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Uma das últimas fotografias tiradas pela família imperial, antes da Proclamação da República.
 
 
 
Acima, menina não identificada. Abaixo, vendedor de vassouras, em São Paulo,1910
 
 

Nem só de príncipes e princesas viveu a fotografia do Brasil do século 19. Logo que chegou ao País, a técnica da daguerreotipia realmente era privilégio de uma classe abastada e o retratado era, normalmente, um representante da nobreza ou da elite agrária. No entanto, ao contrário do que se costuma supor, a popularização da fotografia se deu rapidamente. Em poucos anos, representantes de uma classe média ainda pequena e incipiente – comerciantes, militares, profissionais liberais, anônimos, enfim – passaram também a ter sua imagem perpetuada nos retratos. Por outro lado, se não são apenas nobres os retratados, também não foram só os fotógrafos do imperador – um grupo de pouco mais de dez nomes que entraram para a história – os que trabalharam no ofício. Nem só de Marc Ferrez, Pastore, Militão e Gaensly se fez a fotografia brasileira. E é para revelar isso e de que forma a fotografia se disseminou pelo território nacional que foi lançado, no dia 12 de novembro, o Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro. Publicado pelo Instituto Moreira Salles, o livro – fruto de mais de 20 anos de pesquisa do historiador Boris Kossoy, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e um dos maiores estudiosos do tema – retira do anonimato os aventureiros que construíram uma trajetória para a nossa arte fotográfica.

Com mais de 900 verbetes, em que são feitas minibiografias desses profissionais que atuaram no País entre 1833 e 1910, o dicionário mostra que a esmagadora maioria dos daguerreotipistas, depois intitulados “photographos”, era de estrangeiros que vieram com o sonho de fazer fortuna no novo continente e que, para isso, desbravaram o interior de um Brasil arcaico. Nos navios a vapor, pelas estradas de ferro, andando em lombo de burro, eles carregavam suas câmeras pesadas, seus desajeitados equipamentos, e iam de cidade em cidade, de vila em vila, oferecendo os seus serviços. “Não me conformava com a idéia desses poucos nomes, sempre repetidos, que parecem ser os únicos que fizeram a história da fotografia durante um século no Brasil. Isso me parecia absurdo”, diz Kossoy. “Trabalho com os anônimos que foram os que de fato construíram uma imagem do País. Os álbuns de família, por exemplo, foram feitos por esses desconhecidos, que permaneceram desconhecidos e que têm hoje, com o Dicionário, o seu lugar na história.”

   
O arqueduto da Carioca e o casario da Lapa, no rio de Janeiro, em 1865  
Vista de Salvador em 1860
 

Caminhos e fronteiras

O interesse pela história da fotografia e pelo estudo da documentação iconográfica é ainda recente no Brasil. Até o final da década de 70, tudo o que existia de material sobre o ramo eram crônicas, objetos nostálgicos, de lembrança, e não havia registro de nada feito de maneira sistemática. É só a partir de meados de 1980 que surgem as primeiras publicações nacionais e apenas na década seguinte trabalhos de cunho científico começam a ser desenvolvidos com maior freqüência dentro das universidades. Mesmo assim, incursões aprofundadas permanecem raras e, nesse sentido, a obra de Kossoy tem sido apontada por especialistas nacionais e internacioanis como pioneira.

Inicialmente apresentado na ECA como tese de livre-docência, em 2000, o Dicionário tem origens ainda nas pesquisas que Kossoy realizou para a sua tese de doutorado, defendida em 1979 e posteriormente publicada em livro. Nela, Kossoy buscou estabelecer as primeiras bases para uma compreensão gradativa da irradiação da fotografia no Brasil do século 19. Nesse trabalho, as características da expansão da atividade foram entendidas em conexão com a estrutura urbana da época e com sua configuração marcada pelo sistema colonial de produção. Mas sua maior contribuição, talvez, tenha sido começar a rastrear os fotógrafos desse período. A obra trazia uma relação de cerca de cem desses estrangeiros itinerantes que para cá vieram, acompanhada de um breve levantamento das datas em que atuaram e onde exerceram suas atividades. Estava criado o “embrião” para o rastreamento sistemático que o historiador passaria a desenvolver.

