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Militão: observador de costumes,valores e aspirações geralmente pouco explícitos em documentos escritos

Militão Augusto de Azevedo, autor de retratos tirados entre 1862 e 1885, jamais imaginaria naquela época que suas fotos poderiam fazer parte de um trabalho tão moderno e original de um artista plástico do século 21. O vídeo Poses do 19 é resultado do estudo feito pelo artista Gavin Adams, sob curadoria geral de Solange Ferraz de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho, ambas historiadoras do Museu Paulista da USP.

Mais famoso por suas fotografias que mostram a cidade de São Paulo do século 19 – que deram origem ao Álbum Comparativo da cidade de São Paulo, 1862-1887 –, Militão também foi responsável por milhares de retratos de personalidades e de pessoas comuns que passaram por seu ateliê, o “Photographia Americana”: o imperador D. Pedro II, a imperatriz Teresa Cristina, Castro Alves, Joaquim Nabuco, Amaral Gurgel e José Maria Lisboa, entre profissionais liberais, militares, senhoras, crianças e escravos.

No entanto, o traço mais revelador de todas as fotografias de Militão está no aspecto comum, massificado, que a criação da carte-de-visite trouxe. Até pouco tempo antes da invenção da fotografia, a pintura de retratos era algo que podia ser pago somente por uma pequena aristocracia.

 
A esposa em pé, ao lado do marido, uma postura típica do acervo do artista, que retratou também recém-alforriados, crianças e prostitutas

Depois da primeira fotografia tirada por Joseph Nicéphore Niépce na França, em 1826, e da invenção oficial do daguerreótipo creditada a Louis Jacques Mandé Daguerre, também na França, só que em 1839, a humanidade estava a poucos passos de utilizar em larga escala esse artifício da reprodução de imagens tão comum aos olhos de hoje. Com a invenção da impressão em papel, a criação do negativo – que trouxe a possibilidade de se obter várias cópias de uma mesma fotografia – e do retrato de corpo inteiro, a carte-de-visite tornou-se febre nas principais cidades brasileiras a partir da década de 1860. Através dela, pessoas de grupos sociais menos favorecidos podiam posar em cenários especiais, com roupas que davam um ar aristocrático e muitas vezes sentados ou apoiados em móveis dignos das mansões da época.

É comum encontrar nas fotos de Militão negros recém-alforriados mas bem vestidos, ao mesmo tempo em que ele também fotografava um senhor branco com todos os seus escravos em segundo plano, maltrapilhos e descalços. O acervo de retratos do ateliê de Militão possibilita compreender o momento histórico e social da São Paulo do século 19, momento em que indivíduos puderam vivenciar um pouco de seus sonhos de nobreza com a fotografia de estúdio.

Outro exemplo que assusta hoje são os retratos de crianças recém-falecidas em seus pequeninos caixões, ornamentadas com flores, com as mãozinhas cruzadas e, geralmente, com os olhos propositadamente abertos mirando a câmera. Para a sociedade atual, acostumada a lidar cada vez menos com a morte, parece não ser muito compreensível registrar a última lembrança de alguém. Acontece que naquele momento era ainda comum a morte prematura por motivos hoje considerados contornáveis.

A maior parte da documentação que compõe a Coleção Militão Augusto de Azevedo é formada pelo que se acredita serem os livros de controle e mostruário dos dois estúdios que teve, e que trazem mais de 12 mil retratos. Estes encontram-se em seis encadernações de couro, com datas gravadas nas lombadas, colados inteiros ou recortados de modo a identificar apenas o rosto do cliente. A palavra “repetição”, tão óbvia diante de tantos retratos parecidos, é a que mais fascina historiadores e, no caso do vídeo Poses do 19, inspira o artista plástico Gavin Adams. Através dessas fotos é possível enxergar os padrões de gosto, valores, aspirações e sentidos geralmente pouco explícitos em documentos escritos.

 
O trabalho do fotógrafo conferia a pessoas de todas as classes sociais um elegante ar aristocrático

Com nove minutos de exposição, o vídeo procura mostrar o individual que na verdade é o coletivo. O diferente que é igual. Cada cartão de visita foi considerado um fotograma de um filme de animação. O artista escolheu separá-los e depois agrupá-los segundo seus aspectos visuais: homens em pé de chapéu e bengala, homens em pé apoiados em poltronas à esquerda, homens em pé apoiados em poltronas à direita, esposas em pé apoiadas em poltona com seus maridos sentados à direita, esposas em pé apoiadas em poltrona com seus maridos sentados à esquerda, crianças vivas, crianças mortas, prostitutas que se misturam a imagens de freiras e de senhoras recatadas – pois todas foram retratadas na mesma posição. A trilha sonora foi desenvolvida especialmente para o trabalho. Parece uma batida eletrônica misturada com um pouco de samba. Enquanto as imagens são passadas e sobrepostas rapidamente, seguindo a velocidade da música, algumas expressões permeiam a tela. Coisas como: “89% dos homens aparecem sentados” e, em seguida, “Conforto é poder”. Na parte em que aparecem somente prostitutas, a expressão “Que modos!” demonstra um certo ar de ironia e bom humor da produção.

Depois de ver 1.338 retratos, o espectador não se cansa e parece ter visto muito menos. Segundo palavras do próprio Adams: “A tensão típica dos cartões de visita é assim explicitada: aquela do indivíduo em contraposição ao estereótipo, do souvenir pessoal em oposição ao caráter industrial de massa desse formato fotográfico”.

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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