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Estou pronto. Levem-me para longe daqui, disse o rei Édipo depois de descobrir que havia matado o pai (Laio) e casado com a mãe (Jocasta), atraindo a desgraça à cidade de Tebas. A tragédia narrada por Sófocles guarda muitas semelhanças, e também diferenças, com o caso de Suzane Louise von Richthofen, a moça de 19 anos que tramou a morte dos pais Manfred e Marísia, em São Paulo. No mito grego, o moço marcado pelo destino mata o pai confundido com um assaltante de estrada; um ato de legítima defesa, como se diria hoje. Na mansão do Brooklin, a jovem trama friamente a morte dos pais, executados pelo namorado e o irmão deste; um ato de vontade que assusta até os que conhecem profundamente os desvios da personalidade humana. O rei de Tebas culpa-se, amaldiçoa-se, desespera-se, vaza os próprios olhos e pede que o escorracem do reino; a princesa Richthofen vai ao motel, monta álibi, descabela-se no enterro dos pais, depois vai a churrasco para comemorar mais um aniversário. Se o crime é diferente, o castigo é o mesmo: o pronto afastamento do convívio social. No mito grego, para aplacar a ira do destino contra Tebas; no caso paulista, para prevenir novos crimes.

Na análise de casos de parricídio (como de outros crimes), o ponto central está em estabelecer a responsabilidade do autor. Uma questão ética. No pensamento de Sófocles, interpretado pelos estudiosos da tragédia grega, a responsabilidade não se prende ao ato realizado, mas à atitude moral de quem o pratica. Édipo não pretendia cometer crime, mas, tendo-o executado materialmente, assumiu a suposta culpa e se puniu. Suzane preparou o crime em minúcias, não pretendia assumi-lo e fez de tudo para fugir da punição. Na concepção moderna e cristã, não existe culpa sem a vontade de praticar a má ação. Só do ponto de vista grego o rei Édipo deve ser moralmente responsabilizado pela morte do pai. Na tragédia dos Richthofen, a filha deve ou não deve ser responsabilizada? Os psiquiatras que digam, a justiça que julgue.

“Defeito de fabricação”

Num ponto os psiquiatras estão de acordo: que o parricida precisa ser isolado da sociedade, porque não tem recuperação. Mas se deve ir a julgamento ou não é outra história. Arthur Guerra de Andrade, professor associado do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP e presidente do Conselho Técnico Administrativo do Grea (Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas), até admite a possibilidade de Suzane ir para uma casa de custódia, embora o mais provável é que seja julgada e condenada, mas não fique na cadeia mais que quatro ou cinco anos, graças a expedientes que a lei prevê e os advogados experientes saberão usar – ré primária, bom comportamento, cumprimento parcial da pena.


Por que um parricida não se recupera? “Suzane está num grupo de pessoas que têm como que um defeito de fabricação, responde de uma forma diferente do habitual ao estímulo externo”, diz Guerra. “Com o irmão, demonstra remorso; em outras ocasiões, frieza impressionante. Não é ingênua nem idiota, mas inteligente (estudava direito na PUC), planejou o crime, pesou os prós e os contras.” Aos não psicopatas pode ocorrer em sonhos a idéia de matar os pais, mas assim que acordam reagem e se autocensuram; no trânsito podem perder a razão, xingar o outro motorista, mas normalmente se contêm.
No caso de quem é capaz de matar os próprios pais, “a resposta ao estímulo é qualitativamente anormal, a personalidade é diferente”. Outro psiquiatra, Guido Palomba, entende que o autor desse tipo de crime dificilmente pode voltar à convivência social sem representar risco. “O recidivo é ainda pior do que da primeira vez, tende a sofisticar, a melhorar a forma do crime, de tal modo que não possa ser descoberto de novo.” O psiquiatra afirmou em entrevista à TV Assembléia, na segunda-feira, que em sua vida profissional nunca encontrou nenhum caso de parricida ou matricida em que o autor fosse uma pessoa normal. Para voltar-se contra os pais a pessoa tem que ter alguma deformidade. Não há outros fatores desencadeantes do crime, nem o uso de drogas, nem uma educação muito rígida, nem más companhias.

