O índio que empurra o avião – a contradição entre natureza e cultura – representa as idéias
do modernismo brasileiro

 
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A exposição dá destaque à produção de Heitor Villa-Lobos, que se inspirava nos sons que o rodeavam

 

É pois aconselhando as maiores precauções que eu apresento ao gentio da terra e de todas as terras a libérrima Revista de Antropofagia.

E arregalando a dentuça.

Gente: pode ir pondo o cuim a ferver.

Assim Alcântara Machado finalizou o texto de sua apresentação para o lançamento da Revista de Antropofagia, publicada em 1928. Um exemplar da primeira edição da obra pode ser visto pelos admiradores do modernismo brasileiro na exposição “Brasil: 1920 – 1950. Da antropofagia a Brasília”, instalada na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) de 1o de dezembro de 2002 a 2 de março de 2003.

Como o próprio nome já mostra, a exposição pretende fazer com que o visitante percorra quatro décadas de Modernismo no Brasil, vistas através dos olhos das artes plásticas, fotografia, arquitetura, literatura, música, cinema e das presenças estrangeiras. Sua proposta: trazer uma abordagem multicultural que estabeleça um diálogo e entrecruzamento das diversas manifestações artísticas e culturais. Antes de chegar ao País, a exposição passou, de outubro de 2000 a janeiro de 2001, pelo Instituto Valenciano de Arte Moderna, na Espanha. Ela é constituída por quase 600 obras dispostas em dez salas dentro do Museu de Arte Brasileira da Faap. São trabalhos de nomes como Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Cândido Portinari, Victor Brecheret, Rino Levi, Burle Marx, Heitor Villa-Lobos e até Oscar Niemeyer.

A Semana de Arte Moderna de 1922 é o ponto central de “Brasil: 1920 – 1950. Da antropofagia a Brasília”. Segundo palavras do curador-geral da exposição, Jorge Schwartz, professor de Literatura Hispano-Americana da USP, foi a partir desse momento que a arte brasileira “conseguiu superar a espinhosa questão da dependência cultural e criar sua tradição por meio de uma linguagem própria, que abriu caminhos em prol de uma arte genuína e autônoma”.

Os traços retos e precisos caracterizaram a arquitetura modernista. Na primeira foto, o prédio da Associação Brasileira de Imprensa, obra de Marcelo e Milton Roberto. Na segunda, a residência de Pietro e Lina Bo Bardi, construída por ela e também conhecida como a “casa de vidro”

 

Quando Oswald de Andrade lançou seu manifesto antropofágico, era justamente essa a idéia: alimentar-se de tudo o que o estrangeiro traz para o Brasil, sugar-lhe todas as idéias e uni-las às brasileiras, realizando assim uma produção artística e cultural rica, criativa, única e própria. Era preciso desvincular-se de laços passados, como o simbolismo, ainda fortemente presente naquela época.

A exposição mostra que, em 1921, o artista Vicente do Rego Monteiro já prenunciava a antropofagia através de seu desenho Antropófago. Nele, um índio aparece deitado, deliciando-se com um fêmur de um homem que acabara de servir como alimento. A primeira obra é a foto de José de Medeiros, denominada Expedição Roncador Xingu, de 1949. A imagem do índio tentando empurrar o avião é a representação dos binômios natureza/cultura e floresta/máquina, ou seja, resume em si algumas características trazidas pelo Modernismo, como a valorização daquilo que é nacional – o índio e sua cultura – e também a projeção de uma sociedade urbanizada, veloz, que está se adaptando ao uso da tecnologia – o avião.

A velocidade e o processo de urbanização são características principais do futurismo, movimento trazido e difundido no Brasil através dos manifestos do italiano Filippo Tommaso Marinetti e de seus companheiros – como Graça Aranha num livro publicado em 1926. Marinetti aparece na curadoria “Presenças estrangeiras” da exposição entre outros nomes famosos, como a escritora Elizabeth Bishop e Claude Lévi-Strauss.

Abaporu (1928), de Tarsila do Amaral, inspirou Oswald de Andrade a escrever seu manifesto antropofágico

A estrela principal de “Brasil: 1920 – 1950. Da antropofagia a Brasília” é Abaporu, de Tarsila do Amaral, pertencente ao acervo do MAC-USP. Em 1939, a pintora descreveu sua obra como “uma figura solitária monstruosa, pés imensos, sentada numa planície verde, o braço dobrado repousando num joelho, a mão sustentando o peso-pena da cabecinha minúscula. Em frente, um cacto explodindo numa flor absurda. Essa tela foi esboçada em 11 de janeiro de 1928”. Nesse mesmo depoimento, Tarsila conta que, quando Oswald de Andrade viu o desenho de Abaporu pela primeira vez, suas idéias sobre o manifesto antropofágico vieram à tona. Na exposição, há também uma parte especialmente dedicada ao casal Tarsila e Oswald de Andrade, que se conheceu em 1922, quando a pintora havia acabado de retornar de uma estadia de dois anos em Paris.

Muito mais há para se ver na mostra. São partituras de Heitor Villa-Lobos, traços do paisagista Burle Marx, dos arquitetos Lina Bo Bardi e Gregori Warchavchik, o cinema da década de 1930 de Mário Peixoto, a fotografia de Geraldo de Barros e de Hildegard Rosenthal. O expressionismo de Anita Malfatti e o Brasil de Cândido Portinari. A poesia concreta de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. “Brasil: 1920 – 1950. Da antropofagia a Brasília” tem curadoria de Annateresa Fabris, nas artes plásticas, Jorge Schwartz, na literatura e fotografia, Jean-Claude Bernardet, no cinema, José Miguel Wisnik, na música, Carlos Augusto Calil, em “Tradutores do Brasil”, e Carlos Ferreira Martins, em arquitetura e urbanismo.

A exposição “Brasil: 1920 – 1950. Da antropofagia a Brasília” ficará aberta no Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) até o dia 2 de março de 2003, das 10 às 20 horas (de segunda a sexta-feira) e das 13 às 18 horas (aos sábados, domingos e feriados). A Faap fica na rua Alagoas, 903, Pacaembu, em São Paulo. A entrada é gratuita.

 

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