Há
50 anos, a estrutura espiral em hélice dupla do DNA era desvendada
e uma revolução na medicina e, por extensão,
em todos os campos do conhecimento se anunciava. O homem começava
a sonhar com a revelação do segredo da vida. Mas só
anos depois, ao final da década de 80, com tecnologias mais
avançadas e vários bilhões de dólares,
milhares de cientistas no mundo todo se uniriam em torno de um objetivo
comum: seqüenciar os cerca de 50 a 100 mil genes estimados
como responsáveis pelas características humanas, através
de uma megaforça-tarefa chamada Projeto Genoma Humano.
Em
2001, com o término da primeira fase do projeto, aumentaram
as crenças e expectativas de que a ciência, finalmente,
estaria bem próxima de desvendar os porquês das doenças,
do envelhecimento e da morte. Diversos eventos, entre conferências,
seminários e palestras, além de cobertura em mídias
científicas e não-científicas no mundo inteiro,
comemoraram o meio século de aniversário do modelo
helicoidal proposto pela dupla de cientistas Watson e Crick (leia
o texto ao lado).
Foi
justamente numa dessas comemorações – “O
Dia do DNA”, realizado no dia 26 de abril, sábado,
no Instituto de Biociências da USP – que o
professor Crodowaldo Pavan, um dos mais importantes geneticistas
brasileiros, criticou a corrida internacional rumo ao seqüenciamento
do genoma humano. Na contramão do que pensa grande parte
da comunidade científica mundial, Pavan defendeu, diante
de cerca de 200 estudantes, pesquisadores e curiosos, que o seqüenciamento
do genoma, sem o necessário conhecimento do funcionamento
individual dos genes, é inoportuno, um trabalho desperdiçado,
já que a lógica pede que antes seja conhecido o funcionamento
dos genes para que o seqüenciamento faça sentido. Em
outras palavras, é colocar o carro na frente dos bois.
“Não
sou contra o Projeto Genoma Humano. Ele é muito importante,
mas antecipado, porque só daqui a 10 ou 20 anos, quando se
souber como funciona cada gene, é que esse trabalho terá
alguma valia. No momento, é inoportuno, dinheiro jogado fora.
Por que gastar bilhões de dólares no seqüenciamento
do genoma se, com esse dinheiro, é possível estudar
50, 100 genes em profundidade? Para o progresso da genética,
se aquele dinheiro fosse empregado no estudo do funcionamento dos
genes, o resultado seria um estudo mil vezes superior a esse do
genoma. Aí, sim, teríamos um estudo formidável”,
disse Pavan, que é professor aposentado do Instituto de Biociências
e Professor Emérito da USP. “Os genes devem ser estudados
individualmente. Cada gene é uma ‘pedra de Roseta’
que precisamos traduzir e a tradução é dada
pelo funcionamento desse gene. A partir do seu funcionamento é
que poderemos dizer o seu papel no genoma e no organismo.”
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Pavan
dá autógrafos: para ele, cientistas colocaram
o carro na frente dos bois |
Pavan
diz que está “bem acompanhado” em seu ponto de
vista, citando nomes como o do sul-africano Sidney Brenner –
que em 2002 dividiu o Nobel de Medicina com outros dois cientistas
por sua teoria sobre o “suicídio celular” –
e do norte-americano Richard Lewontin. Este último, em seu
livro The triple helix (recém-lançado no Brasil pela
Companhia das Letras com o título A tripla hélice:
gene, organismo e ambiente), mostra o que é necessário
ser feito antes do mapeamento do genoma. O autor coloca em xeque
visões consagradas sobre genética e evolução.
“Sidney
Brenner foi o sujeito mais sensato no estudo do genoma. Suas pesquisas
partiram de metazoários, ou seja, microorganismos simples.
Isso é uma coisa lógica em biologia, ou seja, começar
estudos por organismos simples e depois partir para os mais complicados.
Tendo feito isso, chegou à conclusão de que fazer
seqüenciamento de genoma, por enquanto, não vai levar
a nada e que é preciso fazer primeiro o estudo dos genes.
Ele não pode dizer isso em público simplesmente porque
os responsáveis pelo Projeto Genoma Humano são amigos
dele. Ele discorda, mas não faz o alarde que eu estou fazendo”,
diz Pavan.
