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O culto à beleza se evidenciou sobretudo entre os séculos 15 e 16, durante o Renascimento. Formas arredondadas predominavam entre as mulheres retratadas por mestres italianos da pintura como Leonardo da Vinci e Sandro Botticelli. Mas de lá para cá muita coisa mudou na cultura ocidental. A beleza continua sendo cultuada, porém em formas bastante diferentes.

Num tempo nem tão distante, Marilyn Monroe, símbolo sexual feminino da década de 50, seria considerada hoje uma mulher opulenta, quase uma gordinha para os padrões de beleza atuais. A Vênus de Botticelli correria o risco de ser julgada como completamente fora de forma.

No século 21, o destaque é para os ossos. O belo e o magro não se dissociam. O ícone da beleza feminina brasileira Gisele Bündchen tem 1,79 metro de altura e pesa 51 quilos. O IMC (Índice de Massa Corpórea) de Gisele é de apenas 16, abaixo do normal, que deve estar entre 19 e 25 (confira na página ao lado como calcular o IMC). Um dos critérios médicos adotados para diagnosticar a anorexia é possuir IMC igual ou menor a 17,5 em adultos e adolescentes. Isso não significa que ela tenha a doença, mas possui peso de uma anoréxica.

Entre as adolescentes, a moda é fazer dieta ou pelo menos ter medo de engordar. Além dos conflitos normais da idade e das mudanças do corpo, elas vivem uma batalha para se encaixar nesses padrões modernos de beleza, que na maioria das vezes estão longe de ser saudáveis e de acordo com sua herança genética.

O nascimento de Vênus, de Botticelli: a beleza em formas arredondadas

Coincidência ou não, essa ditadura da magreza vem acompanhada de um aumento de casos de transtornos alimentares, como a anorexia e a bulimia, em crianças e adolescentes. Não existem dados que comprovem essa informação, mas um dos sinais evidentes é que a lista de espera de um dos poucos programas especializados para o tratamento dessas doenças – o Protad (Projeto de Atendimento, Ensino e Pesquisa em Transtornos Alimentares na Infância e Adolescência), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina da USP – não pára de crescer. A própria criação do Protad, no final de 2001, surgiu por causa da procura crescente pelos serviços do Ambulatório de Bulimia e Transtornos Alimentares do HC por pessoas cada vez mais jovens e da necessidade de um atendimento específico para a faixa etária que vai desde a infância até os 17 anos.

 

Segundo a subcoordenadora do Protad, a psiquiatra Tatiana Moya, há 50 crianças e adolescentes aguardando para ser atendidos pelo projeto. Ela acredita que, além de existir maior conscientização sobre as doenças e o acesso mais fácil à informação, o fator cultural também exerce influência sobre o aumento de casos. “Muitas meninas começam admirando as modelos famosas e fazem dietas, o que é um fator de risco e aumenta em 20 vezes a chance de se ter um transtorno alimentar. É muito comum atualmente o adolescente se preocupar mais com o corpo do que antigamente”, diz a psiquiatra.

Ainda não existem dados no Brasil que revelem o tamanho do universo de crianças e adolescentes que sofrem de transtornos alimentares. Tatiana está desenvolvendo um questionário para facilitar o diagnóstico dessas doenças e também possibilitar a compilação de dados, a partir dos quais possam ser feitos estudos mais aprofundados sobre o tema.

Anorexia versus bulimia – Dos transtornos alimentares, a anorexia é um dos mais graves e pode levar à morte. Nesse caso, existe um distúrbio da imagem corporal: mesmo magra, a pessoa continua se vendo gorda e faz esforços para perder peso. A ocorrência da doença é mais comum em meninas com idade entre 12 e 16 anos.

Para emagrecer, as garotas são capazes de tudo, segundo Tatiana, desde simples restrição alimentar até atitudes esdrúxulas como entrar em uma piscina fria no inverno para perder calorias ou encher o estômago com água do chuveiro para tapear a fome. A médica conta que as doentes também costumam utilizar laxantes, diuréticos, fazer exercícios de forma exagerada, provocar o vômito, qualquer coisa que as façam descer alguns números na balança. “E o pior é que quanto mais peso a menina perde mais gorda ela se vê. É inversamente proporcional”, acrescenta Tatiana.

Entre as conseqüências da anorexia está a amenorréia (a ausência de menstruação) e até problemas futuros de infertilidade. A endocrinologista infantil do Protad, Louise Cominato Kanashiro, explica que outras características da doença são aspecto doentio, cabelos e unhas quebradiços, problemas de crescimento, perda de água (que leva à desidratação) e sais – como potássio –, o que pode gerar vários distúrbios e até a morte por parada cardíaca.

