Os
braços negros do homem, com suas veias saltadas, cortam com
um facão raízes de mandioca que tira da terra. Meninos,
quase nus, todos pretos, sobem em galhos de árvores, dependuram-se.
Outros, tão iguais, mergulham no rio, à sombra das
árvores, e fazem festa jogando água, enquanto as mulheres,
nas margens, lavam suas tigelas. Meninas que dançam, que
correm na chuva. Negros em lombos de burros, tocando pequenos pandeiros,
deitados em redes. Negros nas portas de suas cabanas feitas de barro,
pedaços de pau, galhos de coqueiros. As imagens são
de quilombos, de mocambos do Brasil. Para nossos olhos tão
viciados em avenidas e arranha-céus, em lixões e favelas
das grandes cidades, elas parecem arcaicas, perdidas no tempo. No
entanto, não foram feitas por nenhum retratista errante do
século 19, mas ao longo da última década pelo
fotógrafo Ricardo Teles, que as apresenta em seu novo livro,
Terras de preto, da Editora Abooks.
Lançado
no dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra e
de Zumbi dos Palmares, Terras de preto documenta, em 132 fotografias,
os hábitos e o cotidiano da população de nove
das mais significativas comunidades rurais negras espalhadas pelo
interior do Brasil. Remanescentes dos quilombos dos anos de escravidão,
estima-se que elas sejam hoje mais de 900, descendo desde o Amazonas
até São Paulo, no Vale do Ribeira.
Ao
longo de nove anos, Teles viajou, pesquisando e fotografando esses
grupos. Seu primeiro contato aconteceu por acaso, quando descobriu
o quilombo de Frechal, a 390 quilômetros de São Luís,
no Maranhão. “Estava fazendo uma outra reportagem no
Maranhão e acabei me deparando com essa comunidade, uma das
pioneiras na conquista da posse coletiva das terras de seus ancestrais”,
conta. “Fiquei tão espantado com o que vi, tive um
interesse tão imediato, que resolvi ir em busca dessa história.”
Em
1988, o movimento negro brasileiro começou a se articular
e garantiu, através de um dispositivo na Constituição,
o direito às terras quilombolas. A partir de 1995, quando
se completou o tricentenário da morte do líder de
Palmares, Zumbi, essa questão da demarcação
ganhou novos espaços. Pouco antes, Teles concebera o Projeto
Quilombos, uma espécie de embrião de Terras de preto.
Já
em 1996 surgiam os primeiros resultados. Uma menina pequena, do
quilombo de Frechal, se deixa ficar em um colo de mulher, provavelmente
da mãe, para ter seus cabelos trançados. A foto, que
hoje compõe o volume, ao lado de outras, foi publicada em
1996 no livro Axé, da série São Paulo de Perfil,
editada pela Escola de Comunicações e Artes (ECA)
da USP, sob a coordenação da professora Cremilda Medina.
A
semelhança na diversidade
O reconhecimento
legal trouxe para os povos quilombolas enormes mudanças,
desde materiais, como a chegada da luz elétrica, até
psicológicas, com o crescimento da consciência e do
sentimento de identidade entre os grupos. As formas internas de
organização também se tornaram mais fortes
e essas comunidades passaram a reclamar, como quaisquer outros cidadãos,
os serviços públicos, como saúde e educação.
“Surge no cenário da sociedade rural brasileira um
novo personagem: o negro dono de terra que exige seus direitos,
guardião das matas e sertões de todos os cantos do
País”, escreve Teles no prefácio.
Em
suas andanças, o fotógrafo passou a registrar as imagens
das primeiras localidades beneficiadas pelo dispositivo que garante
a posse coletiva das terras: Trombetas e Igarapé dos Pretos,
no Pará; Rio das Rãs e Mangal, no sertão da
Bahia; Conceição das Crioulas, em Pernambuco; Jamary
dos Pretos, no Maranhão; Kalunga, na Chapada dos Veadeiros,
Goiânia; e o Vale do Ribeira, em São Paulo. Os locais
são distintos, com paisagens e contextos econômicos
diferentes. Alguns grupos, no meio da mata, com abundância
de água, são ribeirinhos. Outros
vivem a rotina da caatinga e da seca, ou ainda a do cerrado da Chapada.
“Cada uma dessas culturas negras acabou adaptando, à
sua maneira, a cultura regional, que, por outro lado, também
foi por eles influenciada”, explica o fotógrafo. Exemplo
dessa capacidade de releitura da cultura afro-brasileira é
a festa da marujada, que Teles fotografou no Mangal. Com raízes
portuguesas, nessa localidade a marujada recebe outros tons e ganha
ares de um congo.
