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Pedro Nava (à direita) com Otto Lara Resende: memórias da família são uma busca de si mesmo

Ele não teria passado de coadjuvante. Pedro Nava era, até o fim dos anos 70, uma espécie de promessa não cumprida. Escritor bissexto, que trocara as letras e os círculos modernistas de Belo Horizonte pela medicina, não passava de estrela menor a figurar entre outros mineiros de brilho, como Drummond e Aníbal Machado. Seu nome estava então fadado ao esquecimento ou a se tornar reminiscência na boca dos amigos célebres, mas isso se o médico reumatologista, já sexagenário, não tivesse se entregado à tarefa de escrever suas memórias e saltado, de chofre, sem transição, para o panteão da literatura brasileira.

Como se soubesse que é preciso viver para só então se pôr a narrar, Pedro Nava esperou a sua hora. Formou-se, amadureceu as letras dentro de si, para depois libertá-las; não como romance ou poesia, mas como prosa de memórias, gênero que parece ter se guardado para ele. “Dignos de figurar entre o que de melhor produziu a memorialística em língua portuguesa”, setenciou Drummond sobre os seis volumes de Nava. “Mais importante para a literatura brasileira que Marcel Proust para a francesa”, disse Otto Maria Carpeaux.

Para comemorar o centenário de nascimento de Pedro Nava, que se completa neste ano – o autor nasceu em Juiz de Fora em 5 de junho de 1903 –, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro deverá expor manuscritos e quadros do escritor, que nas horas vagas se dedicava também à pintura. Na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), o projeto Pedro Nava centenário, capitaneado pela professora Maria Consuelo Cunha Campos, pretende realizar um seminário com especialistas em sua obra, criar uma página eletrônica e recolher depoimentos de contemporâneos de Nava para um documentário.

Também para saudar a data, a Ateliê Editorial e a Editora Giordano, que desde 1999 assumiram a tarefa de reeditar os livros do escritor – sua obra passou mais de uma década esquecida, sem ser publicada –, trazem novidades. Os Cadernos 3 e 4, o livro Território de Epidauro, publicado originalmente em 1948 e que investiga a história da medicina no Brasil, e ainda um volume que reúne suas entrevistas, organizado pelo jornalista Marcello Rollemberg, já estão prometidos.

Traços do escritor revelam a face pouco conhecida de Nava desenhista

Além das memórias, as editoras paulistas publicaram nos últimos anos inéditos como a Viagem ao Egito, Jordânia e Israel – trechos de um diário de viagem que o autor fez nos anos 50 –, os Cadernos 1 e 2, primeiros dos 11 cadernos manuscritos ilustrados pelo autor, e o Bicho Urucutum, que revelam aspectos pouco conhecidos de Nava, como a sua faceta de desenhista. Bicho Urucutum traz também informações coletadas por seu sobrinho e detentor oficial dos direitos sobre sua obra, Paulo Penido. “Essas edições fragmentadas são uma forma de aproximar a obra de Nava, que é muito densa, do público brasileiro, ainda pouco habituado à leitura”, explica Cláudio Giordano, proprietário da Editora Giordano. “Pode ser uma espécie de preparação, de primeiro passo para conhecer a obra de Nava.”

Parte dessa tentativa de reavivamento da obra de Nava, foi lançado neste ano O anfiteatro, série de textos sobre a vida do memorialista como estudante e profissional de medicina, organizados por Paulo Penido. “Quis publicar esses textos porque parece que esqueceram que, antes de escrever, Nava exerceu a medicina por mais de 50 anos, e com sucesso absoluto. Ele foi um dos pioneiros da reumatologia no Brasil”, conta Penido, que também é médico. “Minha intenção, ao fazer uma seleção dentro da sua obra, é popularizá-la. As suas memórias são como uma catedral rococó. Você percebe a arquitetura magnífica, a grandiosidade, mas é difícil ver os detalhes. No entanto, quando começa a narrar um caso – ele era um grande contador de histórias –, o texto ganha velocidade e se torna mais fácil de ler.”

Como edição comemorativa, as livrarias acabam de receber Beira-mar, quarto volume das memórias, que assim como os anteriores – Baú de ossos, Balão cativo e Chão de ferro – foi acrescido de índices onomásticos e de fac-símiles dos textos manuscritos originais. “Com essas reproduções o leitor pode observar o método de trabalho de Nava, que é muito interessante”, diz Plínio Martins Filho, da Ateliê. “Ele pegava uma folha de papel almaço na horizontal e a dobrava, dividindo-a em duas partes. Na primeira parte, datilografava o texto, e deixava a segunda para fazer correções ou comentários.”