As meninas que têm bulimia geralmente não são tão magras como na anorexia e podem apresentar ciclo menstrual normal. A principal referência para diferenciar as duas doenças costuma ser o IMC: se estiver muito abaixo do normal é mais provável que seja diagnosticada a anorexia. Muitos associam a bulimia ao ato de provocar o vômito, mas as anoréxicas também utilizam esse recurso para perder peso. Os aspectos mais marcantes das pessoas que sofrem de bulimia são as compulsões alimentares, ou seja, comer descontroladamente num curto espaço de tempo, e o comportamento compensatório, como, por exemplo, deixar de comer por dias, vomitar e lançar mão de laxantes e diuréticos.

Os dois males estão associados também à depressão. Estima-se que 60% das pessoas que têm anorexia apresentam episódios depressivos. Na bulimia, esse número sobe para 80%. As doenças muitas vezes geram complicações indiretas, como o uso de drogas, mais um artifício usado para distrair a fome. Esses fatores aliados também levam a um maior número de suicídios entre adolescentes que sofrem desses males.

A maioria dos 14 pacientes atendidos pelo Protad é formada por meninas que sofrem de anorexia e bulimia. Desse total, apenas dois são meninos, sendo que um deles apresenta um problema de fobia alimentar.

Na lista de espera, a estatística não é diferente. Apenas 20% sofrem de problemas relacionados ao comer restritivo e seletivo (leia texto ao lado). A idade dos 50 futuros pacientes vai de 4 a 17 anos. E, entre aqueles com diagnóstico provável de anorexia e bulimia, há apenas um menino.

 

 

 

Os transtornos alimentares


mais típicos da infância


Comer seletivo
– Crianças que comem pouca variedade de alimentos, mas não apresentam problema com relação à quantidade. Na maior parte dos casos, não tem impacto físico e costuma ser uma fase que desaparece com o decorrer da idade.

Comer restritivo – A criança se alimenta de uma quantidade muito pequena de comida e o problema pode ter conseqüências físicas, prejudicando o desenvolvimento. Não há esforço para perder peso.

Fobia alimentar – O transtorno se caracteriza pelo pavor de determinados alimentos. É como outra fobia qualquer, mas o objeto em questão é a comida. A criança pode passar mal e suar frio apenas de olhar para os alimentos.

 

mais típicos da adolescência

Anorexia nervosa – Existe um distúrbio da imagem corporal, a pessoa se vê gorda mesmo estando magra e faz esforços para perder peso, desde restrição alimentar até a prática exagerada de exercícios, uso de diuréticos e laxantes e indução de vômito. A magreza é evidente e a menina deixa de menstruar.

Bulimia nervosa – Também existe uma preocupação excessiva com o corpo, mas geralmente a pessoa tem um peso normal ou sobrepeso. Para ser caracterizada a bulimia, a pessoa precisa apresentar compulsões alimentares (comer em quantidade exagerada durante um curto espaço de tempo) duas vezes por semana, por pelo menos três meses, e comportamento compensatório, como deixar de comer, usar laxantes e induzir o vômito. É mais difícil de ser diagnosticada.

 

 

 

 


Comida e terapia são o melhor remédio

Terapia familiar é a base do tratamento para a anorexia e a bulimia – doenças cujas causas ainda não foram
comprovadas pela ciência. Hospital das Clínicas também utiliza terapia de grupo e depende da cooperação dos pais

Não há melhor tratamento para anorexia do que um bom prato de arroz e feijão. O problema é fazer com que uma menina, perseguida pela ilusão de estar sempre gorda, concorde em voltar a se alimentar de maneira saudável e em quantidades mais adequadas para o seu tamanho. Já na bulimia a preocupação maior é conter as compulsões para evitar os comportamentos compensatórios, como a indução do vômito, que, se praticada com freqüência, pode causar até hemorragias.

A base da recuperação para qualquer transtorno alimentar é a terapia e o apoio familiar. O atendimento no Protad (Projeto de Atendimento, Ensino e Pesquisa em Transtornos Alimentares na Infância e Adolescência), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, é feito por uma equipe multidisciplinar que envolve psiquiatras, psicólogas, uma endocrinologista infantil e uma nutricionista. Os pacientes e os familiares participam uma vez por semana de grupos de terapia, que discutem desde o aspecto emocional até o educativo, com palestras ministradas por diversos profissionais abordando cada transtorno alimentar e suas conseqüências. As mães também possuem um grupo em que podem expressar suas angústias e trocar experiências.

