PROCURAR POR
 NESTA EDIÇÃO
  
 

 

Palácio presidencial destruído em Bagdá e soldados da coalizão anglo-americana avançam sobre a capital iraquiana: promessas a cumprir

O berço da civilização, as ruínas de Ur, no sul do Iraque, onde segundo a Bíblia nasceu o patriarca Abraão, foi o local escolhido para a primeira reunião visando a discutir o futuro de um país agora em ruínas. O encontro aconteceu no dia 15 de abril – sob forte protesto de grupos de oposição que reuniu cerca de 20 mil pessoas em Nassiriya – entre líderes políticos e religiosos iraquianos, além de autoridades americanas e britânicas. Os frutos da reunião se resumem a algumas propostas de governo e o acordo de um novo encontro nesta sexta-feira, dia 25.

Entre as principais proposições, notam-se algumas contradições. No mesmo documento, consta a proposta primordial de se criar um sistema federal democrático, baseado em consulta nacional, e a necessidade da dissolução do partido Baath e a eliminação de sua influência na sociedade iraquiana. Um dos princípios que norteiam a democracia é a idéia pluripartidarista, que parece não estar incluída nessa primeira fase. O objetivo dos líderes da coalizão é reinstituir o governo iraquiano através de um processo de três fases. Inicialmente, o poder ficará nas mãos do general norte-americano Jay Garner, que deverá chefiar a Agência de Reconstrução e Ajuda Humanitária (Orha). Em uma segunda fase, serão escolhidos representantes dos diversos grupos políticos para atuar até que haja uma transição definitiva do poder para os iraquianos, com a realização de uma eleição direta. Os americanos prevêem que todo o processo dure de seis meses a um ano.

Democracia imposta – O futuro do Iraque é tão incerto quanto complexo. Para a professora de História Contemporânea da USP Maria Aparecida de Aquino, o processo de reconstrução já se iniciou de forma contraditória. “Pensar em impor uma democracia é um contra-senso.” Ela também acredita que um conceito de democracia baseado em valores ocidentais aplicado a um país que desde 1920 vive sob regime autoritário está fadado ao fracasso. “O Iraque tem que encontrar seu próprio caminho, a intervenção externa é somente prejudicial. Leva-se gerações para criar hábitos democráticos.”

O professor de Relações Internacionais do Departamento de Ciência Política da USP Rafael Villa também vê de forma preocupante a imposição de modelos que muitas vezes não correspondem em nada à cultura dos iraquianos. Ele cita como exemplo a tentativa de se colocar uma mulher do governo americano para administrar provisoriamente a cidade de Bagdá. “Isso seria compreensível nos moldes ocidentais, mas é uma atitude desconhecida para as culturas árabes. Não se pode ignorar essas limitações, o povo vê isso como uma afronta aos seus valores.”

Além do aspecto político, a professora Maria Aquino aponta para um dos principais problemas a serem enfrentados pelo Iraque: a perda de sua maior riqueza, o petróleo, que ela acredita passará por um processo de reversão e tenderá a ser privatizado. “Isso é extremamente grave para o país, que tem uma dependência econômica muito grande do petróleo.” Ela é a favor da nacionalização permanente e preservação das riquezas naturais de qualquer país.

Divisões étnicas – A criação de um diálogo “aberto” com todos os grupos políticos nacionais para fazê-los participar do processo de transição de governo foi uma das propostas discutidas na reunião do dia 15. A população do Iraque se divide basicamente em sunitas (25%), nas áreas superiores do Tigre e do Eufrates, da fronteira com a Síria até Bagdá – que estavam no poder –, xiitas (50%), ao sul de Bagdá, e curdos (20%), muçulmanos sunitas que dominam as regiões montanhosas no nordeste do país. Além disso, persas, turcomanos, judeus e cristãos formam o restante da população. Torna-se difícil imaginar líderes de todos esses grupos e exilados políticos unidos em torno de uma mesma mesa de discussão e mais complicado ainda é visualizar um consenso.

O professor Villa acredita que, com a queda do regime de Saddam Hussein, os conflitos étnicos e religiosos, abafados pela opressão e autoritarismo da ditadura, serão retomados com toda a intensidade. Ele acha muito difícil negociar soluções em meio a um cenário tão heterogêneo e desorganizado. “Não existem lideranças políticas que façam mediações entre os grupos, fato que pode gerar uma maior desagregação, com o risco de acontecer até mesmo uma guerra civil.”

Maria Aquino também teme divisões inevitáveis no Iraque, como no caso dos curdos, que possuem seu próprio idioma, sonham em construir um país independente na região norte, onde se fixaram e desde 1970 vivem numa autonomia relativa. Como única forma de evitar o caos e promover o diálogo entre tantos ideais políticos e religiosos diferentes, a professora não vê outro caminho além da participação da Organização das Nações Unidas (ONU) para preparar o povo iraquiano para a escolha de seu governo. Mas, por enquanto, o papel da ONU na reconstrução do Iraque continua indefinido. Os governos americano e britânico exigem como condição um novo posicionamento dos países membros do Conselho de Segurança que foram contrários à guerra.

