A
Guerra do Iraque que depôs o ditador Saddam Hussein
e custou milhares de vidas de soldados e civis representou também
um rombo no patrimônio cultural da humanidade, caracterizado
pelo saque de milhares de peças de grande valor histórico
e arqueológico e destruição de antigos palácios,
escolas e construções de caráter religioso.
Só do Museu Arqueológico de Bagdá teriam sido
surrupiadas mais de cem mil peças, dando continuidade à
pilhagem histórica que se repete ciclicamente no que foi
antigamente a Mesopotâmia. Muitos textos cuneiformes que nem
foram publicados podem estar perdidos para sempre. Tanques de guerra
passearam sobre sítios arqueológicos e bibliotecas
e os prejuízos ainda estão sendo contabilizados. De
acordo com um especialista em História Antiga e professor
dessa disciplina na Universidade Federal Fluminense, Marcelo Rede,
a pior conseqüência da invasão do Iraque é
o empobrecimento do país e a desorganização
administrativa, que contribuem para que as condições
de preservação do patrimônio histórico
se deteriorem.
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Os senhores da
guerra: Bush, Powell e Blair podem ser responsabilizados pelos
danos ao patrimônio histórico iraquiano? |
É
bom também lembrar que a destruição de patrimônio
cultural da humanidade é crime. E quem deve responder por
ele? Os promotores da guerra, presidente George W. Bush, dos Estados
Unidos, e Tonny Blair, primeiro-ministro da Grã-Bretanha?
Historiadores e juristas concordam que sim, mas quem deve julgá-los
e como? Marcelo Rede, que é formado pela USP, com doutorado
em História Antiga pela Universidade de Paris e autor de
livros sobre cultura grega e árabe, lembra que uma convenção
da ONU, de 1954, regulamentou a proteção dos bens
culturais de uma região em caso de conflito armado, mas os
Estados Unidos não a assinaram, o que os exime de compromisso
nessa questão. Para o professor Antonio Junqueira, da Faculdade
de Direito da USP, do ponto de vista da legislação
brasileira os responsáveis seriam Bush e Blair, pois foram
eles os causadores dos danos aos bens culturais do Iraque. Mais
ainda: a responsabilidade se estenderia aos Estados Unidos, como
poder público. Comparando, diz Junqueira, é como acontece
em caso de briga e morte entre presos em cadeia pública:
o Estado responde pela morte do prisioneiro sob sua guarda. Os governos
dos Estados Unidos e da Inglaterra foram insistentemente alertados
pelos cientistas e pela Unesco sobre os riscos que a guerra, os
bombardeios e os saques representariam para a cultura milenar da
Mesopotâmia, mas nada fizeram para impedir a destruição.
É certo que no âmbito internacional não é
tão simples julgar acusados de crime; é como colocar
o guizo no pescoço do gato quando se é rato. Mas Junqueira
recorda que a ONU pode criar tribunais especiais, como o de Haia,
instituído para julgar acusados de massacre e genocídio
na antiga Iugoslávia. Um Estado pode ser condenado a pagar
os prejuízos, ainda mais quando os bens destruídos
não são exclusivos de um país, mas declarados
da humanidade. Outras formas possíveis de ressarcimento,
segundo Junqueira, seriam recuperar e devolver os bens pilhados,
repor as peças furtadas (impossível no caso de acervos
históricos) ou prestar serviços à comunidade,
no caso recuperar os monumentos e edifícios danificados.
Para
Mamede Mustafa Jarouche, professor de Cultura Árabe na Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, não
há dúvida de que é “o presidente fraudulentamente
eleito dos Estados Unidos” o principal responsável
pelos danos causados aos bens culturais do Iraque. Mamede, que trabalhou
em Bagdá em 1985, durante o conflito com o Irã, diz
ter notícia de que as peças históricas pilhadas
já chegam a 170 mil, e que a destruição não
se limita à antiga Mesopotâmia, mas atinge também
o Iraque islâmico. A cultura do Texas se impôs à
da milenar Mesopotâmia. A seguir, a entrevista concedida ao
Jornal da USP pelo professor Marcelo Rede.
Jornal
da USP — Com a guerra praticamente terminada, que balanço
se pode fazer dos danos causados ao patrimônio cultural do
Iraque?
Marcelo
Rede — Como era de se temer, a fase pior começa agora
que o conflito propriamente militar parece estar chegando ao fim.
