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Em um mundo que marcha para a democracia e o respeito pelos direitos humanos, os Estados Unidos são um líder, um parceiro e contribuidor. Nós assumimos essa responsabilidade com uma crença profunda de que os direitos humanos são universais. Essas são as palavras do secretário de Estado dos Estados Unidos, Colin Powell, no último parágrafo do prefácio de apresentação do relatório sobre práticas em direitos humanos de 2002, divulgado semana passada.

O relatório, elaborado todos os anos pelo Departamento de Estado americano, abrange 196 países e acusa o Brasil de desrespeito em várias áreas, citando dezenas de casos ocorridos no ano passado, inclusive o assassinato do jornalista da Rede Globo Tim Lopes. As maiores críticas são direcionadas às Polícias Civil e Militar e às autoridades penitenciárias. O documento menciona rebeliões da Febem e acusações de tortura a menores.

O Departamento de Estado acusa as duas polícias de extermínio. “Policiais uniformizados executam sumariamente suspeitos de crimes e depois preenchem relatórios falsos alegando resistência à prisão por parte das vítimas.” O relatório classifica o Poder Judiciário como “ineficiente” e “pobremente treinado”. Vários dos problemas são atribuídos à falta de recursos econômicos. Além da descrição de homicídios e casos de impunidade, o documento assinala que há desrespeito aos direitos humanos no Brasil sobretudo contra negros, mulheres e crianças. É explícito, na apresentação do relatório, que iniciativas como essa demonstram a necessidade de os Estados Unidos se posicionarem com superioridade perante um mundo “menos-que-perfeito”, nas palavras de Powell, e de se apresentarem como benfeitores dispostos a salvar o mundo.

“Nós estamos decididos a ajudar o povo iraquiano a conquistar um país unido e estável e caminhar em direção à democracia e prosperidade sob um governo representativo que respeite os direitos de todos os seus cidadãos.” Dessa forma o secretário de Estado define, em seu discurso, o papel dos Estados Unidos na guerra do Iraque, incluindo essa ação na mesma ideologia que norteia o relatório. O ataque ao Afeganistão, em 2002, também foi lembrado e não há dúvidas de que novos alvos poderão surgir do mesmo discurso.

Juiz do mundo – Na opinião da presidente da Comissão dos Direitos Humanos da USP, professora Maria Luiza Marcílio, esse relatório não passa de uma ação duplicada e pretensiosa dos Estados Unidos. “A ONU e diversas ONGs fazem relatórios semelhantes. Ser juiz do mundo é algo complicado para uma só nação, para isso temos os organismos multilaterais.”

Maria Luiza acredita na importância de investigações para a defesa dos direitos humanos e da democracia, mas desde que não sejam permeadas por apenas um ponto de vista. “Os Estados Unidos também são violadores de direitos humanos. Eles foram defensores de inúmeras ditaduras no decorrer da história, em detrimento de populações locais.”

O coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) e professor do Departamento de Sociologia da USP, Sérgio Adorno, aponta algumas ambigüidades no comportamento americano. Ele diz que é preciso reconhecer que, como “berço da democracia republicana”, os Estados Unidos já contribuíram bastante na defesa dos direitos humanos, mas que determinadas ações – como o fato de o país não assinar algumas convenções internacionais, inclusive a que assegura os direitos da criança, pela ONU – são conflitantes. “Os Estados Unidos vivem hoje uma grande contradição interna, colocam-se como defensores e não se comprometem quando lhes interessa. É evidente que o Brasil possui um déficit muito grande na área de direitos humanos, mas estamos assinando todas as convenções e tratados e podemos ser cobrados internacionalmente.” Adorno também cita a guerra do Iraque como exemplo: “Se os Estados Unidos fossem defensores incontestes dos direitos humanos, nunca teriam entrado nessa guerra sem a aprovação da ONU”.