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Além
das influências regionais, os quilombos têm uma característica
marcante que explica sua permeabilidade cultural. Apesar de isolados,
nunca foram organizações fechadas de negros fugidos
de seus senhores, mas refúgios, núcleos para os quais
convergiam todos os oprimidos pelo escravismo – mulatos, índios
e brancos marginalizados –, e cada um deles, ao longo dos
anos, foi deixando a sua marca.
Longe
de apresentar africanos em estado puro, o livro revela brasileiros
desconhecidos, que guardaram dos escravos, seus ancestrais, as técnicas
comunitárias de plantio e as práticas religiosas,
como representantes de uma cultura de resistência que se perpetuou.
Terras de preto parece buscar um equilíbrio entre as diferenças
e as semelhanças que caracterizam os quilombolas, e essa
ambição está expressa na forma como foi organizado,
distante de pretensões científicas e antropológicas,
com um propósito claramente documental. Para Teles, “existe
uma semelhança muito grande entre os grupos e só a
fotografia permitiria uma igualdade de tratamento, só ela
mostraria o que há de comum. As fotos falam por si, e não
é preciso se perder nos detalhes”. Sem textos explicativos
ou legendas que se interponham entre as imagens – há
apenas um índice no final –, as fotografias de localidades
distintas, dispostas aleatoriamente, uma ao lado da outra, vão
mostrando a terra, os homens, seus alimentos, as festas, os jogos,
as casas, os animais, e criam assim uma narrativa, “a história
de um Brasil desconhecido, de um patrimônio cultural do País”,
como diz Teles.
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Mostra
apresenta os negros no cinema
Para
saudar o Dia Nacional da Consciência Negra, o Sesc Pompéia
expõe as fotografias de Ricardo Teles desde o dia 20 de novembro.
Mas o público que quiser ver os negros em movimento pode
acompanhar, na USP e na Estação Ciência, nos
meses de dezembro e janeiro, a mostra “Negras Imagens”,
que traz um recorte da figura do negro no cinema. Com filmes como
Faça a coisa certa, de Spike Lee, e Rio, Zona Norte, de Nelson
Pereira dos Santos, a mostra, promovida pelo Departamento de História
da USP e pela Estação Ciência, poderá
ser vista, simultaneamente, nos dois locais. Haverá ainda,
depois de algumas sessões, debates com especialistas e professores
da USP. A seguir, a programação completa da mostra.
Dezembro
A cor púrpura, 1985, de Steven
Spielberg.
Dia 3, às 19h30, e dia 4, às 18 h, na sala de vídeo
do Departamento de História.
Dia 5, às 14h, e dia 7, às 15h, no auditório
da Estação Ciência.
O
assalto ao trem pagador, 1962, de Roberto Farias.
Dia 10, às 19h30, e dias 11 e 12, às 18h, na sala
de vídeo da História. Após a sessão
do dia 12 haverá debate com o antropólogo João
Batista de Jesus Félix.
Dia 12, às 14h, e dia 14, às 15h, no auditório
da Estação Ciência.
As
aventuras amorosas de um padeiro, 1975, de Waldir
Onofre.
Dia 17, às 19h30, e dia 18, às 18h, na sala de vídeo
da História. Após a sessão do dia 18 haverá
debate com o sociólogo e documentarista Noel Carvalho.
Dia 19, às 14h, no auditório da Estação
Ciência.
Janeiro
Cotton Club, 1984, de Francis Ford Coppola.
Dia 7, às 19h30, e dia 8, às 18h, na sala de vídeo
da História.
Dia 9, às 14h, e dia 11, às 15h, no auditório
da Estação Ciência.
Faça
a coisa certa, 1989, de Spike Lee.
Dia 14, às 19h30 , e nos dias 15 e 16, às 18h, na
sala de vídeo da História. Após a sessão
do dia 16 haverá debate com a professora do Departamento
de Antropologia da USP, Lilian Schwarz.
Dia 16, às 14h, e dia 18, às 15h, no auditório
da Estação Ciência.
Rio,
Zona Norte, 1975, de Nelson Pereira dos Santos.
Dia 21, às 19h30, e dia 22, às 18h, na sala de vídeo
da História.
Dia 23, às 14h, e dia 25, às 15h, no auditório
da Estação Ciência.
O
Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas (FFLCH) da USP fica na av. Prof. Lineu
Prestes, 338, Cidade Universitária. O telefone é 3091-3701.
A Estação Ciência está localizada na
rua Guaicurus, 1.373, Lapa, telefone 3675-8828. A entrada é
gratuita. Mais informações podem ser obtidas pelo
telefone 3673-7022, ramal 219.
O Sesc Pompéia fica na Rua Clélia, 93. O telefone
é 3871-7700. A mostra Terras de Preto acontece até
o próximo dia 30. A entrada é gratuita. A visitaçào
pode ser feita de terça a sábado, das 9h às
22h, e aos domingos e feriados, das 9h às 20h.
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