Não
podia pintar de outro jeito. Eu estava muito apaixonado... É
assim que Antonio Henrique Amaral justifica Encontro, de 1996, um
óleo sobre tela onde a paisagem é composta pelas silhuetas
de um casal. No ângulo de um abraço está o mar
azul com o barquinho de velas brancas, montanhas amarelas e o céu
avermelhado.
Amaral
tem razão. Não podia pintar de outro jeito e fugir
à regra de quem está acometido por uma paixão.
Deixou-se envolver como um adolescente. E de sua arte madura, experiente
e criativa jorraram imagens de corações, que poderiam
ser reles se não fluíssem do coração
de Amaral. Coração vermelho, azul, amarelo, gravado
com frases como “Tonight, my love...”. Ou que faz o
sujeito perder a cabeça, o cérebro. Essas imagens
fazem parte da série Anima & mania, de 1996. Corações
que, como compete às verdadeiras paixões, acabaram
sendo partidos, esfaqueados e desarmados pelo cotidiano.
Onze
anos antes, Amaral também desenhou corações
nas séries Cromo e tempo I, Cromo e tempo II e Cromo e tempo
III. Corações rubros, porém sem ocupar dimensões
totalizantes e não a ponto de substituir o cérebro.
Fazem parte da paisagem. O coração aí está
equilibrado com a razão. É a engrenagem de uma cidade
e de mecanismos diversos como o corpo de uma mulher.
Corações
diferentes, mas igualmente poéticos. Amaral, mesmo quando
provoca leituras óbvias, consegue surpreender. A emoção
impulsiona os seus pincéis, flui na escolha das cores. É
um pintor que se dá o direito de criar com liberdade, sem
a preocupação do juízo da crítica. Há
quem diga que ele segue a estética do kitsch, a antropofagia,
o hiper-realismo... Amaral não se deixa enquadrar em correntes
estéticas, mesmo porque sua obra é livre. Tem múltiplas
interpretações, múltiplos olhares. O pensamento
político-social, as preocupações com a realidade
estão sempre presentes. Mas com a mesma força revela
os seus sonhos e suas paixões.
É
essa leitura de uma trajetória de 51 anos que o livro Antonio
Henrique Amaral – Obra em processo, lançado pela Editora
DBA, propicia. São 328 páginas com imagens que pontuam
toda a sua carreira e a análise de três especialistas:
Edward J. Sullivan, diretor do Departamento de Belas Artes da Universidade
de Nova York, Frederico Morais, crítico e historiador de
arte, e Maria Alice Milliet, historiadora da arte e pós-graduada
na USP.
Bananas
para a ditadura
– O livro traz nas primeiras páginas a série
Bananas, iniciada na década de 60. As bananas gigantescas,
verdes com fundo amarelo, foram o símbolo que Antonio Henrique
Amaral, 67 anos, paulistano, advogado formado pela USP, elegeu para
protestar contra o regime militar. “Bananas para a ditadura...
Pintei várias telas. A última foi em 1974, para protestar
contra a morte de Vladimir Herzog”, explica o artista.
Solitárias
ou em pencas, as bananas incitavam à ironia, à revolta,
à angústia. Em 1973, as bananas representam a própria
população brasileira na série Campo de batalha.
Amaral passa a pintá-las cortadas, amarradas no prato, presas
e enforcadas por uma corda ou espetadas por garfo e faca. Quem se
deparar com essas telas – especialmente a banana amarela sobre
a bandeira brasileira, tendo, no fundo, a bandeira dos Estados Unidos
– vai perceber uma crítica muito atual. “Amaral
não é, nunca foi, um pintor naturalista. Artista essencialmente
urbano, que cresceu e desenvolveu seu trabalho em duas grandes metrópoles,
São Paulo e Nova York, suas paisagens são construções
mentais, elaboradas no ateliê a partir de símbolos
mentais”, observa o crítico Frederico Morais. “Antes
que introduzisse o tema da banana e se tornasse definitivamente
pintor, ele abordou outros temas, assim como experimentou outros
meios de expressão.”
Morais
lembra o artista como gravador. “Começa pelo linóleo,
técnica tradicionalmente posta a serviço de uma arte
participante. Nessa fase inicial, dois temas se destacam: generais
e bocas. É uma fase falante e discursiva, marcada por uma
verborragia visual, próxima do cartaz e do panfleto político.”
A trajetória
de Amaral é lembrada por Edward J. Sullivan. “É
um artista cujo perfil é facilmente reconhecido no cenário
artístico internacional”, observa. “Sua primeira
mostra individual no exterior foi em Santiago do Chile, em 1958,
quando tinha apenas 23 anos. No ano seguinte, exibiu seus trabalhos
na Pan American Union, em Washington. Seu primeiro ciclo de exposições
passou pela Argentina, Canadá, Inglaterra, México
e Colômbia. Recebeu prêmios e elogios em diversos concursos
internacionais; e, ainda que seu estilo seja bastante pessoal, idiossincrático,
não se atendo, efetivamente, às tendências que
caracterizaram as últimas décadas do século
20, muitos consideram que a sua presença em coletivas contribuiu
para definir a personalidade da arte contemporânea brasileira.”
