Apenas através do controle social, a reforma administrativa
que está na pauta do atual governo poderá ser eficaz.
Ter controle social significa contar com uma sociedade vigilante
aos atos do governo. O Estado, hoje, mostra-se “inadimplente,
falido ou concordatário” em relação ao
cumprimento de suas obrigações constitucionais, pois
enfrenta “demanda muito maior do que a capacidade de oferta”,
segundo o professor Hélio Janny Teixeira, livre-docente da
área de Administração da Faculdade de Economia,
Administração e Contabilidade (FEA) da USP, para quem
é preciso repensar a questão societária a fim
de vislumbrar possíveis saídas. Estado, sociedade
civil – com suas organizações não-governamentais
(ONGs) – e mercado formam um conjunto capaz de articular essas
forças. As ONGs, sozinhas, não seriam suficientes,
já que cada instância tem seus próprios limites
e possibilidades.
Quem
acha que a solução está exclusivamente dentro
do Estado se engana, assim como quem o despreza. Da mesma forma
os “apaixonados pelo mercado”, pois a solução
aponta para a “articulação de novos pactos societários
entre todo o conjunto, o que já vem ocorrendo”, acrescenta.
O discurso
“esquerda radical” do governo de Luiz Inácio
Lula da Silva, na prática, não tem se verificado,
pois o fortalecimento do mercado e da sociedade, assim como o fato
de as empresas serem decisivas para o crescimento, têm sido
aceitos. “Não se resolvem problemas apenas com programas
assistencialistas”, declara.
Cada
vez mais, empresas privadas envolvem-se em projetos sociais, porém
não se enganem os que pensam o mercado como elemento de “preocupações
intergeracionais”, como poluição ambiental,
por exemplo. O mercado é imediatista, mas contribui de maneira
fantástica para a produção e distribuição
de bens e serviços. Cabe, portanto, a tentativa de combinar
ética econômica a outras éticas, pois não
é possível substituí-lo sem destruí-lo
com o que tem de bom e de perverso. “O certo seria extrair
dele o que tem de bom para juntar a outros elementos do conjunto
– esse é o grande desafio”, afirma.
Janny
Teixeira alerta para o cuidado com diagnósticos precipitados
que não levam em conta a história, como “o mercado
está tomando conta do Estado”, indicando que aquele
avança enquanto este diminui. Ele explica que o Estado foi
enfraquecendo, ficando impotente, não se modernizou, dando
chance ao mercado de ocupar espaços não-atendidos.
Ser
contra ou reduzir o desenvolvimento econômico mostra-se contraproducente,
pois resultaria em piora da condição de vida dos ricos
e mais ainda dos pobres. A idéia é ter políticas
públicas voltadas ao atendimento de direitos constitucionais
como saúde, educação, transporte, segurança,
Previdência Social e proteção à maternidade,
à infância e à adolescência. “Afinal,
quem não precisa andar com segurança pelas ruas, utilizar
transporte coletivo ou garantir boa educação aos filhos?”
Recentemente,
o direito à moradia foi incluído na Constituição,
mas não está regulamentado. Os direitos sociais avançaram,
porém a administração pública ainda
mantém “certa rigidez na gestão”. Por
exemplo, isonomia e regime único para funcionários
celetistas e estatutários “amarraram o sistema”.
O parlamentar constituinte deparou-se com enorme confusão
envolvendo o funcionalismo e, na tentativa de solucionar parte do
problema, deu estabilidade a quem estava há cinco anos no
serviço público. Esse funcionário aposentou-se
com salário integral sem ter contribuído, o que hoje
onera a Previdência Social. Em termos de finanças públicas,
essa inclusão significou “um desastre”, segundo
o professor.
A reforma
administrativa implementada pelo ex-ministro Luiz Carlos Bresser
Pereira acabou com o regime único, com a isonomia e com a
estabilidade. “No fundo foi uma mudança jurídica,
sem grandes modificações na gestão de recursos
humanos”, analisa.
Princípios
que diferenciam administração direta e indireta foram
estabelecidos, mas sem resultado satisfatório. “A gestão
pública ficou truncada por preceitos rígidos, tornando-se
inviável.” Estatais sem estatuto próprio, desprotegidas
de ingerências políticas, mostraram-se não-competitivas.
