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O
lugar do escritor é qualquer um, é o mundo. Pode
ser empoleirado em uma escada, como Silviano Santiago, na foto
acima, ou em uma mesinha frugal com uma velha máquina
de escrever, como no caso de Lygia Fagundes Telles, que ganhou
um computador que nunca tirou
da caixa. Não importa. O que vale não é
onde se escreve ou como, mas o que se escreve |
Certa
vez, enfrentando pela enésima vez a pergunta nada original
de qual seria o papel do escritor, Ignácio de Loyola Brandão,
o autor de Zero e O Verde Violentou o Muro, entre outros, não
resistiu e disparou: “Qual o papel do escritor? O sulfite”.
Da mesma forma, muitos autores já devem ter se deparado com
a recorrente questão a respeito de seu lugar de trabalho.
Ser um tanto mitificado, aparentemente – para os leigos de
olhares distantes – pairando acima do bem e do mal do cotidiano
comezinho, o escritor é encarado como um ser que se enclausura
em uma sala escura, apinhada de livros e se põe lá
a pensar, pensar, pensar mais um pouco, até que uma hora
– eureka! – a idéia genial é soprada pela
tal de musa inspiradora – talvez Calíope, a da eloqüência
– e pronto: mais uma fornada de páginas, mais uma obra-prima
certinha para ser encadernada e apresentada a leitores ávidos.
Bonito, não? Só que a história não é
bem assim. Nem o dia-a-dia autoral é tão genial e
inspirado, nem o local onde eles geram seus livros é tão
idílico ou idealizado.
Para
responder se não definitivamente, mas veementemente, à
curiosidade de como e onde muitos autores brasileiros trabalham,
está aí mesmo O Lugar do Escritor (Cosac & Naify,
R$ 77), um belíssimo livro de muitas fotos – além
de alguns textos saborosos – de Eder Chiodetto, ele mesmo
dublê de fotógrafo e jornalista. Mas é a primeira
dessas duas personas quem dá o tom ao trabalho. São,
ao todo, 73 fotos em preto-e-branco de 36 autores, desde nomes consagradíssimos
da nossa literatura, como Adélia Prado, Haroldo de Campos,
Luis Fernando Verissimo, Ariano Suassuna e Rachel de Queiroz, passando
por uma geração mais nova formada por Paulo Lins –
autor do onipresente Cidade de Deus –, Bernardo Carvalho,
Bernardo Ajzenberg e Patrícia Melo, até chegar àqueles
que, agora, já estão escrevinhando seus textos eternamente
em alguma nuvem lá em cima, como Jorge Amado, Campos de Carvalho
e João Cabral de Melo Neto.
O poeta
de Cão sem Plumas, inclusive, merece um destaque, assim como
Chiodetto. Só a obstinação jornalística
do fotógrafo conseguiu dobrar a insistência pétrea
de João Cabral em não ser retratado. E o poeta, morto
em 1997, tinha uma explicação bem plausível
– para ele – para recusar a foto:
“Não
sou mais um escritor. Estou cego. Para escrever, preciso ver. Não
leio, não consigo escrever também. Sou um ex-escritor”.
Nem
essa declaração melancólica a respeito de seu
estado, fruto de uma barbeiragem médica, demoveu Chiodetto
de seu intento. Sua insistência, quase impertinência,
contudo, deu resultado. E João Cabral se deixou fotografar.
Com barba por fazer.
“Você
quer me fotografar no meu escritório? Aqui não tem
escritório. Não escrevo mais. Além do que,
estou barbado. O barbeiro só vai chegar às sete horas.
Você é insistente, hein, garoto? Tá bom, eu
sento aqui nesta cadeira e você faz a foto”.
É
justamente essa foto de João Cabral, de olhos mortos, barba
por fazer, mas encarando o fotógrafo para além da
foto, que ilustra a capa desta edição do Jornal da
USP. Não, não a procure aqui nessas páginas.
João Cabral é sempre de primeira.
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Nenhum
homem é uma ilha, escreveu John Donne, a não ser
que seja ilha de si mesmo, cercado de livros para todos os lados,
como Haroldo de Campos, abaixo, ou Ariano Suassuna, abaixo e
à direita, ilhado em seu quarto de leitura, dividindo
sua cama com um outro amor, os livros. Ou será que é
também uma ilha o homem que se entoca a escrever, iluminado
apenas por um facho de luz? Verissimo,
aí ao lado, que responda |
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Uma
coisa da fala do poeta que sozinho teceu várias manhãs,
no entanto, pode ser alastrada para todos seus companheiros de ofício
e sofrimento criativo: se João Cabral não tinha escritório,
muitos outros autores também não. É aquela
história lá de cima, do começo desse texto,
quando se fala do local idealizado... Não há o local
exato, posto que não é o como se escreve, mas sim
o que se escreve.