Evidentemente, a guerra em si causa danos irreparáveis ao
patrimônio cultural, com a destruição física
devida aos bombardeios e à ocupação massiva
do território por tropas. Na primeira Guerra do Golfo, em
1991, a zigurate (monumento religioso em forma de pirâmide
escalonada, com acesso por rampas e escadarias ao topo onde havia
um santuário) de Ur foi atingida por mais de 400 projéteis
e quatro grandes crateras foram abertas nesse sítio arqueológico.
O arco de Ctesifonte, que durante muito tempo foi o maior da humanidade,
teve sua estrutura abalada pelo impacto das bombas. No atual conflito,
o museu de Tikrit foi atingido e a Universidade de Mustansirya,
que se originou de uma antiga madrasa (escola islâmica) do
século 13 foi praticamente destruída. A extensão
dos estragos da atual campanha sobre os sítios arqueológicos
ainda não é totalmente conhecida. No entanto, o problema
maior é a situação geral que se origina da
guerra. O empobrecimento do país, a desorganização
administrativa, tudo acaba contribuindo para que as condições
de preservação do patrimônio histórico
se deteriorem consideravelmente.
JUSP
— Quem pratica os saques e onde eles ocorrem com maior intensidade?
Rede
— Nós temos o exemplo do passado. Com o embargo econômico
após 1991, uma parte da população e dos grupos
beduínos foi estimulada a pilhar os sítios arqueológicos
e a vender os objetos no mercado ilegal de antigüidades. A
perda de controle administrativo de regiões do sul e do norte
também agravou a situação. As zonas de exclusão
aéreas impostas pela ONU abaixo do paralelo 32 e acima do
paralelo 36 diminuíram a capacidade de ação
do governo de Bagdá, mas não criaram nenhum mecanismo
de controle alternativo. Não é à toa que grande
parte dos saques da última década ocorreu na zona
xiita e curda. Há alguns meses, os mercados europeus e norte-americanos
foram invadidos por centenas de tabletes cuneiformes provenientes
da antiga cidade suméria de Umma, no extremo sul do país.
Até recentemente, esse sítio nunca tinha sido escavado
oficialmente e esses textos milenares são fruto de pilhagem.
No norte, perto da cidade de Mossul, ocorreu o caso mais escandaloso
dos últimos tempos. Nessa região fica a antiga cidade
real de Nínive, que fora criada por Senaqueribe, rei da Assíria,
para ser sua capital. Um palácio grandioso foi construído.
Era conhecido, na época, como “palácio sem rival”.
O
sítio de Nínive foi transformado em um museu a céu
aberto, mas foi completamente pilhado após a guerra de 1991.
Paredes de pedra com relevos foram removidas inteiramente ou retalhadas
pelos saqueadores. Muitos fragmentos reapareceram nos últimos
anos no circuito das antiguidades da Europa e Estados Unidos.
JUSP — Qual é o valor estimado das peças furtadas
no mercado clandestino ou nos leilões de arte?
Rede
— Os valores implicados podem ser enormes. Apenas para se
ter uma idéia, um dos fragmentos dos relevos do palácio
de Senaqueribe, que já estava na Inglaterra desde o século
19, foi leiloado pela Christie’s de Londres em julho de 1994.
Um marchand japonês, Noriyoshi Horiuchi, arrematou-o por 12
milhões de dólares. Um pequeno tablete em escrita
cuneiforme pode valer algumas dezenas de milhares de dólares.
Um tablete literário, mais prestigioso, pode chegar facilmente
a 200 ou 300 mil dólares.
JUSP
—Entre as mais de cem mil peças que teriam sido retiradas
pelos saqueadores do Museu Arqueológico de Bagdá,
quais seriam as mais valiosas?
Rede —
O saque do Museu Arqueológico de Bagdá representa
uma perda irreparável. Trata-se do maior acervo de peças
da antiga civilização mesopotâmica que existe.
Ainda é muito cedo para avaliar os danos, mas eles parecem
consideráveis. Algumas
fontes falam de mais de cem mil peças roubadas ou destruídas.
Parece que dentre elas estava uma lira suméria ornada com
uma excepcional cabeça de touro, em ouro e lápis-lazúli.
Ela provinha das tumbas reais da cidade de Ur e pode ser vista em
qualquer livro de história da arte antiga. Se a perda se
confirmar, seria uma catástrofe. Mas não são
apenas as grandes obras de arte que contam. Cada objeto no museu,
por mais simples, é uma fonte preciosa de informações
para o estudo das sociedades antigas. O pior é que o Museu
de Bagdá é um grande depósito de objetos e
textos cuneiformes que foram escavados recentemente ou apreendidos
pela Justiça e nem sequer foram publicados. Toda essa informação
estaria perdida para sempre.