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No
“Dia do DNA”,
o público participou
de oficinas organizadas por alunos de pós-graduação
do Instituto
de Biociências da USP: festa para lembrar um passo fundamental
da ciência |
A
dama sombria da molécula
Em
palestra no “Dia do DNA”, em 26 de abril, o professor
José Mariano Amabis, do Instituto de Biociências da
USP, revelou algumas curiosidades sobre como James Watson e Francis
Crick chegaram ao modelo helicoidal proposto por eles na edição
da revista Nature de 25 de abril de 1953. O professor lembrou, por
exemplo, as fotografias de Rosalind Franklin – integrante
da equipe de Maurice Wilkins no King’s College de Londres
–, que permitiram a Watson e Crick produzir boa parte das
provas necessárias para revelar a estrutura do DNA. Ela possuía
imagens da molécula obtidas a partir da refração
de raios X. Em junho de 1952, Wilkins mostrou as fotografias para
Watson e Crick, sem o consentimento de Rosalind. Watson conta que,
ao ver as fotografias, imediatamente percebeu que correspondiam
a uma estrutura em hélice. A “dama sombria do DNA”,
apelido dado a Rosalind por Wilkins, não recebeu os louros
por seu trabalho. O Prêmio Nobel de 1962 acabou com Watson,
Crick e Wilkins. “Depois eles se tornaram amigos, mas não
a incluíram no trabalho e nunca lhe contaram que tinham visto
suas fotografias. Sem saber que tinham tido acesso a suas imagens,
Rosalind, posteriormente, publicou na Nature um trabalho confirmando
que suas fotografias e interpretações estavam de acordo
com o modelo de Watson e Crick. Mal sabia ela que deveria ser o
contrário, pois ela é que tinha as fotos”, contou
Amabis.
Em
meio à competição científica da época
para a descoberta da estrutura da molécula do DNA –
continuou Amabis –, Watson tinha um “medo terrível”
de que o cientista Linus Pauling, que também começara
a trabalhar com DNA, visse uma fotografia boa de difração
de raio X e, com isso, conseguisse desvendar a estrutura da molécula
antes dele. Pauling possuía algumas fotografias muito ruins,
das décadas de 30 e 40, e não estava conseguindo trabalhar
com boas amostras. Mas a idéia de Watson era que, se ele
visse as amostras, imediatamente chegaria ao modelo.
Amabis
destacou ainda que, no artigo publicado na Nature, uma última
frase foi acrescentada por Crick a contragosto de Watson. Ela diz:
“Não deixamos de perceber que o pareamento específico
que nós postulamos [referência ao emparelhamento específico
das bases nitrogenadas A, T, C, G] sugere prontamente o possível
mecanismo de cópia para o material genético”.
Esse parágrafo, disse Amabis, é crucial ao trabalho,
pois mostra a essência do processo de vida do planeta, já
que descreve o mecanismo segundo o qual as células se duplicam
transmitindo suas codificações.
Verdade
inatingível – Hoje, graças ao trabalho de Watson
e Crick, sabe-se que a chave da reprodução da vida
se encontra na molécula do ácido desoxirribonucléico
ou DNA (do inglês deoxyribose nucleic acid). Mas, afinal,
a revelação dessa dupla de cientistas deve ser chamada
de descoberta ou invenção? A questão também
foi discutida por Amabis. “A idéia básica é
que o conhecimento científico nos aproxima gradativamente
da verdade, mas a verdade é inatingível”, disse
o professor. “De acordo com as concepções científicas
do século 20, uma hipótese, em ciência, não
pode ser provada porque busca fazer uma generalização
a partir da análise das partes e isso, por lógica,
é impossível. Instigante é que, em ciência,
tudo pode ser mudado. Uma teoria é dogmática enquanto
ela não pode ser derrubada, pois sempre estará exposta
a críticas. Na ciência, inventamos o átomo,
as moléculas, as ligações químicas.
Filosófica
e logicamente, a estrutura proposta por Watson e Crick é
um modelo, que a ciência tenta aproximar da realidade.”
As primeiras linhas do texto de Watson e Crick publicado na Nature
confirmam a “verdade inatingível” e as possibilidades
de mudanças na ciência. No início do artigo,
os cientistas afirmam que irão descrever “uma sugestão
para a estrutura” do DNA. Em outro trecho, os autores argumentam
sobre a invenção: “Os dados de raios X publicados
anteriormente sobre ácido desoxirribonucléico são
insuficientes para um teste rigoroso de nossa estrutura. O que podemos
dizer é que ela é razoavelmente compatível
com os dados experimentais, mas precisamos considerá-la não
provada, até que seja confrontada com resultados mais exatos”.
Autógrafos
– Uma platéia atenta ouviu as explicações
de Amabis. O professor Crodowaldo Pavan, da USP, deu até
autógrafos, além de palestra (leia o texto à
esquerda). Entre os cerca de 200 presentes ao “Dia do DNA”
não faltaram alunos de colégios do interior do Estado.
“A idéia é aprofundar conhecimentos sobre o
tema, já que vamos seguir a carreira de medicina”,
disse a estudante Aline Zarzur Faria, do colégio Progressão,
de Taubaté, ao lado das amigas Lidiane Medeiros e Iamara
Fonseca Coutinho. William Nobuhru Matsuda, que pretende prestar
engenharia da computação, e o amigo Anderson Hitoshi
Wyekita, que quer fazer engenharia mecatrônica, vieram a convite
do professor de biologia para “atualizar conhecimentos gerais”
e obter melhor desempenho no vestibular. João Luis de Abreu
Vieira, monitor do Museu de Microbiologia, da Fundação
Butantan, que ministra aulas de laboratório, também
ficou o sábado inteiro participando dos eventos promovidos
pelo IB “para melhorar os conhecimentos na área”.
