Às
vésperas das eleições, a rua Maria Antonia
parou o trânsito. E reuniu os paulistanos para lembrar, em
um evento especial, os tempos difíceis da censura, do regime
militar e da repressão estudantil. Estudantes da USP e do
Mackenzie apresentaram suas orquestras, corais. E sob o ritmo da
MPB, a população viu fotos e cenas daquela época.
Lembrou momentos inesquecíveis como os festivais da Record,
com Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque.
Uma história contada com muita sensibilidade pela sétima
edição de A Revista, publicação bimestral
da Editora Takano que foi lançada durante esse ato cultural.
Os exemplares continuam sendo vendidos (custam R$ 30,00) no Centro
Universitário Maria Antonia e toda a verba arrecadada vai
ser revertida para a restauração de seus edifícios.
Além
da homenagem especial ao centenário de nascimento de Sérgio
Buarque de Holanda, a edição reúne artigos
sobre os acontecimentos que marcaram o ano de 1968. A revista é
acompanhada também de um fac-símile de Os Lusíadas,
de Luís de Camões, em sua primeira edição
de 1572, poema que foi utilizado pelo jornal O Estado de S. Paulo
em substituição às notícias censuradas.
Na época, a publicação causou espanto. É
essa mesma surpresa que os leitores têm quando se deparam
com os cantos desse fac-símile sendo substituídos
pelas notícias que foram censuradas na época. Há
também um livreto com textos de José Mindlin, Arnaldo
Jabor e uma entrevista com Ruy Mesquita sobre o AI-5 e a censura.
O pacote inclui, ainda, um DVD com imagens sobre aquele período.
Sem
saudade
“Saudade
daquele tempo, temos certeza de que ninguém tem”, afirma
Regina Echeverria, diretora de redação de A Revista.
“Lembrar que a ditadura militar decretou um ato institucional,
totalmente inconstitucional, para limitar passos, idéias,
criação e quase até os nossos pensamentos serve
para deixar em alerta permanente as novas gerações:
que elas não permitam jamais situação semelhante
em nosso país.”
A edição
conseguiu reunir histórias de gente que fez o Brasil. A de
Sérgio Buarque de Holanda, um dos nossos maiores pensadores,
está nas primeiras páginas. O cotidiano na família,
no trabalho, vai sendo apresentado por Victor Knoll com delicadeza.
Uma vida que vai se alinhavando no dia-a-dia da cidade. “Guardou
lembranças da vida de menino, do tempo em que morava na rua
Piauí e depois na avenida Angélica”, escreve
Knoll. “Antes, já morara na Maria Antonia, colada à
Higienópolis – aliás, que mais tarde abrigaria,
no número 294, a Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras, onde, por pouco mais de dez anos, desenvolvera sua atividade
como professor da USP. Assim,
o menino Sérgio Buarque de Holanda circulava pelas ruas de
Higienópolis, um bairro de casas espaçosas, com jardins
cuidados e amplos quintais. O bonde era o 21.”
Knoll
lembra que ao lado do homem de ciência, historiador, havia
o escritor, o homem que sabia lidar com as palavras, dono de uma
escrita requintada. “O entrelaçamento de bom humor,
curiosidade, irreverência e generosidade compõe a personalidade
de Sérgio Buarque de Holanda. É certo que esse homem
não se reduz a tais traços. Há sempre no modo
de ser de uma pessoa algo de imponderável. Mas, por alguns
lances da crônica de sua vida, são aqueles que se mostram
de maneira bem nítida.”
A força
da MPB como movimento político e como porta-voz da massa
estudantil é destacada pela jornalista Mônica Waldvogel.
“Os brasileiros cantarolavam nas ruas o manifesto tropicalista
de Caetano, mas nem notaram que o ano ia terminar sem os ares de
sua graça e da de Gil”, escreve. “Naquele tempo,
os dias corriam assim: jornais sem notícias, artistas entre
mudos e tartamudos, passeatas canceladas e canções
censuradas. Não eram bocas fechadas: eram bocas tapadas.
Mas é possível que, ironicamente, houvesse alguma
inteligência no estúpido aparelho repressor montado
pelo AI-5. A prisão de Caetano e Gil mostra que, embora os
escrúpulos de consciência já tivessem sido mandados
às favas, alguém deve ter percebido que a única
e verdadeira revolução em curso se produzia na Música
Popular Brasileira, sob o comando da dupla Caetano/Gil.”
