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Repare no que você veste e usa: a camisa, a blusa, as calças, a cueca, o sutiã, o relógio, os sapatos, os botões... Todas as peças foram produzidas pelas indústrias e comercializadas pelo mercado, mas com tecnologia gerada nas universidades e outros centros de pesquisa, provavelmente nos últimos cinco anos. A aplicação em conhecimento e em tecnologia é bom investimento; concorre para o desenvolvimento do País e, indiretamente, para a qualidade de vida da população. De quem é o lembrete? De dois dos candidatos à presidência da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), professores Renato Janine Ribeiro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Ênnio Candotti, da Universidade Federal do Espírito Santo. Eles concorrem ao cargo com o físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, Professor Emérito da Universidade de Campinas (Unicamp). A eleição, pela Internet, começou dia 12 de maio e se estenderá por um mês. O vencedor e os demais membros da chapa eleita assumirão as funções na reunião anual da entidade marcada para julho, no Recife, Pernambuco.

O estreitamento das relações entre cientistas e setores produtivos, entre universidade e sociedade, é apenas um dos itens comuns aos programas dos dois candidatos. Ênfase em outros pontos diferencia um pouco as propostas. Janine, filósofo e docente de Ética e Filosofia Política, insiste em maior diálogo com a sociedade; Candotti, físico que já presidiu a SBPC por dois períodos, pretende fortalecer o caráter nacional da entidade e expandir as representações e as condições de pesquisa nos Estados. Ambos não abrem mão de posições críticas em relação às políticas públicas e às universidades.

Resultado indireto – A observação sobre a tecnologia que reveste nossas roupas e nossos sapatos é de Janine, quando falava sobre recursos para a ciência no Brasil e, especificamente, para a SBPC. Disse que no Estado de São Paulo, “depois do cataclismo que foi o governo de Paulo Maluf”, conseguiu-se certo equilíbrio, graças sobretudo à Fapesp, que tem recursos fixos com base em percentual do ICMS. No âmbito federal, a situação é mais delicada e os fundos são escassos. A bolsa de produtividade do CNPq, por exemplo, permanece inalterada desde o Plano Real, com teto de R$ 1.140,00. Na época, esse valor significava metade ou pelo menos um terço do salário de um professor universitário com dedicação exclusiva ao ensino e à pesquisa; hoje é irrisório. “É preciso recuperar isso. Nosso problema não é tanto fazer lobby no Poder Executivo; é mostrar para os cidadãos que ciência e tecnologia fazem a diferença.” Janine considera erro “monumental” misturar as verbas de pesquisa com as dos programas sociais. “Verba da ciência não visa diretamente a acabar com a fome, mas é das aplicações mais bem-feitas, porque indiretamente melhora a vida de todos.” Segundo ele, até agora a SBPC estava muito ocupada em dialogar com o governo federal, com as fundações de amparo à pesquisa e com os ministérios, especialmente o de Ciência e Tecnologia. “Agora é o momento de ampliar isso, dialogar mais com a educação e a cultura, mas sobretudo pensar em termos de sociedade. É preciso desestatizar nosso discurso. Em setores diversos há grande demanda de conhecimentos científicos. Gente querendo organizar cursos, colóquios, seminários, sites. Queremos garantir que isso seja feito de maneira qualificada e evitar o risco de que tudo vire apenas mercadoria, conforme aquela idéia da Organização Mundial do Comércio, de que o ensino é mercadoria como qualquer outra.”

Candotti defende o aperfeiçoamento de instrumentos responsáveis pela distribuição de recursos, não apenas do Ministério de C&T, mas também daqueles que tradicionalmente mantêm programas e institutos de pesquisa, como os da Saúde, Meio Ambiente, Agricultura e Educação. “Defendemos que instrumentos de fomento e avaliação em C&T deveriam ser criados também nas agências de desenvolvimento regional, como as que vão substituir as extintas Sudene e Sudam.” O físico propõe ainda a criação de incentivos fiscais para a ciência e a divulgação científica. A medida, somada a outras providências, ajudaria a corrigir as desigualdades existentes no desenvolvimento científico e tecnológico do País, tanto entre as diferentes áreas de pesquisa, como entre as regiões.

