E
houve pó. À semelhança do que aconteceu
na época de Moisés, pó de esporo do patógeno
Bacillus anthracis se esparramou, agora não sobre a deslumbrante
potência da Idade Antiga, mas sobre o grande império
econômico da Idade Contemporânea. Causou menor número
de óbitos, não atingiu os rebanhos, mas criou uma
outra situação, talvez mais apropriada, segundo os
objetivos, para os dias atuais – pânico. O
motivo ainda é a libertação de um jugo para
que um povo escolhido possa cumprir sua missão. Outrora era
o dos egípcios sobre os hebreus, hoje o dos americanos sobre
o mundo, e a parte ressentida são alguns poucos islamitas,
que se crêem profetas dos tempos modernos. Como se vê,
as semelhanças trazidas na analogia são diversas,
e podem ser estendidas. Entretanto, o cenário do avanço
tecnocientífico do mundo globalizado nos traz outras ponderações,
na iminência de uma nova guerra entre os Estados Unidos e
o Iraque.
Explosivos
podem ser usados em ações pequenas, como para explodir
um carro, ou para grandes destruições, como devastar
cidades. Da mesma forma, pode-se empregar os agentes biológicos
ou para promover grandes baixas em guerras ou para
ações isoladas e pequenas com o intuito de aterrorizar.
Essa
é a distinção clara que devemos fazer, pois,
no primeiro caso, há a necessidade de grandes estruturas
para produção, ogivas e foguetes de médio e
longo alcance, de que aviões invadam espaços aéreos,
por vezes bem vigiados; já no segundo, os requisitos são
mínimos. O Bacillus anthracis, por exemplo, pode ser cultivado
em caldo de carne comercial no fundo de casa e facilmente disseminado.
Outro
exemplo é uma bactéria também esporulada, Clostridium
botulinum, que produz uma toxina que pode ser letal em uma ínfima
quantidade de 0,002 mg, através de infecção
alimentar. Contextualizando, pequena quantidade de cultura dessa
bactéria em um self-service causaria surto e mortes inevitáveis.
Isso nos leva a refletir sobre o objetivo do ataque dos Estados
Unidos ao Iraque. Conseguiria este último fazer uma guerra
biológica contra os longínquos Estados Unidos? Possuiria
um arsenal armamentista desenvolvido para esse objetivo? Penso que
a resposta é clara. O governo norte-americano faz celeuma
mental no meio dos seus cidadãos, confundindo ataque de guerra
com ataque terrorista. Se uma guerra biológica contra os
americanos é improvável de ser detonada pelos iraquianos,
a ameaça de um ataque terrorista não precisa vir do
Iraque, ou de qualquer outro país, mas pode estar implantada
em terreno americano mesmo. Assim como o Unabomber não necessitou
de uma grande indústria para produzir suas bombas, bioterroristas
também precisam de pouca coisa, pois o objetivo principal
é causar pânico.
Logicamente
não foi ingênua a atitude dos bioterroristas pós-11
de setembro ao enviar cartas com o esporo de B. anthracis para personalidades
da mídia americana. Eles queriam exatamente provocar a atenção
e o medo, e que esse medo se multiplicasse e se alastrasse na população.
A ofensiva
do governo americano contra o Iraque seria “profilática”
contra ataques bioterroristas ou contra guerras biológicas
que os iraquianos estariam maquinando ou abrigando. As guerras já
são absurdas quando têm motivos. Quando sem, são
hediondas. Uma guerra profilática é hedionda, por
mais senões que tenha o governo de Hussein.
Para pensar: o correspondente do britânico The Independent
Robert Fisk afirma que um domínio dos poços do segundo
maior produtor de petróleo do mundo deixaria os Estados Unidos
em uma confortável posição de ter o ouro negro
para uso em 40 anos, sendo que empresas americanas ganhariam concessões
para explorá-lo. “Isso seria o legado de Bush”,
segundo Fisk.
Não estou dizendo que o risco de um ataque bioterrorista
não exista ou que os danos serão pequenos, sempre
restritos a cartas ou a self-services – pelo contrário
–, mas temos que visualizar outros meios de combatê-los,
sem sacrificar inocentes.