A coordenadora do Serviço de Psicologia do Protad e terapeuta familiar Alícia Weisz Cobelo diz que “as famílias chegam muito angustiadas, culpadas. As mães costumam se perguntar o que fizeram de errado. A terapia tem o objetivo de conter essa angústia, procurar entender o funcionamento da família e capacitá-la para o tratamento”.

A psiquiatra e subcoordenadora do Protad Tatiana Moya conta que o processo de realimentar as meninas emagrecidas sobretudo pela anorexia não é tarefa fácil e exige muita paciência. As meninas se descontrolam, jogam pratos na parede, mas a família precisa continuar insistindo, porque muitas vezes as pacientes correm risco de vida se o emagrecimento persistir.

Um dos problemas enfrentados pela equipe do Protad é que muitas vezes os pacientes já chegam ao hospital num estágio avançado da doença. Por mais aparente que seja, os pais costumam demorar para perceber a doença. “A valorização do magro e do belo é uma questão cultural, fazer dieta não é atípico e as famílias até querem ver os filhos magros. Essas coisas são tão comuns hoje em dia que a família às vezes demora para notar que existe um problema”, explica Alícia.

Causas – Ainda não existem estudos que comprovem as causas associadas aos transtornos alimentares. Entretanto, observa-se que alguns fatores exercem influência na ocorrência dessas doenças. “Nas sociedades ocidentais, a prevalência de transtornos alimentares é muito maior do que nas orientais”, diz Tatiana. “Acredita-se que, no Ocidente, se valorizam alguns aspectos físicos, como ser magro, gerando um maior número de casos.”

Os fatores genéticos também podem estar ligados à aparição desses males. A psiquiatra diz que, se existe um caso de anorexia ou de bulimia na família, a chance de acontecer outro é muito maior do que em relação à população em geral.

A psiquiatra Tatiana Moya: perfeccionismo é comum em anoréxicas

A psiquiatra também acrescenta que alguns estudos apresentam características comuns de personalidade encontradas em pessoas que sofrem de anorexia nervosa. É fácil achar pacientes perfeccionistas ou com transtorno de personalidade obsessivo-compulsivo. “São meninas rígidas, extremamente autocríticas e exigentes, para quem o corpo é apenas mais uma área da vida em que elas exercem esse poder. É comum as pacientes serem as melhores alunas da classe”, descreve Tatiana.

A duração do tratamento para a anorexia, bulimia e outros transtornos alimentares varia muito de acordo com o paciente, podendo levar de alguns meses a mais de um ano. Por esse motivo, a subcoordenadora do Protad aconselha aos pais das crianças e adolescentes na lista de espera para o atendimento procurar outras alternativas.

Não existe previsão de ampliação do atendimento a curto prazo, pois o Instituto de Psiquiatria do HC está passando por uma série de reformas e o Protad também quase não tem recursos. O trabalho dos profissionais da equipe não é remunerado. Apesar dessas dificuldades, a equipe já idealizou o projeto de criar uma enfermaria especializada para internar os casos mais graves. Atualmente, pacientes em iminente risco de morte são encaminhados para hospitais comuns e recebem alta do Protad. Esse foi o caso de uma menina de 12 anos que, com 1,65 metro, pesava apenas 30 quilos. Nesse estágio da anorexia, é preciso forçar a alimentação através de sonda.

 

 

 

Frescura ou problema?

Nem todo problema relacionado à alimentação é sinônimo de transtorno alimentar. Há fases em que as crianças e adolescentes usam a comida como forma de chamar a atenção. “Muitas crianças não se alimentam adequadamente como resposta a algum problema na dinâmica familiar e respondem a esse problema com algo que está ao alcance delas e que chama a atenção da família”, explica a endocrinologista infantil Louise Cominato Kanashiro.

“É preciso distinguir restrições voluntárias de doenças clínicas.” Ela também diz que, para a criança, muitas vezes pode ser mais divertido brincar do que comer, por isso é preciso impor limites. O ideal, diz Louise, é oferecer uma alimentação saudável e equilibrada, contendo pães, massas, cereais, vegetais, frutas, leite e derivados, carne e ovos, sem abuso ou restrições de gorduras e doces. “Deve-se ensinar desde cedo a comer todos os tipos de alimentos e os pais devem ser um exemplo. Não vale mandar o filho comer
verdura se o prato dos pais não costuma ter nenhum ‘verdinho’.”