Apesar de incipiente, a lista acabou servindo como referência para outros pesquisadores e arquivistas, que passaram, eles também, a trocar dados com Kossoy. “Essa obra é como um jogo de quebra-cabeça que foi se armando, adquirindo dimensões enormes e se completando ao longo do tempo”, explica. Uma grande rede de colaboradores em todo o país foi sendo montada. Além disso, o autor foi colecionando dados em bibliotecas, arquivos públicos e coleções particulares. Kossoy concebe o Dicionário como uma obra aberta, em processo, e que deve ser completada em futuras edições com novas referências. “Com esses 900 verbetes, a minha esperança é que se tenha retorno de eventuais descendentes desses anônimos falando sobre acervos, sobre dados, enfim, como eles trabalhavam. Tudo isso deve ser somado ao que já existe.”

A Praça dos Remédios, em Manaus, 1820

A epígrafe do livro, tomada de Jorge Luís Borges – “O dicionário e a enciclopédia são os mais deleitáveis dos gêneros literários. Para os trabalhos da imaginação não há maior estímulo” –, parece revelar que o formato de dicionário não foi escolhido ao acaso. Através das mini-histórias desses anônimos, mostrando por onde passaram, como e com quem trabalharam, mostra-se a penetração da fotografia no território. Um subproduto do livro é um mapeamento da atividade fotográfica, em que são apresentados os profissionais que trabalharam em cada província, década por década.

Quando surgem no Brasil, em 1840, os retratistas, pouco mais de 30, estão maciçamente concentrados no Rio de Janeiro, capital do Império. Os daguerreótipos, bastante caros para os padrões da época, eram ainda um privilégio de poucos (Kossoy apresenta uma lista de preços, comparando-os com preços de outros produtos). A placa de cobre, amalgamada a uma fina lâmina de prata, lembrava um espelho, e a imagem era nela registrada. Ali estava o produto final, que, ao contrário da fotografia como é conhecida hoje, não permitia cópias. Essa característica de ser um retrato único, somada aos sofisticados estojos em veludo e às molduras douradas em que vinham apresentados, davam aos daguerreótipos quase um aspecto de jóia e eles foram, é verdade, muitíssimo apreciados, bem ao gosto do padrão burguês vigente.

No entanto, apesar de a corte ter sido, nesse momento, o mais importante centro da atividade – lá estava concentrada a maior clientela –, os itinerantes, já iam em busca de mercado nos cantos mais recônditos. Em suas andanças, muitas vezes exercendo ainda um outro ofício para sobreviver – não eram raros os fotógrafos-dentistas, fotógrafos ourives, relojoeiros e até cabeleireiros –, esses homens registraram com suas câmeras as imagens do brasileiro de um determinado período histórico, o indivíduo e o seu grupo familiar, seus costumes, seu vestuário, seus ritos de passagem. Hoje impensável, uma prática bastante comum era a de fotografar os mortos, e esses retratos eram, muitas vezes, as únicas imagens dessas pessoas.

À esquerda, retrato de uma anônima (não se sabe se era escrava), no Rio de Janeiro, em 1870. Acima, retrato de uma família não identificada, sem data

Uma história de jornais

Como a propaganda já era a alma do negócio, para conseguir fregueses, tanto os profissionais de grandes estúdios como os ambulantes divulgavam seus serviços em periódicos, e é pela recuperação desses reclames – em que estão descritos os cenários de que dispunham, a tecnologia que utilizavam, e como se apresentavam aos clientes – que o autor reconstrói essa história. “A reprodução de trechos dos anúncios no Dicionário é também uma forma de dar voz a esses homens, de mostrar como eles se dirigiam ao seu público, de recuperar o sabor do tempo”, comenta. O surgimento de novas técnicas fotográficas também pode ser estudado tomando por base esses textos espalhados, ao longo dos anos, por pequenos e grandes jornais de todos os Estados.

Já em 1850, a daguerreotipia caiu em desuso. “Foi uma transição muito rápida”, explica Kossoy, e o retrato se popularizava com o ambrótipo e o ferrótipo. Os cartes de visite tornam-se o grande sucesso da época. Nesses pequenos cartões, uma fotografia sobre papel albuminado era colada sobre um cartão-suporte, e eles eram oferecidos como sinal de afeto a amigos e parentes. Um outro grande momento de expansão registrado no Dicionário dá-se em 1862, quando a fotografia passa a ter como suporte o papel. Segundo o professor, “é a partir da difusão da técnica da fotografia sobre papel que acontece a democratização da imagem do homem”.

