Saddam
Hussein está vivo, morto ou ferido? É mesmo ele quem
aparece na TV iraquiana falando em vitória? Se não
é nenhum dos inúmeros sósias, quando foram
gravadas essas imagens? Quantos são os prisioneiros em poder
dos norte-americanos e britânicos? Afinal, quantos helicópteros
americanos foram abatidos até agora? Dois ou cinco? E os
civis nessa história? Quantos já morreram? Até
o motivo desencadeador dessa segunda guerra do Golfo, a presença
de armas químicas no Iraque, continua sem ser esclarecido.
As versões para todas essas perguntas são muitas e
há uma nova a cada dia.
Na
era da informação, da Internet, dos videofones, da
TV por satélite, nunca o volume de notícias foi tão
grande e ao mesmo tempo nunca se soube tão pouco sobre a
exatidão dos fatos. A mídia está sendo usada
como uma poderosa arma de batalha com alvos precisos de interesses
políticos, econômicos e ideológicos.
É
tênue a linha que separa a informação da propaganda.
A professora de ética da Escola de Comunicações
e Artes (ECA) da USP Mayra Rodrigues Gomes afirma que os dois lados
envolvidos na guerra estão fazendo propaganda, minimizando
suas derrotas e exaltando suas vitórias através da
mídia conforme suas conveniências. Ela é categórica
quanto à qualidade da informação em meio a
essa guerra: “A verdade foi totalmente para o brejo”.
Mayra
não acredita que exista isenção absoluta no
jornalismo. O olhar de cada profissional sempre estará permeado
por suas coordenadas intelectuais e morais, mas é possível
fazer uma cobertura mais ética mostrando o máximo
de informação de todos os lados, diz.
O professor
de jornalismo, também da ECA, Laurindo Lalo Leal Filho, que
vem acompanhando a guerra através de vários canais
de TV de países diferentes, classifica a guerra como uma
situação-limite em que fica ainda mais exacerbada
a questão da independência da informação,
passando por várias gradações, da realidade
à propaganda. Mas ele observa que emissoras de TV comerciais
como CNN e FOX estão com uma cobertura tão ligada
à propaganda quanto a TV estatal iraquiana. Com relação
à mídia brasileira, sobretudo a cobertura televisiva,
ele sente falta de uma visão própria. “A falta
de felling jornalístico, aliado à incapacidade financeira
da mídia brasileira, determina uma cobertura muito dependente.
Não há uma visão brasileira dos acontecimentos.”
Mayra
destaca pelo menos um ponto positivo na mídia brasileira:
“Tendo em mente que o volume de notícias recebido dos
veículos americanos é muito maior, ainda assim a mídia
brasileira tem tentado mostrar o lado iraquiano, que não
está sendo ignorado”.
“Not
fit to print”
– Na semana passada, o Departamento de Defesa dos Estados
Unidos pediu, em um comunicado oficial, que a mídia americana
não divulgasse imagens ou fotos de soldados americanos mortos
e reféns veiculadas pela TV estatal iraquiana e retransmitidas
pelo canal árabe Al Jazeera. O governo alegou que o conteúdo
violava a Convenção de Genebra, mas não fez
nenhuma menção ao tratamento das imagens de presos
iraquianos. Se por nacionalismo ferrenho ou coerção,
ainda não se sabe, mas a maioria dos veículos atendeu
ao pedido, até mesmo o jornal The New York Times, famoso
pelo slogan All the news that’s fit to print (“Todas
as notícias que possam ser impressas”). A censura não
atingiu a mídia brasileira, que divulgou imagens e fotos
feitas a partir da transmissão da Al Jazeera.
O professor
Leal chama a tentativa dos americanos de controlarem a mídia
de “síndrome do Vietnã”. “A Guerra
do Vietnã começou a ser perdida quando começaram
a chegar as imagens chocantes de soldados mortos e feridos e que
fizeram o país perder o apoio popular. Fica óbvio
que eles estão com medo de que esse episódio se repita.”