JUSP
— Do ponto de vista histórico e cultural, por que o
Iraque tem tanta importância?
Rede
— O território do Iraque corresponde, grosso modo,
ao que foi a antiga Mesopotâmia, terra entre os rios Tigre
e Eufrates em que se desenvolveram as culturas suméria, assíria
e babilônica, dentre outras. É o que podemos chamar
efetivamente de “berço da civilização”.
Muitos dos processos matriciais da passagem das sociedades pré-históricas
para as sociedades complexas ocorreram pela primeira vez nessa região:
as primeiras tentativas de domesticação dos animais,
de realização da agricultura, as primeiras cidades
da história. Até onde sabemos, a primeira vez que
o homem registrou um sistema de escrita, isso ocorreu em Uruk, um
dos primeiros centros urbanos do sul da Mesopotâmia. Isso
significa que o que resta hoje no território iraquiano, na
forma de milhares de sítios arqueológicos, é
um material insubstituível no estudo de alguns dos mais relefantes
processos de transformação na história da humanidade.
JUSP
— A Mesopotâmia tem sido vítima de vandalismos
históricos, uma vez são as bibliotecas, outras vezes,
palácios, águas, petróleo. Quais são
as principais datas de saques ocorridos em milênios de história
iraquiana?
Rede
— Na verdade, a região tem um longo histórico
de destruição e pilhagem de seu patrimônio histórico.
Quando as explorações arqueológicas começaram,
no século 19, pareciam mais com grandes operações
de butim. A finalidade principal era obter belos objetos de arte
e descobrir os textos mais prestigiosos, sobretudo aqueles que tinham
relações com a tradição bíblica.
A história mesopotâmica do dilúvio, por exemplo,
foi encontrada e publicada nessa época. O resultado foi uma
grande transferência de objetos e tabletes para os principais
museus das potências colonizadoras da Europa e para os Estados
Unidos. Parte dos tesouros das tumbas reais de Ur, dos relevos palaciais
de Kalhu (Nimrud) e da famosa biblioteca de Assurbanipal, em Nínive,
encontra-se em Londres. Os touros alados de Khorsabad, a antiga
capital de Sargão II, podem ser vistos no Louvre, ao lado
da estela do código de Hammurabi. A Porta de Ishtar da Babilônia
foi desmontada, tijolo por tijolo, e enviada quase inteiramente
a Berlim. Durante a época de domínio otomano, as autorizações
de escavação eram dadas mediante o envio de parte
dos resultados para os museus turcos. É assim que, hoje,
Ankara e Istambul têm grandes coleções mesopotâmicas.
A situação só começou a se alterar em
1932, com a independência do Iraque. Uma lei de proteção
do patrimônio nacional determinou que todo o material escavado
ficasse no Iraque.
JUSP
— O Iraque de Saddam Hussein tinha uma política de
proteção aos bens culturais do país?
Rede
— A situação no Iraque era, até então,
bastante diferente da de outros países islâmicos do
Oriente Médio. Na região, em geral, há um menosprezo
ou mesmo negação do passado pré-islâmico.
O caso mais radical, nós vimos no Afeganistão, com
a explosão dos Budas pelo governo Talebã. No Iraque,
ao contrário, há uma valorização desse
passado anterior a Maomé. É verdade que isso fez parte
de um discurso ideológico do governo de Saddam Husseim. O
ditador se apresentava como o herdeiro dos grandes reis mesopotâmicos,
Hammurabi, Nabucodonosor, Assurbanipal. Muitas das restaurações
dos monumentos históricos iraquianos integravam esse esforço
de propaganda política do governo. É igualmente verdade
que, nos últimos anos, o governo instalou vários conjuntos
militares e palácios ao lado de monumentos e sítios
históricos: a alguns metros de Babilônia, por exemplo,
há um dos palácios presidenciais. Por outro lado,
é preciso dizer que o país investia seriamente na
recuperação, na preservação e no estudo
desse passado pré-islâmico. Há equipes de arqueólogos
e de museólogos de alto nível no país, muitos
formados no exterior. E, antes do fechamento do país, sempre
houve um intercâmbio intenso com a comunidade científica
internacional.
JUSP
— Qual é, em linhas gerais, a história cultural
de Bagdá?