Um outro dado que surge dos verbetes e do mapeamento da atividade fotográfica nos Estados é como os fotógrafos estrangeiros foram, gradativamente, sendo substituídos por profissionais locais. Nas duas ou três primeiras décadas do ofício no Brasil, os fotógrafos eram quase todos estrangeiros – norte-americanos, suíços, alemães e franceses. Depois disso, no entanto, a situação passa a se inverter. O número de nacionais no ramo cresce e eles logo se equiparam e ultrapassam os pioneiros. Esses primeiros fotógrafos genuinamente brasileiros foram os aprendizes dos estrangeiros, rapazes que, trabalhando nos estúdios como seus ajudantes, acabaram aprendendo a arte, seus truques, e passaram a substituir os mestres.

Trampolim de pesquisas

Os fotógrafos do século 19 tinham como principal atividade o retrato. Era eternizando a imagem de pessoas e famílias em pomposos cenários à moda vitoriana que eles ganhavam a vida. Ainda assim, alguns deles encontraram tempo para se dedicar à fotografia paisagística e documentar belas cenas do traçado urbano, das cidades, das vilas, do comércio e das fazendas dos barões do café. “Sem esse documento visual que é a fotografia, não se poderia conceber hoje o estudo histórico. Cada vez mais a história e as ciências sociais se valem de fontes iconográficas”, diz Kossoy. Para o professor, a mais importante contribuição desse seu livro é justamente abrir pistas e fornecer as fontes para que outros pesquisadores possam ir atrás desses fotógrafos, descobrir materiais, documentação sobre eles e partirem para suas próprias monografias. “Esse é, eu acredito, o trampolim para que seja desencadeado um processo de pesquisa e de investigações sobre a fotografia. Indo além, o material presente no Dicionário extrapola o interesse da fotografia como forma de expressão e é extremamente importante para a história social, a história da publicidade, da arte e da imprensa, já que você encontra aqui pequenos jornais de que ninguém jamais ouviu falar.”

Para se constituir como fonte de estudos futuros, o historiador não prescindiu das referências, que foram todas valorizadas. Em cada verbete é apresentada a fonte em que o registro foi buscado e abre-se, dessa maneira, a possibilidade de datar documentos hoje perdidos no tempo, usando parâmetros historiográficos precisos e seguros. “Não existe uma história da fotografia desvinculada da história social”, define Kossoy. “Esse trabalho de pesquisa das imagens tem que ser feito por nós, latino-americanos, porque é através dos documentos iconográficos e de seus autores que poderemos descobrir muito desta América, que ainda está encoberta.”

Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro – Fotógrafos e ofício da fotografia no Brasil (1833-1910), de Boris Kossoy, Instituto Moreira Salles, 404 páginas, R$ 78,00.

 

 

 

O início de tudo, em 1833

O homem que reconstrói a história que há por trás das imagens e de seus autores anônimos tem os olhos grandes, quase saltados das órbitas. Ainda que se movam sem pressa, a uma observação mais atenta parecem dois obturadores verdes, tomados por uma curiosidade latente, por um desejo de capturar tudo, todo o entorno, de não deixar que nada seja tragado pelo tempo. Quando começou a trabalhar, Boris Kossoy dividia o seu tempo entre a câmera fotográfica e a prancheta de arquiteto. No primeiro estúdio que abriu, dedicava-se ao retrato e à ilustração e desenvolvia, paralelamente, as imagens que dariam origem à série “Viagem ao fantástico”. As fotografias que tirou nesse período estão nas coleções permanentes de importantes instituições, como o Museu de Arte Moderna de Nova York, o Museu Metropolitano da mesma cidade, a Biblioteca Nacional de Paris e o Museu de Arte de São Paulo (Masp).


Hoje professor do Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Kossoy tem se dedicado, nos últimos anos, à atividade de pesquisador e teórico da história da fotografia no Brasil e na América Latina. Com mais de dez livros publicados, sua obra mais conhecida é Hercule Florence, 1833: a descoberta isolada da fotografia no Brasil. Com grande repercussão internacional, o livro prova que, sete anos antes de Daguerre anunciar sua descoberta à Academia de Ciências de Paris, um outro francês, Hercule Florence, radicado no Brasil, já imprimia rótulos de farmácia e diplomas em papéis sensibilizados com sais de prata. Essas experiências, feitas por Florence na Vila de São Carlos, onde hoje fica Campinas, permanceram obscuras até a publicação do livro de Kossoy e é a partir da data do experimento, 1833, que ele marca o ponto inicial do seu Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro – 1833-1910.

 




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