Uma
série de obras que retratam a história e o cotidiano
de bairros da capital paulista e regiões do Estado, por meio
dos olhares de autores famosos e outros, esquecidos pelo discurso
cultural oficial, construídos em ensaios breves, mas recheados
de informações inéditas, desconhecidas da maioria
das pessoas. Foi
exatamente isso que um grupo de escritores, jornalistas e pesquisadores
criou, sob a coordenação do sociólogo Emir
Sader, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP (FFLCH). O resultado foi a Coleção
Paulicéia, editada pela Boitempo Editorial e lançada
no início deste mês, no Sesc Vila Mariana, por meio
da publicação de seis livros: Ronda da meia-noite,
de Sylvio Floreal, Democracia corintiana, de Sócrates e Ricardo
Gozzi, Brás, escrito por Lourenço Diaféria,
Adoniran, Flávio Moura e André Nigri, Vila Madalena,
de Enio Squeff, e Semana de 22, de Márcia Camargos. “Nossa
meta é recuperar e manter a memória de São
Paulo, trazendo ao leitor narrativas que permanecem restritas ao
conhecimento de poucos e, ao mesmo, tempo, mostrando os diferentes
pontos de vista sobre a sociedade paulista”, explica Nelson
Schapochnik, historiador e professor da Faculdade de Educação
da USP (FE). “São
Paulo merece uma coleção dessa envergadura, pois ela
permite ao leitor entrar em contato com as raízes e um patrimônio
cultural praticamente desconhecido pelos próprios paulistas.”
A coleção
foi organizada em quatro grandes conjuntos temáticos ou selos
editoriais: Retratos, cuja missão será apresentar
ao leitor perfis biográficos de personagens e personalidades
marcantes para a história e a vida de São Paulo, como
o autor de teatro, Plínio Marcos, o crítico literário
e professor da USP, Antonio Candido, o compositor Adoniran Barbosa,
o jogador de futebol Leônidas da Silva, mais conhecido como
o Diamante Negro, entre outros. Memória/Identidade reúne
ensaios breves sobre fatos, acontecimentos, lugares e instituições
da história do Estado de São Paulo, como a matança
de índios na abertura das estradas de ferro, a chamada “democracia
corintiana”, a Revolução de 32, o teatro oficina,
as vilas operárias, as greves operárias de 1953 e
a criação da USP como resposta da sociedade paulista
às derrotas do Estado por ocasião das Revoluções
de 30 e 32. Trilhas
trará visões pessoais sobre bairros e trechos da capital
paulista, como o Brás, a Vila Madalena, a avenida Paulista,
regiões e acontecimentos históricos do Estado, como
o cais do porto de Santos, os quilombos da baixada santista e do
interior, os imigrantes na cultura do café. O último
conjunto, Letras, será formado por romances, contos e narrativas
curtas de autores ou temáticas paulistas, como Ibiapaba Martins,
Sylvio Floreal, Ondina Ferreira e Afonso Schimidt.
A coleção
conta com um conselho editorial integrado por Emir Sader, Gilberto
Maringoni, Vladimir Sacchetta, Roniwalter Jatobá, Nelson
Schapochnik e Ivana Jinkings, coordenadora editorial da iniciativa.
Segundo
Schapochnik, coordenador do selo Letras, estão previstos,
a partir de janeiro de 2003, lançamentos mensais de novas
obras. Nordestinos em São Paulo, de Marilene Felinto, Praça
Roosevelt, de Ignácio de Loyola Brandão, Origens do
Palmeiras, do economista Luis Gonzaga Belluzzo, Mauricio de Souza,
escrito por Gilberto Maringoni, Pontal do Paranapanema, de Bernardo
Mançano, Repúblicas estudantis em São Paulo,
da psicanalista Maria Rita Kehl, Plínio Marcos, pelo jornalista
Israel do Vale, Centro Velho de São Paulo, escrito pelo jornalista
e historiador Heródoto Barbeiro, e Sérgio Buarque
de Holanda: Visões de um radical, de Nelson Pereira dos Santos,
são alguns dos livros em fase final de produção.
“A última iniciativa como projeto editorial de registro
da história e da memória paulista ocorreu em 1954,
por ocasião do quarto centenário de São Paulo”,
informa Schpochnik. “Em uma cidade como São Paulo,
esse tipo de iniciativa é fundamental para preservar a lembrança
do seu patrimônio cultural que, constantemente, sucumbe diante
do poder da grana, dos interesses econômicos, que buscam a
homogeinização dos espaços e do convívio
social, seguindo a lógica pura e simples do lucro, e acabam
destruindo a sociabilidade entre diversos tempos históricos,
mais freqüente em outras capitais, como Recife, Rio de Janeiro
e Salvador.”