Ação política – Dirigir uma sociedade como a SBPC é tarefa para pesquisadores de renome ou para burocratas? Candotti e Janine estão seguros de que se trata de ação política, no sentido de arte de alcançar o bem comum. “Não acho que seja atividade burocrática, pelo contrário, exige preparação, vocação e serenidade que dificilmente encontramos juntas em uma mesma pessoa”, disse o físico, observando que a entidade tem responsabilidades éticas e científicas, “permanentemente e criticamente observadas pelos sócios, amigos ‘torcedores’ e sociedades científicas”. Candotti acrescenta: “Aceitei a candidatura e com isso a possibilidade de abandonar o meu ‘refúgio de Vitória’, onde me recolhi dedicando-me ao ensino e à física, após mais de 15 anos à frente da Ciência Hoje (1982-96) e quatro na presidência da SBPC (1989-93)”. Move-o também a oportunidade de colaborar com o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, “para que as propostas de mudança na educação, na política científica, nos direitos à cidadania se realizem.”

Discurso possível – No refúgio, não de Vitória mas de sua minúscula sala de professor no Departamento de Filosofia da FFLCH, Janine justifica a decisão de concorrer à presidência da SBPC, lembrando que o cargo tem sido exercido preferencialmente por pesquisadores, e dos bons, como o geógrafo Aziz Ab’Sáber, o farmacólogo de renome internacional Sérgio Ferreira e o geneticista Crodowaldo Pavan. A SBPC, segundo ele, não é órgão do aparelho do Estado, o essencial dela é ser o braço político da ciência brasileira; “é ser o lugar onde os cientistas podem falar e se relacionar com a sociedade”. A entidade teve papel relevante na democratização do País, não só porque mobilizava muita gente nas suas reuniões anuais, mas também — diz Janine — porque as ciências humanas e sociais veicularam o discurso que foi possível usar contra a ditadura e para promover a democracia. “Não se construiria uma sociedade democrática como há hoje se não fosse o discurso dos cientistas humanos e sociais, e isso passa em boa parte pela SBPC.” O filósofo encontra uma nova vocação para a SBPC: “Até aqui ela teve a vocação dos tempos de crise, de defender a ciência das ameaças, sobretudo do governo Fernando Collor, um governo lamentável para a cultura e a ciência. Agora é hora de pensar qual deve ser o papel do conhecimento; a sociedade vai utilizar cada vez mais o saber como elemento decisivo. A importância da inteligência e do conhecimento é cada vez maior. Nosso desafio é fazer com que cumpra esse papel”. Por isso ele quer ampliar o diálogo com a educação e tomar a defesa da escola pública, que no governo anterior, de Fernando Henrique Cardoso, foi, na sua opinião, “desmanchada”.

Como Janine, Candotti considera que uma SBPC atenta apenas às questões de ciência e educação é um equívoco; “ela não pode se dedicar apenas a elas, uma vez que não podem ser separadas da vida política do País e de sua história. Não pode ficar alheia às tensões sociais, culturais e econômicas em que o País está imerso”. Candotti lembra que a SBPC sempre se empenhou nas batalhas pela autonomia e pela reforma da universidade pública e na qualificação do ensino superior, mas “a cada ano que passa a reforma parece mais complexa e distante”. Se eleito, a luta continuará. Para Janine, a universidade pública deve exercer papel de liderança. Ele até concorda com o ministro Cristovam Buarque quando diz que boa parte do conhecimento se faz fora da universidade; mas isso é mais verdadeiro em outros países, não no Brasil, onde a escola pública continua sendo o centro de produção de conhecimento de qualidade.

