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Kim Phuc (à direita) foge de incêndio: foto marcou a Guerra do Vietnã  
Estátua de Saddam é destruída: a coalizão está em Bagdá

Uma garotinha nua, de apenas nove anos, correndo entre outras crianças apavoradas e descalças por uma rua atemorizante. A fumaça como pano de fundo desse cenário denuncia o motivo de tão desesperada fuga. As bocas escancaradas sugerem gritos e choro. A mais perfeita descrição jamais se aproximará do impacto causado pela imagem da menina Kim Phuc, fugindo de um incêndio no seu povoado durante a Guerra do Vietnã em 1972, foto do vietnamita Nick Ut.

Esse é apenas um dos retratos marcantes de uma guerra. Quais serão as fotos que perpetuarão para sempre a luta entre o Iraque e as forças de coalizão americanas e britânicas? As imagens históricas já circulam diariamente nos veículos de comunicação.

A informação através da palavra escrita é fundamental para a compreensão e análise dos fatos, mas o poder da imagem é indiscutível. Seu papel vai de simples retrato do cotidiano a agente transformador da realidade. A propagação da foto da garota Kim, por exemplo, serviu como elã na mobilização da opinião pública americana para pressionar o governo dos Estados Unidos a assinar um acordo de paz com o Vietnã.

Envolta em tanto poder, a guerra das imagens é uma batalha paralela de interesses e representações diversas. Para o professor de Fotografia da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Boris Kossoy, também autor de livros sobre a história da fotografia no Brasil e na América Latina, “a questão da fotografia é o uso que se faz da imagem, que sempre permite inúmeros significados por toda a retórica que a circunda; o que é documento ao mesmo tempo pode ser utilizado como instrumento de propaganda”.

Soldado da coalizão comemora a entrada em Bagdá em cima de estátua de Saddam Hussein: imagens da guerra a serviço dos interesses das partes em conflito

Kossoy classifica a fotografia como uma segunda realidade – a primeira se resume ao fato. “Com as imagens se constroem realidades e ficções dependendo do emprego que se faz delas.” Ele acredita que toda fotografia é composta desde o momento em que o fotógrafo, também um filtro cultural, ajusta sua lente.

A imagem tem também uma dimensão simbólica. Kossoy cita como exemplo a foto divulgada no início da semana passada de um soldado das tropas de coalizão montado na cabeça arrancada de uma escultura de Saddam Hussein. “Essa fotografia representa a destruição de um ícone, é o líder decapitado simbolicamente, é a imagem de Saddam destruída. A fotografia permite essas múltiplas leituras porque é aberta a interpretações de pessoas de diferentes grupos econômicos e socioculturais.”

Da mesma forma, o professor explica que a foto de uma menina iraquiana ferida pode representar o sofrimento de todas as crianças na guerra. Um soldado morto, a dor de todas as famílias ou os outros militares que ainda morrerão.

Desde a primeira cobertura fotográfica profissional de uma guerra – a da Criméia, península ao sul da Ucrânia, em 1853 –, os recursos tecnológicos evoluíram muito. Os repórteres fotográficos de hoje não podem nem imaginar o sacrifício de Roger Fenton, que viajava com seu laboratório móvel adaptado em uma carroça.

O maior avanço é, sem dúvida, a velocidade e os equipamentos que possibilitam total mobilidade. O fotojornalista Juca Varella, único profissional brasileiro de fotografia enviado para cobrir a guerra no Iraque, conta que com uma câmera digital e um sistema de transmissão por satélite não se passam mais do que dez minutos entre o momento da foto e a visualização da imagem pelo editor do jornal em que trabalha.

O professor Boris Kossoy: uma foto, vários significados

O professor Kossoy também atribui à velocidade a sensação de mais dramaticidade nas fotos da guerra atual. “Temos um impacto maior das imagens por causa da agilidade, é um massacre de informações, existe a oportunidade de acompanhar o ‘filme’ da guerra praticamente on-line.”

