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Quando estreou em Roma, em 1816, O Barbeiro de Sevilha foi um desses fracassos retumbantes, capazes de destruir a carreira de qualquer compositor. Um violão com uma corda quebrada provocava infindáveis risadas na platéia, as vaias tomavam o teatro, interrompiam as árias, faziam calar os cantores. No dia seguinte, no entanto, como se nada tivesse acontecido, o espetáculo foi ovacionado, aplaudido de pé. Surgia, naquele momento, o maior sucesso da história do teatro musical de todos os tempos. O efeito irresistível das cenas cômicas, sua ironia com tons de crítica social e a beleza de sua melodia – razões para esse sucesso que atravessa os séculos – podem agora ser vistos na USP, que produz sua primeira ópera. No próximo dia 29, o Anfiteatro Camargo Guarnieri recebe a obra maior do italiano Gioacchino Rossini em uma apresentação única, feita sob a forma de concerto. A montagem completa, com cenários e figurinos, deve acontecer em abril de 2003.

Ensaio geral: atores e músicos se preparam para a primeira montagem de uma ópera na Universidade

“Será como o trailer de um filme: serão apresentadas árias e trechos, em que o público terá uma idéia do que está por vir”, explica Maécio Gomes, produtor, cantor da ópera e aluno do curso de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. A montagem de O Barbeiro de Sevilha foi uma iniciativa do curso de Canto Lírico e do laboratório de ópera (L’ópera), ambos criados este ano pelo Departamento de Música. O laboratório, primeiro da América Latina com a função de pesquisar e montar óperas dentro de uma universidade pública, trouxe para trabalhar com os estudantes da ECA a Orquestra Sinfônica da USP e os cantores do Teatro Municipal de São Paulo. Dessa maneira, músicos experientes e alunos participam da montagem, misturando-se tanto no coro quanto na orquestra. “O grande valor desse projeto é a oportunidade que os estudantes vão ter de estar no palco com cantores profissionais. Essa é uma vivência inédita, uma grande chance de adquirir experiência”, diz o professor Mário Ficarelli, chefe do Departamento de Música. Segundo ele, no entanto, apesar de ser importante para a formação dos alunos, não há informação sobre nenhum projeto como esse no Brasil. “A montagem de uma ópera é essencial para quem estuda canto lírico. É um processo extremamente complexo em que quase todas as formas de arte – as artes plásticas, a literatura, a música e, às vezes, até o balé – estão reunidas.”

Um gênero popular

Ao longo dos anos a ópera, que já foi um gênero extremamente popular, foi se tornando elitista, privilégio de uns poucos interessados. Para aproximar as pessoas que ainda não freqüentam e não conhecem espetáculos desse “teatro musical”, o L’ópera pretende montar pelo menos uma obra por ano. “Partimos do pressuposto de que ninguém pode gostar do que não conhece. Queremos dar a oportunidade de as pessoas conhecerem, terem a ópera em um local próximo e sem custos”, diz Ficarelli. Esse desejo de atrair o público também orientou a escolha dessa primeira obra, que parece ser ideal para a tarefa. Uma das óperas mais populares da história, O Barbeiro de Sevilha conta a história de um amor cheio de percalços e tem, por isso, um enredo bastante simples. O conde Almaviva apaixona-se pela bela Rosina, mas sua amada é pupila e protegida do Dr. Bartolo, um bufão que pretende casar-se com ela. Ajudado por Fígaro, um esperto barbeiro, Almaviva, ao longo da trama de dois atos, vai arquitetando planos para conquistar Rosina e livrá-la das garras de Bartolo. Primeiro, tenta passar-se por um soldado bêbado – quer que ela o ame pelo que é e não pelo seu título de conde. Mais tarde, se disfarçará ainda de assistente do professor de música D. Basílio, para só no final revelar sua verdadeira identidade e casar-se com a donzela.

Com libreto de Sterbini, baseada na peça do francês Beaumarchais, a história, que à primeira vista pode parecer tola, não só consegue divertir, com seus personagens cômicos que beiram o caricato, mas tem também um sério compromisso com certos aspectos sociais, o que representou, na época, uma absoluta inovação para o gênero. A vida e os costumes da burguesia e da nobreza são ridicularizados, enquanto o personagem do povo, o barbeiro, é apresentado como astuto e perspicaz, único capaz de reconhecer abertamente seu interesse por dinheiro.

Marcado pelo Século das Luzes, herdeiro de Diderot e Voltaire, Beaumarchais se inscreve na linha do livre-pensamento e, mais de uma década antes que a Revolução Francesa viesse trazer suas radicais mudanças, já anunciava em suas peças um sopro revolucionário, contestando as verdades do Antigo Regime. É dele também o texto que seviria de base a Mozart para que compusesse sua ópera As bodas de fígaro.

Em suas comédias espirituosas, marcadas pela tradição da Commedia dell’Arte italiana, esse autor francês vale-se da ironia e dos personagens insolentes para atacar os privilégios e questionar a suposta superioridade da aristocracia, o até então intocável “sangue azul”.

Todas essas características, com a simplicidade dramática, estão conservadas na composição de Rossini; sua música, no entanto, é complexa e exige dos cantores uma técnica sofisticada. “Em O Barbeiro de Sevilha há trechos extremamente velozes, o que requer uma grande maturidade vocal e o trabalho árduo de uma infinidade de detalhes. Por isso, nessa primeira etapa, foi dada uma atenção especial à parte musical, antes que se passasse a dar ênfase à questão cênica”, explica Maécio Gomes.

Cada cena, cada diálogo foram trabalhados à exaustão para que, só depois, fossem unidos ao som da orquestra. Nos ensaios, que vêm acontecendo desde abril, cerca de três vezes por semana, as vozes foram modeladas, individualmente e em conjunto, cantores e coro, ária por ária, pelo diretor musical, o maestro Joaquim Paulo do Espírito Santo, que também fica responsável pela regência nessa apresentação em forma de concerto. O maestro Carlos Moreno, titular da Osusp, rege a montagem final.

“Quando a música já está amadurecida e a técnica vocal dominada, o personagem surge muito mais facilmente”, diz Gomes. Depois do dia 29, uma espécie de último teste para o trabalho musical, em que os cantores se movimentarão pouco e vestirão trajes de concerto, virão o trabalho de interpretação teatral, o contato com os cenários e figurinos e o posicionamento dos cantores em cena, últimos passos para que a ópera esteja, enfim, completa. O Barbeiro de Sevilha, ópera de Gioacchino Rossini.


Apresentação única no dia 29 de outubro, às 20h, no Anfiteatro Camargo Guarnieri. Rua do Anfiteatro, 109, Cidade Universitária.

 




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