Adélia
Prado, por exemplo. A poeta mineira escreve à mão,
em cadernos – “é meu kit poesia” –,
em qualquer lugar de sua casa. A mãe, a dona de casa e a
escritora convivem em harmonia. Por isso, Adélia foi flagrada
com seu “kit poesia” na longa mesa de jantar de sua
sala. “O escritório é a minha vida.” E
ponto.
Também
Ariano Suassuna não tem um “escritório”
ou um gabinete para escrever. Também à mão,
como Adélia, Suassuna cria seus textos em uma pequena mesa.
A seguir, datilografa em uma máquina antiga. Depois, vai
ler o que escreveu em um quarto onde o que sobressai é uma
cama enorme, repleta de livros.
Nesse
ponto da nossa história talvez seja o momento de duas perguntas.
A primeira: ninguém escreve em computador? E a segunda: livros,
onde estão os milhares de livros que perseguem a vida de
todo escritor, como crê a vã filosofia? Certamente
não na cama de Suassuna. Então, vamos às respostas
– que são dadas, na verdade, por Eder Chiodetto.
Primeiro,
há computadores, sim. Muitos, por mais que um deles especificamente
só exista em sua forma virtual. Ou seja, ele está
lá, na casa de Lygia Fagundes Telles, mas nunca saiu da caixa.
Na residência da escritora paulistana quem dita a ordem das
palavras é a máquina de escrever, mesmo. O PC, ganho
de seu editor, dormita eternamente no caixote.
E os
livros? Ah, esses estão em todos os lugares do escritor.
Pois
se não há um lugar predeterminado para que ele escreva,
também não há aquele para guardar os livros.
Afinal, esses pequenos invasores com lombadas vão, sorrateiramente,
dominando todo o território possível, até tomar
posse do espaço, se alastrando por todos os ambientes da
casa. Que o diga Haroldo de Campos, cercado de volumes e mais volumes,
Ferreira Gullar, Moacyr Scliar e Carlos Heitor Cony. A lista é
imensa. Todos são reféns de seus próprios livros
e os dos outros. Todos vivem entre paredes de papel, com maior ou
menor volume de bagunça – “orgânica”,
por assim dizer, um belo eufemismo para o caos instaurado e a preguiça
da arrumação –, todos estão felizes com
seus milhares de tomos. Todos, não. Quase.
Porque no livro de Chiodetto há um personagem que prima pela
assepsia livresca. Trata-se do neo-imortal Paulo Coelho, que, segundo
afirma, tem linha direta com os anjos.
Nas
fotos nas quais aparece, há uma janela enorme debruçada
sobre o mar carioca, um salão maior ainda, uma mesa frugal
de vidro e os pés descalços do mago. Não há
livros. Mas, em compensação, há uma brilhante
banheira de hidromassagem, que ninguém é de ferro
e escrever cansa, ou vocês acham que é tudo só
inspiração? Mas os livros devem estar lá, em
algum lugar. Nem que seja em alquimia.
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Calderón
de la Barca disse que a vida era sonho. Mas ela é também
matéria-prima para o escritor. A vida vivida no interior
de Minas, como a de Adélia Prado (abaixo), ou na fazenda,
como a de Rachel de Queiroz. Tudo é inspiração,
não importa onde, nem quão corrido possa ser
o cotidiano. Ou tão tranqüila como parece ser
a vida do neo-imortal Paulo Coelho, que escreve em seu salão
com vista para a praia, sem livros aparentes mas com uma reluzente
banheira |
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Falar
de livros e autores é uma tentação inesgotável
para quem gosta do assunto. Não haveria páginas suficientes
para se escrever ad eternum sobre o tema, mas se a vontade é
imensa, o espaço é limitado. Livros podem não
ter fim, como escreveu Jorge Luís Borges, mas textos jornalísticos,
sim. Então, vamos aterrissando aos poucos.
Chiodetto,
para dar à luz ao seu trabalho, teve uma gestação
longa, de cinco anos. Começou como uma pauta especial para
a Folha de S. Paulo, inspirada no volume-mater Writer’s Desk,
da fotógrafa americana Jill Krementz. Das páginas
do jornal a idéia virou obsessão e Chiodetto saiu
fotografando alucinadamente os autores que encontrava pela frente
– ou aqueles que ia buscar em outros lugares e com mais intensidade,
como a semi-eremita Hilda Hilst, enclausurada há mais de
três décadas em seu sítio nas proximidades de
Campinas, ou Marilene Felinto, que de si só deu um três
por quatro para ser reproduzido e um quarto vazio. Mas
valeu a pena. E como.
Há
fotos para todos os gostos, há fotos para saciar a curiosidade,
para reforçar clichês ou para eliminá-los. E
há uma fotografia em especial: a de Luis Fernando Verissimo,
escrevendo em um quarto escuro de sua casa porto-alegrense, iluminado
apenas por um facho de luz. Verissimo, recolhido e tímido
como é, não escreve em um escritório. Ele escreve
numa toca.
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