Dois lados da moeda – O pesquisador do Núcleo de Análise Interdisciplinar de Políticas e Estratégia (Naippe) da USP Gunther Rudzit, que morou três anos em Washington, nos Estados Unidos, compara a iniciativa americana a uma moeda com dois lados diferentes. Ele acredita na legitimidade desses valores democráticos presentes na cultura do americano médio, que se sente na obrigação de lutar pelos direitos humanos de todos. “Os Estados Unidos foram o primeiro país a preservar verdadeiramente o direito individual.” Rudzit acredita que algumas ações dos Estados Unidos são voltadas genuinamente à preservação de vidas e da democracia. Ele cita como exemplo a intervenção americana nas guerras da Bósnia, Kosovo e Somália. “Mas também, muitas vezes, o mesmo discurso é utilizado para controlar a opinião pública e defender os interesses americanos sobre os interesses internacionais”, afirma. “Todas as ações têm um lado bom e um lado ruim. Em parte esse relatório pode ser considerado unilateralista e em parte pode funcionar como pressão internacional e forçar outros países a mudarem suas políticas.”

 

 

 

Professores divergem sobre a guerra

Debate realizado no dia 2 de abril, quarta-feira, no Instituto Itaú Cultural, em São Paulo, sobre as conseqüências da guerra no Iraque ficou polarizado em duas tendências. De um lado, argumentos do professor Braz José de Araujo, sociólogo integrante do Núcleo de Análise Interdisciplinar de Políticas e Estratégia (Naippe) da USP, que tem posição favorável aos Estados Unidos, e, de outro, a historiadora Maria Aparecida Aquino, o físico Mahir Saleh Hussein, ambos professores da USP, e a psicanalista Maria Rita Kehl, que condenaram a guerra e os motivos apresentados pelo presidente George W. Bush para iniciar o ataque, apesar da oposição do Conselho de Segurança da ONU.

Braz Araujo está convencido de que “o que ocorre agora é apenas uma etapa da luta do governo norte-americano contra o terrorismo”, uma reação natural aos atentados de 11 de setembro em Nova York. Para Maria Aparecida, a guerra no Oriente Médio dá continuidade a uma estratégia de dominação, nova na aparência, mas que obedece à orientação que, historicamente, vem desde o século 19, traçada agora pelos “falcões da Casa Branca”, uma guerra preventiva que certamente representará “um desastre para o mundo”.

Maria Rita entende que os ataques terroristas prestaram um desserviço à paz mundial, aparentemente conferindo certa legitimidade às ações do presidente Bush, mas considera que bombardear cidades e tirar do poder um chefe de Estado (Saddam Hussein) é uma péssima forma de combater o terrorismo e ainda revela “uma visão infantil do mundo”.

O professor Mahir discorda de que se trata de guerra ao terrorismo: “O plano foi escrito pelo atual Secretário de Defesa dos Estados Unidos, Donald Rumsfeld, antes dos atentados de 11 de setembro de 2001”.

O debate, produzido pela STV – Rede SescSenac, foi dividido em três blocos e teve platéia numerosa, especialmente de estudantes, e a participação do jornalista Américo Martins, chefe do Serviço Brasileiro da BBC de Londres, que falou da sede da emissora. Sobre a posição dos ingleses em relação à guerra, inicialmente contrária depois favorável, Martins disse que se explica pelo fato de as famílias terem filhos soldados. Iniciado o conflito, passaram a apoiá-los, embora ainda haja grande contingente de pessoas que continuam contra. Os ingleses, disse, têm tradicionalmente forte ligação com as suas forças armadas. O professor Mahir, que nasceu em Bagdá mas é naturalizado brasileiro, interveio para dizer que “os soldados ingleses foram arrastados para a guerra, mas, em princípio, os ingleses são contrários a ela”.

Em outro momento do debate, a psicanalista Maria Rita considerou um precedente perigoso que, em nome da soberania nacional, os Estados Unidos tenham passado por cima da democracia, representada, no caso, pelos países integrantes da ONU. O equilíbrio imposto pela força, segundo ela, é sempre precário e a partir da guerra do Iraque todos os países podem temer ações do mesmo tipo. “O ato de desmoralizar a ONU é pior do que o de matar milhares de pessoas em campo de batalha.”

Braz Araujo disse que não se pode ter visão tão catastrófica do futuro, pois as guerras, embora todos as condenem, fazem parte da história, e que as opiniões costumam mudar quando a guerra acaba. Assim será, segundo ele, no Iraque depois da queda de Saddam Hussein, quando a população terá consciência de que foi libertada do jugo de um ditador. O professor defendeu ainda, para estranheza do público, que a democracia pode ser imposta à força, e citou os casos da Alemanha nazista e do Japão, derrotados na Segunda Guerra Mundial, mas agora com formas de governo democráticas.


MIGUEL GLUGOSKI

 




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