Os horrores da guerra no Iraque não são diferentes daqueles ocorridos nos anos de 1861 a 1865, quando Mathew Brady registrou pela primeira vez corpos mutilados e soldados feridos na guerra civil americana. Mas, na era digital, a chance de testemunhar esses horrores é diária e em tempo real.

 

 

Um fotógrafo na frente de batalha

Desde os 15 anos, quando começou a enveredar para a fotografia, Juca Varella sonhava em cobrir uma guerra. Passados 23 anos, o sonho virou realidade, com direito também a todos os pesadelos e privações que envolvem uma guerra. Enviado pela Folha de S. Paulo a Bagdá e agora em Amã, na Jordânia – depois de uma tensa viagem de 12 horas em meio a veículos e pontes bombardeados –, ele é o único brasileiro fotografando a Guerra do Iraque.

O trabalho de Varella é completamente digital. Ele não usa filmes e a transmissão das fotografias se faz via satélite por um aparelho chamado Inmarsat, levado às escondidas para o Iraque. Apesar das facilidades tecnológicas, as possibilidades são limitadas. “A cobertura de imagens tem sido muito controlada. Vários jornalistas que não cumpriram as regras do governo iraquiano foram expulsos ou presos.”

Os jornalistas não podem circular livremente para fazer a cobertura. São obrigados a seguir as determinações de um guia indicado pelo Ministério da Informação do Iraque. “Muitas vezes me dava angústia, no hotel, porque tinha muita coisa para fotografar, os americanos destruindo Bagdá e eu lá preso. Fiz o melhor que pude, mas diante do espetáculo de destruição que eu tinha pela frente sei que foi o mínimo”, contou Varella ao Jornal da USP, de Amã, através de mensagens eletrônicas.

Manipulação – Além do controle de um lado e de outro da trincheira, as imagens possuem mais influências e interferências do que revelam. Um fotojornalista do Los Angeles Times, por exemplo, foi demitido recentemente por alterar digitalmente uma foto da guerra no Iraque. Ele utilizou duas imagens diferentes de uma mesma cena para compor uma terceira, de apelo um pouco mais dramático. Mas a manipulação às vezes ultrapassa o campo digital e atinge a realidade. “Eu vi várias vezes, nessa cobertura, fotógrafos colocarem crianças na frente de escombros, posicionarem uma muçulmana chorando para ‘compor’ melhor a cena, pedir para o soldado trocar de mão a AK-47 para dar mais ‘estética’, várias situações arranjadas”, relata Varella. Ele não compreende muito esse tipo de atitude, não só pela questão ética, mas porque há muita “matéria-prima” na guerra para ainda haver a necessidade de forjar situações. “Prefiro não ter a composição perfeita mas dormir tranqüilo.”

Guerra de imagens – Varella se sentiu frustrado diversas vezes com a concorrência desleal entre os profissionais. Ele conta que as agências internacionais retiraram seus funcionários ocidentais de Bagdá antes de começar a guerra, por questões de segurança, e contrataram freelancers árabes. Apesar de também serem vigiados pelo governo iraquiano, os árabes tinham alguns privilégios, segundo Varella. Quando acontecia um bombardeio em uma área civil, por exemplo, eles saíam antes dos ônibus oficiais que levavam os outros jornalistas.

Por esse motivo, várias vezes as fotos do brasileiro não foram publicadas porque o jornal preferiu as das agências, que apresentavam um “cenário de guerra mais quente”. Mesmo com algumas desvantagens, porém, Varella também teve seus momentos de glória e se orgulha de contar que apenas ele e um fotógrafo francês conseguiram captar a imagem de míssil caindo perto do hotel em que estava no dia do início da guerra. O trabalho foi recompensado e ganhou a primeira página do jornal.

Com cinco quilos a menos, dormindo de botas amarradas e colete à prova de balas em dia de bombardeio, comendo sementes de abóbora no jantar e correndo risco de morte e de ter suas fotos trocadas pelas das agências, ainda assim Juca Varella está satisfeito. “Vivemos em um país sem grandes conflitos armados e não temos a ‘cultura editorial’ de mandar repórteres para a guerra, muito menos fotógrafos, por isso me sinto um privilegiado.”

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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