Os leitores que revisitaram e também aqueles que descobriram a trajetória iniciada com Baú de ossos devem receber até o próximo ano os dois volumes que faltam, Galo das trevas e o Círio perfeito. Além desses, também será publicado aquele que deveria ser o sétimo volume, Cera das almas. Com apenas 36 páginas, o livro foi deixado inacabado quando o escritor, em 13 de maio de 1984, se suicidou. Nava tinha 80 anos. Era um domingo, quase 21 horas, quando tocou o telefone. A mulher Nieta atende e passa-lhe o aparelho. Ele escuta, sem dizer palavra, e só depois comenta: “Nunca ouvi nada tão obsceno”. Sem aviso, sai para a rua. Sentado em um banco de jardim na Glória, bairro onde morava, dispara na têmpora um tiro de revólver Taurus, calibre 32.

Paulo Penido e o editor Giordano: para popularizar a obra de Nava

Pode-se dizer, e se disse, que a morte, como sua obra, foi marcada pela surpresa. A biografia do autor, escrita pela francesa Monique Le Moing, apontou como motivo para o ato radical uma suposta homossexualidade: o escritor estaria sendo chantageado. Mas os motivos nunca se esclareceram. O que se sabe é que Nava, apesar do sucesso que alcançara com a sua literatura – seus livros eram louvados pela crítica e pelo público, que fizeram deles best sellers –, estava nesse período profundamente deprimido. Alguns dos seus parentes mineiros, enfurecidos com a maneira como foram retratados, passaram a ameaçá-lo. “Eu só arranjei inimigos dentro de minha família com esses livros de memórias. Todos ficaram indignados. Do lado da minha mãe então, foi uma coisa horrorosa, um deus-nos-acuda. Houve pranto e ranger de dentes”, disse Nava em entrevista. Além disso, a idéia da morte perturbava-o há muito. Em 1975, enviara para seis amigos uma carta suicida. “Desejo que meu cadáver seja embalsamado com uma grande injeção de formol.” Depois do ocorrido passara a fazer terapia, mas não parava de trocar de analista.

“Ele passava às vezes 15 dias sem falar com ninguém”, conta Penido, que se lembra do último encontro que teve com o tio, no Natal de 1983. Na ocasião, eles ficaram algumas horas falando sobre suicídio. “Nós nos sentamos na varanda, ficamos bebendo cerveja e conversando sobre os casos estranhos de suicídios que encontramos ao longo da profissão.”

A constante companheira – Para Pedro Nava a morte foi uma espécie de obsessão literária, contaminando seus livros, suas lembranças, marcando e pontuando os relatos. Quando ainda não era escritor remido, surpreendeu com o poema O defunto – “Meus amigos tenham pena,/ senão do morto, ao menos/ dos dois sapatos do morto!/ Dos seus incríveis, patéticos/ sapatos de verniz” –, incluído na Antologia de poetas bissextos de Manuel Bandeira e saudado por Pablo Neruda como o maior poema de língua portuguesa.

“Ao se sentar para escrever Baú de ossos, a intenção inicial era contar apenas a história da família”, lembra Penido. No entanto, uma vez aberta a fonte, a prosa desse arqueólogo da memória começaria a jorrar, e aos borbotões. O que seria um livro viraram seis, e a investigação da origem familiar acabou sendo uma procura por si mesmo. “Suprimindo a vaidade, o que procuro na genealogia, como biologista, são minhas razões de ser animais, reflexas, instintivas, genéticas, inevitáveis”, escreveu em Baú de ossos. “Gosto de saber, na minha hora de bom ou mau, na de digno ou indigno, bravo ou covarde, veraz ou mentiroso, audaz ou fugitivo (...), saudável ou doente – quem sou eu. Quem é que está na minha mão, na minha cara, no meu coração, no meu gesto, na minha palavra...”

Tal qual Proust, de quem foi assíduo leitor, Nava começava a trazer à tona o que estava submerso, a abrir o baú da memória, a exumar e a reanimar seus mortos. No lugar da madeleine e da chávena de chá proustianas, os doces de coco, o cheiro do cravo, a carne, a banha e o sabor de porco que toma toda a comida mineira, a batida do Ceará, a rua do Ouvidor, a topografia de Juiz de Fora.

Nava tinha horror à velhice. Quando fez 80 anos escreveu ao editor José Olympio: “Desde o dia 5 de junho em que entrei para a confraria dos oitentões não tenho tido mais descanso”. Além disso, marcava-lhe um desespero da finitude inevitável. Para se salvar da dissolução do tempo, para adiar a morte mas também para se preparar para ela, o escritor buscou prender entre o dedos tudo o que é fugidio, estar guardado pelas palavras. Numa espécie de compulsão narrativa escreveu, em um período relativamente curto – cerca de dez anos – mais de 2.500 páginas.