Em
1982, após 18 anos de ditadura e décadas de mandonismo
nos esportes, a diretoria do Corinthians Paulista e um grupo de
jogadores inauguram uma experiência inovadora: a democracia
corintiana. Para marcar os 20 anos daquela que foi uma das mais
importante mobilizações de atletas na história
do futebol brasileiro, Sócrates, que, além de jogador,
é médico formado pela Faculdade de Medicina da USP
de Ribeirão Preto (FMRP) e, na época, foi um dos líderes
do grupo, se uniu ao jornalista Ricardo Gozzi para escrever o primeiro
registro literário da iniciativa. Enquanto Sócrates
descreveu suas memórias, Gozzi entrevistou outros envolvidos,
relacionando seus depoimentos com o contexto histórico da
época, caracterizado pela lenta abertura política
que levaria ao fim da ditadura militar e pelas opiniões simpatizantes
e contrárias. Mas a obra vai mais longe e traz críticas
ao atual modelo do futebol brasileiro e sugestões para melhorá-lo.
Brás,
de Lourenço Diaféria, é formado por testemunhos
da história de um dos bairros mais retratados em livros,
fotos e filmes. Evitando o pitoresco, o típico e o exótico,
o autor percorre as ruas do local, berço do futebol, trazido
da Inglaterra por Charles Miller, porta de entrada dos imigrantes
estrangeiros, que tinham sua primeira parada na Hospedaria dos Imigrantes,
hoje transformada em museu, descrevendo, sem a menor cerimônia,
as pernas de Isaurinha Garcia, os milagres de padre Eustáquio,
o assassinato do sapateiro Martinez durante a greve de 1917, as
pizzas do famoso restaurante Castelões e as lojas da rua
do Gasômetro.
Vila
Madalena, de Enio Squeff, parte de um prisma diferente, registrando
a trajetória de um pacato bairro que se transformou em um
centro de efervescência cultural, artística e boêmia
por meio de crônicas onde ficção e memórias
pessoais se entrelaçam com a mesma intensidade.
Adoniran
mostra a trajetória pessoal e a obra do filho de imigrantes
italianos João Rubinato, talvez o maior sambista e poeta
popular da cidade de São Paulo, compositor de sucessos inesquecíveis,
como “Saudosa maloca”, “Trem das onze” e
“Samba do Arnesto”, e mais conhecido como Adoniran Barbosa.
Em
artigo apresentado no final desse livro, Antonio Candido elogia
o fato de Rubinato ter adotado um pseudônimo: “(…)
porque um artista inventa antes de mais nada a sua própria
personalidade; e porque, ao fazer isto, ele exprimiu a realidade
tão paulista do italiano recoberto pela terra e do brasileiro
das raízes européias. Adoniran Barbosa é um
paulista de cerne que exprime a sua terra com a força da
imaginação alimentada pelas heranças necessárias
de fora”.
Semana
de 22, de Marcia Camargos, procura desmitificar esse acontecimento,
tentando responder por que um evento que acarretou prejuízo
para seus organizadores, foi difamado por amplos setores da imprensa
e recebeu mais vaias que aplausos do público continua despertando,
ainda hoje, tanto interesse.
Mas
o destaque dessa primeira safra fica por conta de Ronda da meia-noite,
de Sylvio Floreal, nome literário adotado por Domingos Alexandre,
primeiro de uma série de autores esquecidos do começo
do século 20 que a coleção pretende resgatar.
“Poucos anos após a realização da Semana
de 22, os modernistas passaram a predominar no cenário cultural
nacional, eliminando, aos poucos, a memória das obras de
muitos artistas e escritores que não se alinhavam aos princípios
estabelecidos por seus cânones, caso de Sylvio Floreal”,
explica Schapochnik, autor da apresentação do livro.
“Fiquei sabendo da existência de Floreal por meio de
Elias Thomé Saliba, professor da FFLCH e, em uma dessas andanças
pelos sebos do Centro de São Paulo, acabei me deparando com
um exemplar de Ronda, publicado uma única vez, em 1925”,
conta. “Trata-se de uma narrativa baseada em um olhar crítico
mas, ao mesmo tempo, preconceituoso e tragicômico, onde o
leitor se depara com os costumes, vícios e misérias
de prostitutas, cafetões, loucos, ingênuos e boêmios
da São Paulo de 80 anos atrás, submundo pouco retratado
e, na maioria das vezes, propositalmente posto de lado por alguns
setores da sociedade, como um exercício de negação
da realidade.”
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