Nos
dias 23 e 24 passados, no Theatro Pedro II, em Ribeirão Preto,
foi feita a execução inédita da Ladainha de
Nossa Senhora, pela Orquestra Sinfônica de Ribeirão
Preto e pelo Coral de Alunos do Departamento de Música de
Ribeirão Preto – ligado à Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP. Segundo os organizadores, essa apresentação
coloca Ribeirão Preto como um dos centros ativos da musicologia
histórica brasileira, uma vez que a Ladainha de Nossa Senhora
é “um dos mais significativos aportes” à
musicologia do Brasil nos últimos anos. De acordo com os
professores do departamento, muitos fatores levam a crer que a autoria
seja de Faustino Xavier do Prado. Assim, essa obra passa a ser a
mais antiga composição coral-sinfônica da cultura
musical brasileira. Os concertos também marcaram o lançamento
da 1ª Bienal de Música de Ribeirão Preto, que acontecerá
em 2004.
Nos
concertos, o solista da Orquestra Sinfônica de Ribeirão
Preto foi Fernando Corvisier, professor de Piano do Departamento
de Música de Ribeirão Preto, que interpretou o Concerto
KV 488 de Mozart, e, sob a batuta de Cláudio Cruz, homenageou
os 80 anos de Gilberto Mendes, um dos mais importantes compositores
contemporâneos do Brasil. Corvisier interpretou três
obras sinfônicas desse mestre santista: Ponteio, Issa e O
último tango em Vila Parisi.
O
Grupo de Mogi das Cruzes
Em
1984, Régis Duprat, professor titular da ECA, que também
desenvolveu as diretrizes musicológicas do trabalho, publicou
um artigo na Revista do Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional comunicando a localização,
em Mogi das Cruzes, de um conjunto de partituras qee seriam as mais
antigas referências musicais do Brasil. Entre elas estava
a parte de violino de uma ladainha. Alguns anos mais tarde, o historiador
mogiano Isaac Grinberg enviou ao mesmo professor partes vocais também
de uma ladainha, sem saber do que se tratava. Após
uma primeira análise, constatou-se ser a mesma música
da parte de violino das partituras descobertas em 1984, conhecidas
como Grupo de Mogi das Cruzes.
A transcrição,
transformando a escrita antiga em escrita moderna, foi realizada
pelo professor Diósnio Machado Neto, também do Departamento
de Música de Ribeirão Preto, que passou mais de um
ano lendo todos os tratados teóricos europeus escritos entre
o século 16 e o 18 para endender e decifrar os manuscritos.
Ele transcreveu as partes em partitura – já que nos
manuscritos originais só havia as partes “cavadas”,
ou seja, partes individuais de cada voz constituinte da música.
Também
corrigiu e completou o texto em latim, de acordo com a prosódia
original de Faustino Xavier do Prado.
A segunda
parte de violino foi reconstruída pelo professor Rubens Ricciardi,
coordenador do Departamento de Música de Ribeirão
Preto, além de ter realizado o contínuo, ou seja,
a harmonização do teclado acompanhador, que na época
era realizada por cifras e improvisada a cada execução.
Por fim, o grupo confeccionou novas partes cavadas para viabilizar
a execução sinfônica da obra.
Ainda
segundo os professores envolvidos na restauração da
Ladainha, a obra localizada pelo professor Duprat tem grande valor
não só histórico, mas também artístico.
Ao mesmo tempo em que o patrimônio brasileiro é, sem
dúvida, o mais importante das Américas no que diz
respeito a obras da segunda metade do século 18 em diante,
ele desfila em silêncio incômodo para épocas
anteriores a 1760.
Essa
escuridão só não é total devido à
existência de dois conjuntos de manuscritos: o Recitativo
e Ária, de 1759, e as músicas do Grupo de Mogi das
Cruzes. Em ambos os casos, a pesquisa musicológica esteve
a cargo de Régis Duprat. Em relação ao Recitativo
e Ária, obra já bastante conhecida, Duprat localizou
os manuscritos no acervo de Alberto Lamego, realizou a transcrição
e, junto à Orquestra de Câmara de São Paulo,
regida por Olivier Toni e tendo como solista a soprano Marília
Siegl, promoveu a estréia no Teatro Municipal de São
Paulo, em 1961. No que diz respeito ao Grupo de Mogi das Cruzes,
um artigo datado de 1984, assinado por Jaelson Bitran da Trindade
e o próprio Régis Duprat, comunicou a localização
de um acervo de papéis musicais cuja datação
preliminar apontava serem obras escritas ao redor de 1735. A partir
de 1990 as obras “mogianas” foram gravadas com as transcrições
realizadas por Régis Duprat e publicadas em 1999.
Justamente
na década de 1990, uma grande polêmica se instaurou
nos corredores da musicologia nacional, na qual o eixo da discussão
era a atribuição da autoria dos papéis, até
então assentada principalmente no mestre-de-capela da Igreja
do Carmo de Mogi das Cruzes, Faustino Xavier do Prado.
A obra
executada pela Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto
e pelo Coral de Alunos do Departamento de Música, nos dias
23 e 24, faz parte desse intrincado problema, mas com revelações
que podem forjar um novo cenário, algo distinto do que se
tem atualmente difundido, já que algumas inscrições
no códice são mais claras que as conhecidas, no que
diz respeito à autoria de Faustino Xavier do Prado. Isso
porque se trata da Ladainha de Nossa Senhora, que até então
se encontrava desaparecida. No conjunto localizado em 1984 só
existia a parte de “Rabeca”, quer dizer, só havia
o primeiro violino. Portanto, faltavam as partes de baixo e segundo
violino, além de todo o coro (soprano, contralto, tenor e
baixo).
A composição
da Ladainha de Nossa Senhora, ainda segundo os professores, remonta
a qualquer data entre 1725 e até, no máximo, 1745.
Quanto à data só há suposições
a partir do tipo de papel e da escrita, o que faz excluir a possibilidade
de a obra ter sido composta posteriormente a 1750. Faustino Xavier
do Prado nasceu em 1708, portanto, já estaria apto a compor
em meados da década de 20 do século 18.
A Ladainha
de Nossa Senhora é uma composição barroca com
resíduos renascentistas. É assinada pelo autor, que
acrescentou ainda a expressão “O fim coroa a obra”,
o que, entendem os pesquisadores, seria uma manifestação
significativa de autoria, algo raro no repertório colonial
brasileiro. Uma obra completa, ela tem mais de 300 compassos. “Com
certeza passará a fazer parte do repertório de concertos
no Brasil como exemplar único de um instigante barroco paulista,
conceito antes não cogitado”, afirma Ricciardi.
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