Crianças que não se alimentam adequadamente podem ter atraso no desenvolvimento intelectual, perda na altura final – ou seja, ficarem mais baixas do que o esperado na idade adulta – e ter mais propensões a infecções e outras doenças. Para saber se a quantidade está bem dosada, é importante acompanhar o desenvolvimento verificando periodicamente a evolução do peso, a altura e o Índice de Massa Corporal, o IMC (confira na tabela o IMC ideal para crianças e adolescentes).

 

 

 

 

 

Tabela de IMC para adultos
Normal = IMC de 19 a 25
Sobrepeso = IMC de 25 a 30
Obesidade grau 1 = IMC de 30 a 35
Obesidade grau 2 = IMC de 35 a 40
Obesidade mórbida = IMC acima de 40
Anorexia é considerada em pessoas com IMC igual ou inferior a 17,5
Anorexia é considerada em pessoas com IMC igual ou inferior a 17,5
Tabela de IMC para crianças e adolescentes
Idade Sexo Baixo Peso Normal Sobrepeso Obeso
6 anos MAS Abaixo de 13,9 13,9 - 17,0 17,0 - 18,4 Acima de 18,4
6 anos FEM Abaixo de 13,4 13,4 - 17,1 17,1 - 18,8 Acima de 18,8
8 anos MAS Abaixo de 13,8 13,8 - 18,0 18,0 – 20,0 Acima de 20,0
8 anos FEM Abaixo de 13,6 13,6 – 18,3 18,3 – 20,6 Acima de 20,6
10 anos MAS Abaixo de 14,2 14,2 - 19,4 19,4 – 22,1 Acima de 22,1
10 anos FEM Abaixo de 14,0 14,0 - 20,0 20,0 - 22,9 Acima de 22,9
12 anos MAS Abaixo de 15,0 15,0 - 21,0 21,0 – 24,2 Acima de 24,2
12 anos FEM Abaixo de 14,8 14,8 – 21,3 21,3 - 24,6 Acima de 24,6
16 anos MAS Abaixo de 16,9 16,9- 24,2 24,2-27,3 Acima de 27,3
16 anos FEM Abaixo de 16,8 16,8- 24,6 24,6- 28,8 Acima de 28,8
IMC (Índice de Massa Corporal) = peso (em kg)/altura (em metros)2

 

 

 

 

 

Paciente tem medo de saber o peso

 

“Eu achava que só as magras se davam bem na vida.” Esse era o pensamento que até pouco tempo atrás norteava a vida de Patrícia, nome fictício de uma adolescente de 15 anos que está fazendo tratamento para a anorexia no Protad desde março deste ano.

O problema dela começou no ano passado, acompanhado
de uma preocupação excessiva com os estudos.

Patrícia tem 1,70 e chegou a pesar menos de 48 quilos. Atualmente, ela nem sabe quanto pesa, tem medo de descobrir, achar-se gorda e ter uma recaída. “Até tremo se vejo que engordei”, confessa. Quando as profissionais do Protad a pesam, ela não olha para a balança. Está empenhada em se livrar da doença e diz que se esforça para comer mais.
A adolescente é perfeccionista e também sofre de depressão.
Para perder peso, Patrícia fazia dietas, não comia arroz e feijão e praticava muitos exercícios. Na época de férias, chegava a passar pelo menos duas horas por dia na bicicleta ergométrica. “Não queria sair de casa porque me achava gorda e, na escola, a professora e minhas amigas diziam a toda hora como eu estava magra.” Por causa do problema, Patrícia se distanciou das amigas. Ela não percebia que sua magreza era tão evidente e não tolerava ouvir isso a todo momento.

A mãe de Patrícia percebeu que a filha estava emagrecendo, que sempre fazia dietas, mas acreditava que era por causa do estresse, dos estudos, nem cogitava que poderia ser um problema grave como a anorexia. “Não sabia nada sobre essa doença, só depois que Patrícia foi diagnosticada é que fomos pesquisar sobre o assunto.”

Com apenas dois meses de tratamento, Patrícia já engordou e agora come até arroz e feijão. Ela assume que num mesmo dia ainda se vê magra e gorda, mas está mais consciente de que esse pensamento faz parte da doença. Patrícia já não faz ginástica e até aconselha as amigas que vivem falando sobre dietas. Como elas, a adolescente admirava as top-models magérrimas e acredita que isso também influenciou no seu comportamento obsessivo por emagrecer.

 

 

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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