Guerra lembra que entre pais e filhos sempre há atritos, que podem chegar a brigas de fato e até à tentação de matar. Mas há um limite e esse pensamento (emocional) não passa para a vontade. Quando passa, já é patológico. Existe como que uma reação química. “Para mim, como psiquiatra, é como um pingo de tinta em copo de água: tudo muda. É o ponto fundamental. O que acontece depois são detalhes, planejamento. No caso de Suzane, ida ao motel, recibo para álibi, busca do irmão. Nesse caso, a personalidade da pessoa é diferente da normal, ela fecha um livro e pega outro.” O médico ressalva que fala teoricamente, porque não viu a moça, não a examinou e conhece o caso pela imprensa. Até admite que haja equívoco de sua parte, mas uma coisa é certa: “O comportamento e a forma de resposta qualitativa causa o estrago”. Também Guerra destaca que não se trata de loucura ou psicose, a pessoa não se considera uma iluminada, uma louca para se internar, de sair nua pelas ruas, não é neurótica de cidade grande preocupada com mil coisas que costumam tirar o sono, mas não impedem um comportamento adequado socialmente.

Quando pólos iguais se juntam

O que mais impressiona os psiquiatras no caso Suzane é sua frieza afetiva. “São os pais que normalmente morrem antes dos filhos, mas quando a morte é abreviada pelo próprio filho, com requintes de crueldade e sutileza, é incompreensível do ponto de vista médico.” O comportamento dos amigos da acusada que, depois do assassinato do casal, fizeram festa e churrasco em um sítio para Suzane (embora àquela hora provavelmente ainda não soubessem quem foi o autor ou autores do crime), também chocou o psiquiatra. “É pavoroso. E quando a história é muito estranha há algo para ser cuidadosamente investigado.” O mesmo sentimento domina Palomba quando considera a frieza da moça e dos rapazes assassinos, que se associaram no crime: “Só na física pólos iguais se repelem; na vida, se juntam”. De onde vem tanto ódio aos pais?, perguntaram ao psiquiatra no programa de TV. “Não é propriamente ódio”, respondeu. “Se fosse, teria que se manifestar de outra forma. Os pais eram um empecilho e matá-los representava a resolução imediata dos fatos.” Quanto a Guerra, ainda não está convencido de que o motivo desencadeante do crime tenha sido o desejo da moça de ficar com a casa da família. “Ou a história não está bem contada. Há uma trama forte que ainda não apareceu.”

Casos de filhos que matam os pais são raros, informa o professor da USP, que já atuou em casos de crimes de grande repercussão, entre eles o do aluno da Medicina da Santa Casa que metralhou espectadores em cinema de São Paulo. Esses delitos ocorrem independentemente da condição social ou econômica dos envolvidos, mas é claro que repercutem muito mais quando se trata de gente rica ou conhecida.

Embora convencido de que os parricídios ou matricídios tenham causas em distúrbios da mente, Guerra não deixa de alertar para o papel da psiquiatria. Diz que cada vez mais se deve trabalhar com a idéia de prevenção, informação e educação da sociedade. “Impedir que a situação chegue ao estágio em que chegou no caso Richthofen.” Diz ainda que o caso serve para reavaliar os relacionamentos entre pais e filhos. ”Não se deve apontar apenas o que está errado, mas reforçar o que dá certo.”

Quem entenderá a mente humana?


“Ó cidadãos de Tebas, pátria nossa! Vede bem Édipo, decifrador dos terríveis enigmas! Quem não invejaria a sorte de tão poderoso homem? E agora vede em que abismo de desgraças submergiu! Por isso, não tenhamos por feliz homem algum, até que tenha alcançado, sem conhecer doloroso destino, o último de seus dias.” (O coro, no final de Édipo Rei.)

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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