Mônica
descreve, com detalhes, a ameaça que pesava sobre os artistas.
“Em 1968, Geraldo Vandré compôs um hino de resistência
à ditadura militar, incendiou a massa e teve de fugir para
o Chile. Chico Buarque transformou a música Roda Viva em
peça de teatro e os atores foram espancados em cena por anticomunistas.
Pouco tempo depois de ganhar um Festival Internacional da Canção,
com a profética Sabiá, Chico também teve de
se mandar para a Itália, imaginando em que dia voltaria para
o seu lugar.”
No
artigo “A covardia da tortura: o Brasil diz nunca mais”,
o jornalista César Giobbi lembra das listas oficiais e não-oficiais
de mortos e desaparecidos que se estenderam até 15 de agosto
de 1979, quando foi assinada a Lei da Anistia. “Daí
para a frente começou outra luta. A de tentar desfazer o
que estava feito. Ou pelo menos tentar reparar, atenuar que fosse,
o mal que atingiu milhares de brasileiros e suas famílias.
Uma luta que, embora não sangrenta e sem vítimas a
lamentar, foi ainda mais difícil que a primeira, pois teve
de enfrentar barreiras e inimigos não visíveis, como
a falta de vontade política de voltar ao assunto, tirar esqueletos
dos armários, mexer em feridas recentes. Sem contar nossa
burocracia.”
No
livreto à parte, José Mindlin conta a história
de resistência para as novas gerações. “Por
maior que fosse seu talento, cultura, inteligência e sua capacidade
criativa, o que lhe permitiram realizar a obra que o imortalizou,
seria absolutamente impossível Camões imaginar que
Os Lusíadas seria utilizado, quatrocentos anos mais tarde,
como instrumento de oposição a um regime repressivo,
e como resposta corajosa e divertida às imposições
da censura e imprensa no Brasil. Foi, no entanto, o que aconteceu
quando O Estado de S. Paulo, numa das fases mais dramáticas
da ditadura militar, que imperou no Brasil de 1964 a 1985, se viu
obrigado a deixar de publicar textos informativos considerados inconvenientes
pelos censores a serviço do regime.”
Um
autêntico kit cultural
Não
basta ser gráfica, tem que participar. Pode-se dizer que
foi com essa idéia na cabeça que a gráfica
Takano, uma das maiores do País, criou, há cerca de
dois anos, A Revista, uma publicação que nasceu para
divulgar e apresentar as qualidades do trabalho em papel da empresa
e hoje se tornou uma jóia rara em termos de publicação
cultural. Mas, como toda jóia de alto valor, de acesso restrito.
A Revista – hoje em seu sétimo número –
não é ainda vendida e apenas os ungidos que têm
seu nome inserido no mailing da publicação podem travar
contato com sua qualidade editorial. “A Revista nasceu para
divulgar o trabalho da Takano, mas já tínhamos a intenção
de transformá-la em publicação cultural”,
afirma Marcos Weisntock, diretor-responsável da revista.
“Quem sabe com essa parceria com a USP não podemos
empreender outras e, assim, aumentarmos nosso público leitor?”,
avança ele, que é cineasta na origem e que em sua
passagem pela TV Cultura criou projetos vitoriosos como o Metrópolis
e o Roda-Viva.
É
justamente essa experiência cultural e multimídia que
Weisntock – ao lado da diretora de redação Regina
Echeverria, autora de Furacão Elis – levou para A Revista.
Quem pensa que ela é apenas uma belíssima revista,
se engana. Ela é mais do que isso. É um verdadeiro
“kit cultural”. Seus diretores não querem só
fazer uma publicação de extremo bom gosto e bem escrita.
Eles ainda oferecem mimos a seus leitores que são de encher
os olhos. Se nesta revista sobre 1968 o presente vem em forma de
um DVD e de uma edição fac-similar de Os Lusíadas,
em outras não foi diferente. Quando tratou da Era JK, por
exemplo, os leitores receberam, junto com a publicação,
um fac-símile de uma edição de O Cruzeiro da
época e um CD com discursos e jingles políticos dos
anos 50 e 60. Quando o tema foi o Rio de Janeiro, o presente veio
na forma de mais um fac-símile, dessa vez de um livro de
poemas de Vinícius de Moraes. Nada mau. “Não
queremos fazer uma revista com leitura apenas vertical. Ela é
como um museu – é importante pelo conteúdo,
mas também pela polarização de cultura que
oferece e pelas discussões que proporciona”, afirma
Weinstock.
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