A crítica
Maria Alice Milliet explica que, diante da tela, o artista sabe
que não basta reproduzir ou inventar formas. “Sua obra
se manteve alheia às estratégias que preconizam a
morte da pintura e fiel à figura situada na zona ambígua
entre a representação do real e a figuralidade do
desejo”, afirma. “Faz uma arte vigorosa, visceralmente
ligada à pulsão do desejo em permanente embate com
as circunstâncias asfixiantes do social. A condição
dominante em sua pintura é a sensualidade, tanto mais liberada
quanto menos premeditado é o investimento pictórico,
com freqüência matizada pela contenção
formal, por vezes exaltada pela associação do prazer
à dor. E, sempre a boca, a língua, a fruta, a árvore,
a folha, o seio, a faca, a corda, o garfo e o mar, signos recorrentes
de uma fabulação simultaneamente confessional e crítica.
Mesmo quando sua pintura parece tangenciar a abstração,
é ao humano que se refere.”
Um
diálogo com o mundo
– A arte de Amaral é um diálogo contínuo
com a realidade das pessoas que o cercam. Ao contrário de
muitos artistas, não faz de seu ateliê – um loft
no Butantã, projetado há 25 anos por Ruy Ohtake –
uma ilha. Gosta da troca de idéias, do debate. Acompanha
os noticiários, lê de tudo e sobre tudo, gosta de esporte,
joga tênis. Suas telas são uma janela para o mundo.
Protestou contra os generais, contra a ditadura, contra a devastação
da Amazônia. Mesmo longe, na década de 70 – morava
no Soho, em Nova York –, suas telas registram a preocupação
com a realidade brasileira. Também participou da campanha
de prevenção contra a Aids elaborando cartazes –
que resultaram, em 1995, na série Torsos. As imagens simulavam
o aproximar dos corpos, porém sugeriam uma relação
mais cuidadosa.
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O
engajamento político — revelado na série
das Bananas, um protesto contra a ditadura militar —,
o amor e a paixão: temas marcantes no obra de Amaral |
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Mesmo
quando tenta se abstrair e mergulhar dentro de si mesmo, Amaral
revela um pensamento e uma postura que partilha entre as pessoas.
“Arte é como me relaciono com o mundo”, justifica.
“É o vínculo entre o subjetivo interior e a
realidade que me cerca: as pessoas, as coisas, os lugares, os afetos,
as indagações da vida, do que seja isto e do que seja
a morte. Tenho a consciência das limitações
e do mistério da existência, sem esperança de
saber as respostas para as questões fundamentais.”
A postura
de artista e revolucionário faz com que sua obra saia dos
limites da metrópole, do País e se integre em um continente.
Amaral destaca-se como um dos representantes da arte latino-americana.
É também um dos poucos artistas brasileiros que conseguiram
viver nos Estados Unidos e ter seu trabalho reconhecido. “O
mercado é muito difícil, muito duro”, conta.
“Rubens Gerschman e Hélio Oiticica também moraram
por lá. É como fazer um serviço militar. Você
aprende muito e sofre muito. A participação política
entre os artistas, nos Estados Unidos, não existe. Não
existem grupos de esquerda, nem contestação. O artista
americano está preocupado em fazer sua própria obra
e com o mercado. Defende suas idéias, mas nunca no nível
político. Esta é uma grande diferença entre
o artista norte-americano e o artista latino-americano.”
Em
1981, Amaral retornou ao Brasil, mas continuou voltando com freqüência
aos Estados Unidos para participar de diversos salões. “Durante
muito tempo considerei Nova York a minha segunda cidade, a primeira
é São Paulo. Gostava do clima, de um certo isolamento
que tinha, do estímulo cultural. Tudo o que acontecia de
interessante no mundo acabava aparecendo em Nova York. Hoje, tudo
está mudado. O Bush está acabando com o país,
com a maior máquina da história da humanidade.”
Amaral
está preocupado com o destino do mundo, do Brasil. Prefere
falar das coisas que estão acontecendo a contar sua trajetória.
Suas andanças – expôs também no México,
Colômbia, Argentina, em vários países da Europa
e Japão – causaram uma “atitude de existência”,
como ele próprio diz. “Agora, vamos atravessar um ano
e meio muito decisivo no futuro do Brasil. Se o PT fracassar, frustrar,
se ele não conseguir fazer as reformas, o País quebra.
Você se lembra do Uruguai nos anos 40? Era o país mais
rico da América Latina. A Argentina, nos anos 20, era a terceira
economia do mundo, um país de ricos. O Uruguai, que tinha
mais aposentados do que gente trabalhando, quebrou. Eu me preocupo
com o Brasil, com essa casta de aposentados privilegiados. O cara
tem dois ou três mandatos e quer se aposentar. Vai ser difícil
acabar com essa filosofia. O Lula pedindo contenção
de despesas, divulgando o programa Fome Zero. Aí vem esse
Congresso recém-eleito e aprova essas leis imorais de um
aumento próprio. Enquanto isso o governo fica matutando em
quantos poucos reais vai aumentar o salário mínimo.”
É
essa contestação, revolta e esperança que Amaral
leva para as suas telas. Imagens onde não falta a presença
feminina. A mulher de Amaral não tem rosto definido. É
um ideal. Os seios generosos que simbolizam a continuidade da vida.
As silhuetas marcadas pelas curvas. O sonho de um barco a vela e
um oceano a se perder.
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Antonio
Henrique Amaral – Obra em processo
Editora DBA
328 páginas
R$ 80,00
O livro pode ser encontrado nas livrarias Cultura e Fnac ou
encomendado ao artista pelo endereço eletrônico
www.ahama ral.com.br |
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