Portanto,
“quem fala que a administração pública
não funciona tem razão: não funciona mesmo”,
pois está amarrada ao próprio arcabouço institucional.
“Em geral, o grande inimigo da máquina pública
é o próprio Estado”, reforça.
Cada
vez melhor – Mas o quadro tem também aspectos otimistas.
A reforma proposta por Bresser Pereira é tida como “positiva”
pelo professor do ponto de vista jurídico, restando ainda
mudar o padrão de gestão do funcionalismo. Apesar
de a sociedade reclamar da morosidade do Estado, avanços
em várias áreas merecem ser lembrados. Há esforços
em logística, informática, compras de materiais, tentativas
de criar novas metodologias de gestão, cadastro de fornecedores,
banco de preços, revisão de algumas carreiras e ainda
o fim da isonomia e da obrigatoriedade do regime único, que
culminaram em maior transparência. “No geral, no Brasil,
a gestão pública tem avançado, embora não
na velocidade demandada pela sociedade”, diz o professor.
Ele não concorda que a situação “está
cada vez pior”. Na sua opinião, pelo contrário,
“está cada vez melhor, embora não suficientemente
melhor”. O Estado, em determinadas ocasiões, se coloca
adiante da sociedade, estrategicamente, em relação
ao desenvolvimento: “É indutor, pró-ativo, aglutinador
e sinérgico”, define.
A experiência
de São Paulo foi lembrada, quando, no governo Lucas Nogueira
Garcez, projetos de infra-estrutura de energia elétrica –
dos quais a USP participou – tiveram comportamento indutor,
criando condições para facilitar o avanço do
Estado como pólo industrial do País.
Em
relação aos anseios sociais, porém, o atraso
está sempre presente na gestão pública, deixando
a eterna impressão de que a máquina está defasada.
Alguns autores entendem a reforma administrativa como algo conservador,
por mais paradoxal que pareça, já que apresenta-se
como meio para manter o anacronismo do sistema. “A reforma
não aponta para grandes mudanças, mas para a melhoria
do velho.”
Estudioso
da gestão pública como um todo, o professor Janny
Teixeira lembra que a proposta de reforma, no governo Fernando Henrique
Cardoso, demorou oito anos para ser aprovada. De volta ao Poder
Executivo, esteve submetida ao Plano Diretor de Reforma do Aparelho
do Estado. Nunca houve reforma global envolvendo os três poderes,
situação considerada “utópica, pois cada
poder tem seu ritmo e possibilidades de mudança”, pondera.
Quando
se trata de recursos humanos, um padrão antigo, de difícil
gestão, sustentado por leis e por uma cultura que estabelece
direitos e deveres cristalizados ao longo do tempo, terá
de ser enfrentado. Trata-se de modelo que leva “as pessoas
a cumprir obrigações pelo mínimo”. Segundo
o professor, não é um padrão dinâmico,
que fortaleça excelência, competência ou valorização
do mérito. “Quanto mais velhas, mais antigas na função,
mais as pessoas ganham, independente do esforço e da contribuição.”
Indagado sobre a avaliação funcional, resume: “Não
funciona”, e acrescenta: “Geralmente, isso é
pouco considerado, pouco respeitado e, mesmo quando é bem
cuidado, o impacto na remuneração é muito baixo”.
As
reformas administrativas clamam pela necessidade de melhorar o paradigma
da remuneração. No Executivo, a referência é
o salário do presidente da República, nos Estados,
o dos governadores e, no Legislativo, o do presidente do Senado.
O clamor que hoje se verifica reconhece a necessidade de, a partir
de um teto salarial, decompor os demais salários. A conta
se tornará “impagável” caso seja feita
uma correção global, em cadeia, afirma Teixeira. Além
disso, quem ganha R$ 8 mil, por exemplo, ganha muito em relação
a quem ganha R$ 500, mas, às vezes, esse funcionário
ganharia R$ 20 mil se concorresse a vagas no mercado. São
fatos que inibem profissionais competentes cujos cargos oferecem
ganhos mais atrativos na iniciativa privada.
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