O físico e o filósofo estão preocupados é com o desemprego dos doutores. Há muitos e bons na praça à espera de convocação. “Ainda hoje um concurso no Instituto de Física da USP tem mais de 30 inscritos para uma vaga”, observa Candotti. “Não há emprego para os jovens e ótimos pesquisadores que formamos e faltam bons pesquisadores na maioria das universidades do País. Há algo de muito errado na política de C&T e na educação superior, que deve ser corrigido com urgência.” Janine detecta a existência de preconceitos mútuos em universidades e empresas, sobretudo destas em relação à academia. Pessoalmente, diz não ter nada contra empresas e o mercado. “Acho que o mercado ainda é o melhor esquema, em princípios gerais, para se promover a produção e, sobretudo, a distribuição de bens e serviços.” É certo também que boa parte da ciência gerada nas universidades chega ao destinatário através da tecnologia disponibilizada pelas empresas. Mas Janine alerta: a sociedade não são só as empresas, “a sociedade é um espaço de lutas sociais”, e o papel da universidade é servir todos os lados. Apenas servir? Não. “Ela deve transmitir o discurso próprio, que é um discurso crítico. Se a universidade monta um curso de MBA (de caráter empresarial), deve incluir no corpo docente professores críticos do capitalismo; se monta um curso para os sem-teto, deve incluir no corpo docente professores defensores do neoliberalismo. Esse diálogo é essencial; do contrário, a universidade será apenas um provedor de serviços.” Outra observação do professor Janine: a universidade se relaciona com a sociedade na forma de mercado, mas também sob a forma de público. Quando algum professor vai aos jornais para explicar aos leitores os riscos ou as vantagens dos produtos transgênicos, “está ajudando a formar esse público, essa massa crítica”. Com pesar, constata que nas universidades há muita gente pregando contra o neoliberalismo sem nunca ter lido os papas do neo-liberalismo. “Isso não é conhecimento, não é universidade”.

Independência e crítica é o que Candotti prega também para a SBPC. A entidade tem uma longa história de divulgação da ciência e da tecnologia para um público com formação superior, mediante publicações especializadas e eventos diversos. O desafio agora é promover a divulgação para o grande público, de escolaridade incompleta ou apenas elementar. “Há que se buscar respostas tanto para o ‘para que?’ e o ‘como’, quanto para ‘o que’ dizer a esse público”, afirma um item do programa. Em defesa da autonomia da entidade que pretende voltar a dirigir, Candotti diz que não concorda que a revista Ciência e Cultura seja uma realização conjunta da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e da SBPC, como é hoje. “Entendo que a realização conjunta signifique compartilhar também as diretrizes editoriais com a Imprensa Oficial. Isso limita a independência crítica da sociedade”.

Será que será mais fácil dirigir uma confraria de cientistas e de amigos da ciência num período em que, na esfera federal, há governantes que até pouco tempo estavam na oposição e muito contribuíram para a democratização do País? O governo Lula está correspondendo às expectativas dos candidatos à SBPC? É cedo para julgamentos, respondem os dois concorrentes. Candotti: “Não creio sensato julgar o governo Lula após pouco mais de cem dias, particularmente em C&T. Os presidentes do CNPq e da Finep foram nomeados há poucas semanas, ótimos nomes por sinal. Vamos aguardar um pouco, mas não muito. Demorar quase cem dias para indicar o presidente do CNPq e da Finep é muito tempo. Espero que isso sinalize o cuidado com que se deseja acertar, não a dificuldade de acertar”. Janine: “Não está clara para a sociedade a política do governo Lula. O que se sabe é que alguns cargos do Ministério de C&T foram preenchidos com gente da mais alta capacidade, como os professores Erney Camargo no CNPq e Sérgio Resende na Finep, o que inaugura perspectiva muito boa para duas entidades-chave no arcabouço do ministério”.

Depois de revelar que votou em Lula nas últimas eleições, Janine observou que o diálogo da SBPC tem que ser claro e independente das posições políticas dos sócios e da diretoria. “Isso significa dizer que devemos ser altamente críticos quando considerarmos que há falhas ou erros. Não há piedade no exercício da crítica.” Como Candotti, Janine não é estranho no ninho da SBPC. Ocupa cargo na diretoria há oito anos e durante quatro anos foi membro do Conselho Deliberativo do CNPq. “Aprendi muito”, confessa o filósofo, agora também empenhado em estudar, na qualidade de professor de Ética e Filosofia Política, a questão da responsabilidade social do pesquisador.

