por isso a biblioteca vai fazer uma exposição, no dia 21 de outubro, com as dissertações e teses já defendidas que viraram livros, como é o caso de Televisão objeto: a crítica e suas questões de método, de Eugênio Bucci, e do Dicionário da História e do Ofício Fotográfico do Brasil, de Boris Cossoy, entre outros. E também as que viraram produções videográficas de grande reconhecimento, como Distrado: Meggaan observa um humano, do professor Artur Matuck, e Tigipió, de Pedro Jorge de Castro.

Outro lançamento importante será o Manual de Dissertações, em fase de elaboração. “Com esse manual queremos uniformizar a formatação das teses para que no futuro possamos inserir na proposta de biblioteca virtual que estamos planejando”, conta Cristina Costa.


Um homem de mil atividades

O professor Miroel Silveira era paulista de Santos, filho de Valdomiro Silveira, o criador da literatura regional no Brasil, e de Maria Izabel G. Silveira, memorialista. Essa união permitiu a Miroel crescer em um ambiente propício às atividades culturais. Diplomou-se bacharel pela Faculdade de Direito da USP, iniciando, nessa época, a profissão de jornalista e escritor.

Em 1938, recebeu o primeiro prêmio na Academia Paulista de Letras, pelo livro de contos Bonecos do Engonço, publicado pela Editora Vecchi. Participou ativamente da administração cultural da cidade de São Paulo: foi membro fundador do Conselho Municipal de Cultura nas cidades de Santos e de São Paulo, diretor artístico da primeira Companhia Teatral Bibi Ferreira e diretor do “Suplemento Literário” do Diário de Santos.

Foi programador, redator, consultor literário, correspondente, crítico teatral, membro de comissões julgadoras, professor, pesquisador, teatrólogo, diretor, tradutor, adaptador de romances, roteirista, argumentista e autor de musicais. Foi esse homem versátil e criativo que a ECA acolheu no Departamento de Teatro, Cinema, Rádio e Televisão (CTR) em 1968.

 




ir para o topo da página


O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]