Rede
— Bagdá foi fundada em 762 pelo califa Al-Mansur para
ser a sede do califado Abássida. Durante quase dois séculos
ela viveu um período de esplendor. Era a sede do poder político
e uma das principais cidades do mundo islâmico, ao lado de
Damasco, Alep, Jerusalém, Fustât (depois, Cairo), Córdoba,
Granada e Sevilha. Ela se tornou também um importante centro
comercial, um dos elos da rota da seda, que vinha da China. Mas
foi como centro de saber, não apenas religioso, mas também
de ciência, que Bagdá se destacou. Uma parte dos contos
das Mil e uma noites foi compilada nessa época e os escribas
árabes tiveram um papel central na transmissão da
cultura e dos textos gregos e latinos. Mas dessa época áurea
pouco resta. Em 1258 a capital foi invadida e destruída pelos
mongóis. Depois, no século 16 a região foi
incorporada ao Império Otomano, ficando assim até
1921. Entre 1921 e 1932 foi um protetorado britânico. Mesmo
assim, a cidade tem monumentos importantes, mesquitas, museus, bibliotecas,
locais de peregrinação religiosa.
A
lira suméria com cabeça de touro dourada (à
direita), que estava no Museu de Bagdá e pode ter sido
destruída: um patrimônio insubstituível |
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JUSP
— A destruição de patrimônio cultural
da humanidade é crime. Quem deve responder pelos saques no
Iraque? Bush e Blair? Há algum tribunal internacional em
condições de julgá-los?
Rede
— O pior é que tudo isso era previsível. Antes
mesmo do conflito, uma petição assinada por vários
especialistas da área, inclusive por mim, foi enviada pelo
Instituto Americano de Arqueologia aos governos da coalizão,
incitando-os a tomar providências a fim de respeitar o patrimônio
histórico iraquiano. Há uma convenção
da ONU que regulamenta a proteção dos bens culturais
de uma região em caso de conflito armado, assinada em Haia,
em 1954. O problema é que os Estados Unidos não são
signatários dessa convenção, o que significa
que, do ponto de vista do direito internacional, eles não
têm nenhum compromisso com a questão. E na prática,
visto o desenrolar dos últimos eventos, eles não tomaram
nenhuma atitude mais consistente no sentido de evitar o que ocorreu
no Museu de Bagdá e na Biblioteca Nacional do Iraque. Segundo
as notícias, o único prédio público
em que os mariners fizeram um cordão de isolamento foi o
Ministério do Petróleo. No mínimo, as tropas
de ocupação foram coniventes e negligentes e devem,
a meu ver, ser responsabilizadas pelas perdas do patrimônio
cultural iraquiano.
JUSP
— É certo que os ataques de agora foram precedidos,
modernamente, de agressões do tipo ecológico, como
derramamento e queima de óleo com prejuízo para a
fauna e os rios, destruição de manguezais em razão
da construção de barragens, envenenamento da terra
e das pessoas pelas “balas de prata” quimicamente tóxicas.
Nesse passo, qual é o futuro previsível para a região?
Rede
— Do ponto de vista ecológico, a região também
tem sofrido muito com as intervenções brutais e inconseqüentes
das últimas décadas. Uma série de barragens
construídas ao norte e oeste, pela Turquia e pela Síria,
diminuiu drasticamente o volume de águas dos rios Tigre e
Eufrates. O próprio governo iraquiano tenta reagir à
penúria usando os mesmos métodos e os resultados podem
ser lamentáveis. Nos últimos anos, uma grande represa
estava sendo construída ao norte de Bagdá. O projeto
de Makhul prevê a criação de um lago de cerca
de 200 quilômetros quadrados e a inundação de
diversos sítios arqueológicos, dentre os quais o de
Assur, a mais importante capital do Império Assírio.
Os alemães haviam retomado as escavações em
regime de urgência em 2000, mas a situação política
impediu a continuidade dos trabalhos. A região sul também
tem problemas do mesmo gênero. Antes de desaguar no Golfo
Pérsico, o Shat’el-Arab atravessa um território
dominado por pântanos, terrenos alagadiços e um emaranhado
de pequenos rios e canais. Sob o argumento de que essas zonas escondiam
guerrilheiros xiitas, o governo as drenou largamente, interferindo
mortalmente no ecossistema e nas culturas pantaneiras ancestrais
que aí viviam.
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As
peças provenientes da antiga Mesopotâmia revelam
aspectos das primeiras civilizações: uma riquíssima
herança cultural pode ter-se perdido para sempre |
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