Processo de votação – A eleição deste ano na SBPC apresenta como novidade o uso da Internet, o que faz prever maior número de votantes e disputa mais acirrada. Cada sócio recebe uma senha que dá direito a apenas um voto. Para se informar sobre a SBPC, conhecer os programas dos candidatos, trocar mensagens com eles ou, ainda, acertar contas atrasadas com a entidade, os endereços são os seguintes: www.sbpcnet.org.br; www.janine-na-sbpc.com.br; candotti@npd.ufes.br.

Nos últimos anos, muitos sócios deixaram de pagar as anuidades e ficaram excluídos do processo de eleição da próxima diretoria. Agora não há mais tempo para corrigir a situação e votar ainda este mês, mas quem quiser retornar ao quadro de sócios e participar das próximas eleições — o mandato da diretoria é de dois anos — basta pagar apenas uma anuidade. Segundo Janine, houve anistia. Muito justo, uma vez que a própria SBPC já se valeu do Refis, o plano de refinanciamento de dívidas do governo federal.

 

Um cientista polêmico

Rogério Cezar de Cerqueira Leite, Professor Emérito da Unicamp e presidente do Conselho de Administração do Laboratório Nacional de Luz Síncroton, órgão do governo paulista com sede em Campinas, foi o último dos candidatos a se inscrever para a presidência da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Não pôde ser ouvido sobre o seu programa administrativo por se encontrar no exterior, integrando comissão de membros da comunidade mundial de físicos.

Cerqueira Leite formou-se em Engenharia Eletrônica no ITA em 1958 e doutorou-se pela Universidade de Paris em 1962. Lecionou no ITA e na Unicamp e foi professor visitante da Universidade de Paris. Durante oito anos pesquisou nos Laboratórios Bell, nos Estados Unidos, recebeu a Ordem Nacional do Mérito da França e dirigiu a Cátedra da Universidade de Montreal, no Canadá. Em 1991 foi realizado um simpósio sobre seus trabalhos e publicado um “Festshrift in Honor of Rogério Cerqueira Leite” pela World Scientific. Foi ainda diretor dos Institutos de Física e de Artes e coordenador-geral das Faculdades da Unicamp. Publicou 80 trabalhos em revistas indexadas que receberam 2.516 citações em publicações até setembro de 1999. Foi editor da Solid State Communications, Oxford, Inglaterra, revista com o segundo maior índice de impacto na Física. Foi membro de vários conselhos ou comitês internacionais. É membro do Conselho Editorial do jornal Folha de S. Paulo. Escreveu e publicou, além de textos técnicos, várias coletâneas de artigos próprios versando sobre questões de interesse nacional. Nelas incluem-se campanhas contra a contratação do Sivan, contra a adoção de uma legislação de patentes que considera nefasta para os interesses nacionais, contra o acordo nuclear Brasil-Alemanha, contra a opção termoelétrica e gás natural na base do sistema elétrico, a favor do Pró-álcool etc. Seu último livro, em colaboração com Cylon Gonçalves da Silva, foi lançado no final de 2002. Título: Energia para o Brasil, um modelo de sobrevivência.

 

Exemplo de Fellini

Fellini não via filmes — A universidade e a vida de hoje. É o título do livro de Renato Janine Ribeiro que está para sair ainda este mês. Outro, no prelo, reúne artigos de crítica sobre televisão escritos em jornal e revista.

Certa vez, Federico Fellini disse que não costumava assistir a muitos filmes e que imaginava as cenas das próprias fitas a partir da literatura e de outras fontes. Janine pegou a deixa e começou a refletir sobre o que poderia representar para a pesquisa brasileira o exemplo do genial cineasta italiano. “Os pesquisadores ficaram muito fechados em suas áreas”, diz o professor. “É como se o cineasta produzisse filmes apenas no treino do olho, sem que a leitura e outros usos do olho também não atuassem. O olho na sala escura. Um pouco disso acontece na área da pesquisa, o que não é bom porque a universidade tem que se relacionar com o que há fora dela.”

Quanto ao outro livro, Janine lembra que escreveu durante um ano e meio críticas sobre televisão no jornal O Estado de S. Paulo e publicou artigos sobre o mesmo tema na revista Bravo. Decidiu agora juntar num mesmo volume esse material, mais um ensaio acadêmico sobre televisão como espaço carente de políticas públicas. Deve sair até o final do ano.

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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