Futuro – A professora de História Contemporânea classifica a guerra como “um desastre irreparável”. Além da perda cultural, com a destruição de museus, monumentos e bibliotecas, a guerra implica o desmoronamento do orgulho de um povo. “Faz quase 30 anos que a Guerra do Vietnã acabou e o país não se recompôs. Culturalmente, a guerra é um desastre, destrói a esperança, a ilusão de uma geração e as conseqüências ainda serão sentidas daqui a 20, 30 anos.”

Maria Aquino não acha que apenas o Iraque saiu perdendo com essa guerra. Ela diz que a vitória americana tem um “sabor amargo” e que os Estados Unidos perderam um pouco da admiração que eles tinham ao redor do mundo. Passaram de “mocinhos” a “bandidos”, com tantos países contrários à guerra. A professora afirma que essa também é uma perda irreparável, que esse prestígio não se recupera.

O professor Villa encara essa vitória como um triunfo de uma elite intervencionista dos Estados Unidos no empenho de provar a eficácia de seu poderio bélico à opinião pública americana. Ele acredita que esse comportamento faz parte da política dos Estados Unidos de se firmar como primeira potência mundial, eliminando preventivamente todos os possíveis inimigos que ameacem sua segurança. Apesar de achar pouco provável um ataque a curto prazo à Síria – que os Estados Unidos vêm acusando de abrigar autoridades iraquianas foragidas e de possuir armas químicas –, Villa aposta que o governo americano permanecerá com o pensamento dicotômico do bem versus o mal e atacará de alguma forma quem estiver no lado do mal na visão deles. Ele só ainda não sabe definir com exatidão se essa é uma doutrina de Estado ou uma característica do governo de George W. Bush.

 

 

Afeganistão continua instável

Com os mesmos ideais de democracia e liberdade sendo propagados pelos Estados Unidos na atual guerra contra o Iraque, é inevitável trazer à lembrança o Afeganistão, também invadido pelos norte-americanos, em 2001. Afinal, como estão vivendo os afegãos mais de um ano depois dos ataques? A destruição já começa a ceder lugar à prometida reconstrução de uma pátria de igualdade? Essas são perguntas ainda sem respostas e que têm se mantido longe da mídia, com a atenção praticamente toda focada na segunda guerra do Golfo.

O porta-voz da missão da ONU no Afeganistão, o brasileiro Manoel de Almeida e Silva, descreveu de Cabul, por telefone, ao Jornal da USP um pouco da situação atual do país. Ele diz que o Afeganistão ainda continua bastante instável e depois de 23 anos de guerras e destruição as necessidades são imensas. O principal problema continua sendo a segurança, base para o desenvolvimento de todos os projetos de reconstrução.

Os conflitos armados ainda fazem parte do dia-a-dia do povo afegão e, a partir do meio deste ano, entrará em prática o programa chamado DDR (Desmobilização, Desarmamento e Reintegração), com o objetivo de acabar com as milícias e instituir um exército nacional, que vem sendo mobilizado desde dezembro do ano passado.

O governo transitório está sendo implantado nos mesmos moldes da proposta para o Iraque, mas com uma diferença fundamental – todas as mediações estão a cargo da ONU. Depois da queda do Talibã, houve uma reunião entre as facções afegãs e foi estabelecido um governo interino por seis meses. Em junho do ano passado, um conselho formado por várias lideranças do país elegeu um presidente para a administração transitória até que aconteçam eleições, provavelmente no ano que vem. Para este ano, também está prevista a elaboração e aprovação de uma nova Constituição. “Todo esse processo é muito difícil porque o país não tem uma tradição de eleições, não existe nem registro de eleitores”, relata Almeida e Silva.

Ele diz que uma das prioridades da missão da ONU, que acredita estar sendo cumprida, é fazer com que os afegãos definam as diretrizes do seu governo e “decidam o que querem fazer com o país”.

Frustrações e mudanças – O porta-voz da ONU conta que a população afegã se mostra muitas vezes frustrada com a lentidão do processo de reconstrução e com as promessas de ajuda humanitária. Apesar disso, ele enxerga alguns indicativos positivos de mudança, como a volta à escola, no ano passado, de 3 milhões de estudantes, sendo 30% meninas, e o aumento de 82% na produção de cereais. Entretanto, ainda falta o desenvolvimento de todos os projetos de infra-estrutura básica, desde o sistema de distribuição de água. A ONU estima que, neste ano, entre 4 milhões e 5 milhões de pessoas necessitem de ajuda alimentícia no Afeganistão.

Mesmo em meio ao clima de destruição, a vida começa a dar sinais de retomada. Almeida e Silva diz que estão de volta os engarrafamentos em Cabul, canteiros de obras espalham-se por diferentes cidades do país e o volume de pessoas e bicicletas cresce a cada dia.

O Talibã não desapareceu por completo. Apesar de não existirem provas definitivas, é provável que membros da organização estejam tentando se reagrupar. A reconstrução do Afeganistão, devastado por anos de guerra, implica muito mais do que apenas destruir o Talibã. Mas a seu favor o país tem a ONU como coadjuvante desse processo e o apoio financeiro de muitas nações, sobretudo da Europa, que legitimaram essa guerra. Já o Iraque por enquanto não conta com a mesma sorte e ainda terá que lidar com o risco de uma guerra civil num país já tão dividido por valores étnicos e religiosos. Aos iraquianos, resta torcer para que as grandes potências deixem os jogos políticos de lado e, mesmo não apoiando a guerra, promovam a reconstrução.

 




ir para o topo da página


O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]