Lugar da verdade mas também da invenção, as memórias de Nava, com sua forma híbrida, colocaram em questão os próprios limites da literatura. “É impossível restaurar o passado em estado de pureza. Basta que ele tenha existido para que a memória o corrompa com lembranças superpostas”, escreveu em Balão cativo. Cada momento da vida, solto e injustificado, foi ligado por ele com o cimento da invenção, para construção de um todo coerente. Desfiando seu rosário de lembranças, os parentes mortos foram convertidos em matéria literária, em personagens seus, sob seu controle, manipulados na trama, meio realidade, meio ficção.

Como um historiador cheio de método, pôs-se a revirar os arquivos – com fotos, papéis e documentos – que havia feito ao longo da vida. Selecionava o que lhe servia e só depois se entregava ao exercício de sua prosa. De acordo com Antonio Candido, na literatura naviana o individual acaba sendo ponto de partida para o encontro com o universal. “A autobiografia desliza para a biografia, que por sua vez tem aberturas para a história de grupo, da qual emerge em plano mais largo a visão da sociedade, traduzida finalmente numa certa visão de mundo.”
Com sua escrita abarrocada, o escritor mineiro passa de um assunto a outro – da geografia das cidades à vida burguesa, dos retratos familiares à vida política e intelectual, da culinária à medicina e aos costumes de época – e tudo isso feito com tamanha habilidade verbal, com tantos sentidos que vão se somando, que o leitor deixa-se levar pelo mar de palavras, quase sem se dar conta da colcha de retalhos tecida.

Para escrever suas longas memórias, Nava doou-se por inteiro, entregou todos os anos que lhe restavam. Nessa saga, em busca do seu tempo perdido, da sua Pasárgada esquecida em algum lugar, o quase septuagenário – publicou Baú de ossos aos 69 anos – reencontrava os traços da criança que, mesmo que disfarçados e um tanto desfeitos, permaneceram e o invadiam a qualquer instante. Na construção de sua obra, no recuperar a memória, bastava um estalo e lá estava de novo o velho tornado em menino. A descer as ruas do Rio antigo, a entrar na casa da infância, a tomar o trem para Minas, a reencontrar a morte do pai, quando tinha oito anos. “Não sei se sofri na hora. Mas sei que venho sofrendo destas horas a vida inteira. Ali eu estava sendo mutilado e reduzido a um pedaço de mim mesmo, sem perceber, como o paciente anestesiado que não sente quando amputam sua mão”, escreveu. Seria essa a primeira, apenas a primeira de todas as mortes que, desde então, passaram a espreitá-lo, a doê-lo constantemente.

Originais de Pedro Nava publicados em fac-símile nas novas edições de suas memórias: escritor amadureceu as letras dentro de si e produziu a melhor memorialística em língua portuguesa

 

 

Mudança Social e Paciência

A seis meses da trágica morte de Pedro Nava, conversei com ele em sua casa no Rio de Janeiro, colhendo um longo depoimento para um livro que estava escrevendo. A posse da terra, escritor brasileiro hoje saiu em 1985, publicado pela Imprensa Nacional Casa da Moeda de Portugal, e no perfil do ensaísta há uma passagem que me tocou para todos os tempos. Seguidamente me valho de sua sabedoria para aplacar as impaciências minhas e de meus contemporâneos diante do caos da História.

Já conhecia Nava de algum tempo e, sempre que o encontrava, acontecia algum momento de mergulho na sua obra, na cultura brasileira e na circunstância da vida cotidiana. Mas nada se iguala à chave que me legou para circular no mundo da resistência perante as adversidades. Aliás, me dizia ele naquela ocasião que suas memórias eram essencialmente um ato de rebeldia contra seu meio e a mentalidade de sua família.

Ao se embrenhar no Brasil profundo, lembrava também, com amargura, a dor de só poder atribuir um adjetivo à terra de origem: um país “inqualificável”. Não era vingativo, mas enfurecido com as injustiças sociais.

A experiência de médico e escritor se travou na inconformidade com os descalabros da “potência emergente”. Parava para meditar: que fazer, como mudar as coisas que tanto o afligiam? Aí então enunciou a fala decisiva: “Olha, como memorialista,
só posso compreender que a ação possível é a do terrorismo cultural em doses homeopáticas”.

No dia 13 de maio de 1984, desistiu até mesmo do terrorismo homeopático.

 




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