Como
microbiologista, posso testemunhar a facilidade de manipulação
de alguns microrganismos, a sua virulência e os poucos obstáculos
para se comprar cepas de patógenos. Outras fontes de preocupação
são as possibilidades oferecidas pela recombinação
gênica, como um recombinante desenvolvido pelo projeto da
então União Soviética, de armas biológicas
com genes dos vírus da varíola e do ebola, conforme
relatou o cientista soviético desertor Kanatjan Alibekov
(hoje Ken Alibek, pesquisador de uma empresa de biodefesa e professor
de microbiologia em Virgínia, nos Estados Unidos); um superpatógeno,
cujo uso teria conseqüências imprevisíveis; a
transmissibilidade da varíola com a letalidade do ebola.
Pequenas
quantidades de amostras poderiam chegar facilmente ao solo americano
e lá serem multiplicadas em pequenos laboratórios
secretos para fins de terror. Será que esse patógeno
foi destruído? Não haverá em algum tubo no
mundo amostras congeladas? Mesmo se foram destruídos, a ciência
atual tem capacidade de criá-los novamente, até outros
mais virulentos. A mesma biologia molecular que nos promete curas,
acabar com a desnutrição e maior longevidade nos apresenta
possibilidades apocalípticas. Ainda somos escravos de nossos
avanços... Mas, como se vê, os terroristas não
precisam de um país trabalhando consigo para conseguir seus
objetivos, portanto o ataque ao Iraque ainda é injustificável.
As
medidas profiláticas contra ataques bioterroristas devem
ser feitas em bases racionais, fora da aura de vingança gerada
pelo ataque ao World Trade Center e sem motivos escusos.
O desenvolvimento especializado da inteligência norte-americana,
com agentes treinados nas peculiaridades do bioterror, deve fazer
parte da política de Estado do governo dos Estados Unidos
como uma das principais ações profiláticas.
Ainda a ampliação da mesma política em plano
internacional – com intercâmbio de tecnologia e conhecimento,
com a colaboração e não a intervenção
na soberania de nações – também é
fundamental para antecipar possíveis ataques.
“A
saúde pública ganha manchetes no paraíso da
medicina privada”, segundo Naomar de Almeida Filho, médico
e professor da Harvard School of Public Health. Não sem motivo,
pois a ela cabe a “logística” do contra-ataque
ao bioterror: o delineamento de diretrizes para detectar um ataque
com rapidez, através do reconhecimento de surtos de doenças
não comuns, para se evitar o alastramento do patógeno;
o desenvolvimento de estratégias de atendimento com pessoal
e equipamentos necessários; a viabilização
de suficientes estoques, com rápido acesso de vacinas, antídotos
e antibióticos. Uma tarefa hercúlea.
Ainda
na profilaxia de um ataque, é clara a necessidade da participação
dos cientistas biomédicos no desenvolvimento de técnicas
rápidas para diagnóstico e rastreamento epidemiológico
de microrganismos, testes de suscetibilidade a antimicrobianos e
desenvolvimento de novas terapêuticas para velhos e novos
patógenos. Um controle rígido das cepas que se usam
rotineiramente nos laboratórios, assim como da venda, doação
e protocolos de transporte, faz parte da colaboração
desses pesquisadores.
A profilaxia
de um ataque bioterrorista deve caminhar pelo massacre de inocentes.
Os Estados Unidos estão sob o alerta laranja. Se é
verdadeiro ou se é uma suposição para atrair
a opinião pública a favor do governo, não sabemos,
mas assim se estabelece a lógica do terror: pânico,
um tumulto no consumismo americano comprando remédios, máscaras,
fitas isolantes, estocando alimentos etc. Dessa forma cumprem-se
as palavras do profeta Bin Laden: “Os Estados Unidos não
terão paz”, até que os bilhões derramados
na indústria bélica sejam direcionados para corrigir
as diferenças sociais do mundo, geradas pela ganância
dos poderosos e ampliadas pela globalização econômica
que enseja a revolta dos povos sofridos do Terceiro Mundo, ficando
estes à mercê dos devaneios de líderes políticos,
religiosos e pseudoprofetas ensandecidos. Talvez es-sa seja a melhor
profilaxia contra os ataques biológicos: uma política
mundial em favor do engrandecimento do indivíduo através
da educação, que liberta as mentes, e da erradicação
da fome, através de ações dignificantes. George
W. Bush deveria se valer da assessoria de nosso presidente para
liderar um mundial Fome Zero e também dizer: “Nossa
guerra não é para matar ninguém – é
para salvar vidas”.
Paulo
Henrique Sant´Ana da Costa leciona a disciplina de Microbiologia
no Departamento de Ciências Biológicas da Faculdade
de Odontologia de Bauru (FOB) da USP
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