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Amabis:
curiosidades sobre a façanha histórica de Watson
e Crick |
Watson
e Crick, um encontro feliz
Opostos
que se atraem, destino, coincidência ou o que quer que
seja. Como duas mentes brilhantes, com interesses em comum
e conhecimentos complementares se encontraram e todos os meandros
pelos quais passou a dupla de cientistas até conceber
a dupla hélice são aspectos descritos com riqueza
de detalhes no livro Watson & Crick – A história
da descoberta da estrutura do DNA, da editora Odysseus. Parte
da coleção Imortais da Ciência, o trabalho
é do recifense Ricardo Ferreira, Professor Emérito
da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisador na área
de física quântica.
Desvendar
o raciocínio genial de Watson e Crick é emocionante,
mas a forma como chegaram ao conceito também tem seus
encantos, numa fase em que muitos cientistas travavam uma
verdadeira batalha para descobrir o segredo da vida contido
nas células. O autor começa descrevendo as primeiras
invenções da genética molecular, com
as teorias evolucionistas de Charles Darwin e Alfred Wallace,
em 1858. Um emaranhado de invenções anteriores
a Watson e Crick e a convivência da dupla com outros
cientistas foram fundamentais para que eles chegassem ao modelo
hoje conhecido do DNA — e tudo isso aparece descrito
na envolvente história.
Nascido
em 1916 na Inglaterra, Francis Henry Compton Crick obteve
seu diploma de Física pela Universidade de Londres
aos 23 anos e, como os jovens da época treinados em
ciências, foi convocado pelo Almirantado Britânico.
Nos intervalos de seu trabalho durante a guerra, em 1944,
leu um livro que o estimulou a retomar os estudos de biologia.
Trata-se de What is life? (“O que é a vida?”),
escrito pelo físico austríaco Erwin Schrödinger
(1887-1961), um dos fundadores da mecânica quântica,
a parte da física que estuda átomos e moléculas.
O livro faz uma interpretação sobre os processos
biológicos dos seres vivos, comparando mutações
genéticas com os “saltos quânticos”
entre níveis de energia dos átomos. Durante
algum tempo, Crick tentou aplicar seus conhecimentos de física
ao estudo de moléculas e tecidos. Em 1949, foi aceito
no Laboratório Cavendish da Universidade de Cambridge,
um dos mais famosos laboratórios de pesquisas do mundo.
Biólogo
molecular, o norte-americano James Dewey Watson, nascido em
Chicago em 1928, começou a estudar genética
no final dos anos 40, quando o geneticista George Beadle e
o bioquímico Edward Tatum demonstraram, através
de pesquisas de mofo no pão, que os genes controlam
a produção de enzimas. Com isso, ficou comprovado
que o genótipo controla o fenótipo. Além
disso, a experiência demonstrou que a teoria de Gregor
Mendel (1822-1844), que estudou a hibridização
da ervilha, é válida para todos os seres vivos.
Em
1943, essa teoria ficou mais evidente quando o italiano Salvador
Luria e o físico alemão refugiado nos Estados
Unidos Max Delbruck mostraram que procariotos (células
sem núcleo), como a bactéria Escheriscia colli,
também seguem a genética mendeliana. Watson,
interessado pelo assunto, juntou-se ao Clube dos Fagos (de
bacteriófago, do grego, “comedor de bactérias”),
organizado por Delbruck e Luria. Um contratempo não
permitiu que trabalhasse em Copenhague com o dinamarquês
Herman Kalchar, que também estudava aspectos do mesmo
tema. Viajou para Nápoles, Itália, onde assistiu
a uma conferência do cristalógrafo Maurice Wilkins
sobre a estrutura de cristais de DNA. De acordo com Wilkins,
“as propriedades dos cristais refletem as propriedades
das moléculas que os compõem. Assim, quando
materiais de seres vivos podem ser obtidos em estado cristalino,
aumentam a possibilidade para a interpretação
molecular das estruturas e funções biológicas.
Em particular, o estudo de nucleoproteínas cristalinas
ajuda-nos a nos aproximarmos mais do problema da estrutura
dos genes”. Watson também havia lido What is
life?, de Schrödinger, e, percebendo que os genes deveriam
conter uma planta arquitetônica para as células,
ficou motivado a trabalhar com cristalografia dos ácidos
nucléicos. Decidiu ir para a Inglaterra e, em setembro
de 1951, começou a trabalhar no Laboratório
Cavendish, onde se encontrou com Crick. O livro traz ilustrações
com todos os personagens envolvidos.
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