Para
o consultor de jornalismo investigativo da Unesco no Brasil e professor
da ECA Cláudio Tognolli, essa situação não
é nova e ficou mais evidente desde o último ataque
terrorista, em 11 de setembro de 2001, quando os Estados Unidos
também pediram para que as imagens de corpos das vítimas
não fossem divulgadas. Ele acredita que a censura moderna
não é feita só claramente pelo governo, mas
é também uma manipulação da forma. “São
mostradas imagens, sons espetaculares, destaca-se o poder dos mísseis,
o working in progress americano para imprimir uma realidade na cabeça
das pessoas.”
Mas
nessa guerra a censura americana tem assumido também um posicionamento
bem direto. Dois repórteres da rede Al Jazeera foram descredenciados
da Bolsa de Valores de Nova York no início da semana passada.
A instituição alegou que precisava reduzir o número
de pessoas com acesso ao pregão, mas apenas a Al Jazeera
foi afetada. Além disso, com a crescente audiência,
a emissora tentou colocar um site em inglês no ar que foi
atacado por hackers.
É
claro que a censura não é privilégio somente
dos Estados Unidos. O governo iraquiano também tem seus instrumentos
de controle da informação. O repórter Sérgio
Kalili, enviado a Bagdá pela revista Caros Amigos e que ficou
na cidade até um dia antes do grande bombardeio do dia 20,
conta que todos os jornalistas são obrigados a pagar para
serem acompanhados por um guia indicado pelo governo. O acesso às
informações é restrito e limitado por essa
pessoa, denominada pelos americanos de minder guide (guia de mentes).
Kalili
usou dois trunfos para burlar o sistema, que ele não acredita
ser muito diferente do dos americanos: o sobrenome árabe
e o fato de ser brasileiro. Essas premissas serviram como passaporte
para ele circular mais facilmente entre a população
e conseguir um guia não autorizado pelo governo, que lhe
permitiu entrevistar o povo iraquiano. Ele também não
concorda que a censura americana venha somente do governo. “A
mídia é manipulada, mas a censura é também
feita pelo próprio povo, que é patriota desde criança.”
Tropa
de jornalistas
– Depois de muitas críticas à primeira guerra
do Golfo, em 1991, o governo americano resolveu mudar sua estratégia
com relação à presença da mídia.
Do primeiro conflito, só ficaram registradas as imagens distantes
de bombardeios que mais se assemelhavam a um jogo de videogame.
Desta vez, os jornalistas, cerca de 400, estão literalmente
no front de batalha. Muitos repórteres americanos já
chegaram a aparecer em canais de TV dos Estados Unidos vestindo
uniformes militares e até usando o pronome “nós”
para se referirem às tropas de soldados.
Testemunhas
oculares da história ou meras marionetes da propaganda do
comando americano? Para a professora Mayra, a resposta é
clara. “Esses jornalistas não estão ali para
reportar os acontecimentos com uma visão crítica,
estão ali para fazer a apologia de uma visão específica.
É um corpo voltado para uma propaganda de guerra, a função
é fazer simplesmente um diário de guerra, é
uma estratégia de regime totalitário.”
O repórter
Kalili receia o comprometimento grande que acaba sendo travado com
a fonte numa situação como essas. “Como eles
vão continuar lá se desagradarem aos soldados? Eles
dependem da tropa para tudo, para obter a informação
e até para se locomover.”
Com
tantas influências sobre a cobertura jornalística,
às vezes pode ser difícil identificar os fatos. Mayra
diz que “a verdade dos fatos talvez esteja num lugar intermediário
que não se encontre na mídia porque os dois lados
estão comprometidos”. O melhor caminho para se manter
informado e menos manipulado, na opinião dela, é recorrer
ao maior número de fontes diferentes possível e se
munir da comparação entre as várias mensagens.
A informação
também é vítima e parte da guerra. O poder
da mídia está sendo amplamente usado como estratégia
e ainda não se sabe ao certo os resultados que serão
atingidos. Se em uma guerra perdem todos, o jornalismo também
não é exceção.
|