Eram
cerca de 10 horas da manhã e a menor I. S. S. se enrolava
debaixo do cobertor, deixando à mostra só os curiosos
olhos verdes. Nenhum sinal de tristeza, melancolia ou depressão,
parece gostar da liberdade das ruas. Sobrevive catando papelão,
mas está de folga porque hoje é dia de a irmã
mais velha ir ao batente com o cunhado. “Tenho de ajudar em
casa. Ontem já trabalhei bastante. Também cato latinha
em bares.” Sorriso radiante, diz que é moradora de
rua desde criança. Não gosta de freqüentar albergues
e diz que só vai à casa da mãe, em São
Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo, umas poucas
vezes por semana. Também não gosta de casa porque
costumava sofrer violência doméstica. Aos
nove anos de idade começou a “fazer programa”
na Estação da Luz, mas parou porque foi ameaçada
de morte. “Na rua tem muito ‘nóia’ (usuário
de drogas). Parei de fazer programa porque fiquei com medo de morrer”,
diz. I. S. S., infelizmente, não é nenhum trágico
personagem de roteiro de cinema. Sua “cama” fica debaixo
do Minhocão, próxima ao cruzamento da avenida Amaral
Gurgel com a rua Jaguaribe, no Centro de São Paulo.
Situações
como essa e outras formas de marginalização social
e violação da dignidade humana estão relatadas
no Segundo relatório nacional sobre os direitos humanos no
Brasil, elaborado pela Comissão Teotônio Vilela de
Direitos Humanos, em colaboração com o Núcleo
de Estudos da Violência (NEV) da USP, e divulgado no dia 26
de maio passado. A iniciativa tem o patrocínio da Secretaria
Especial de Direitos Humanos, do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e da Organização
das Nações Unidas para a Educação, Ciência
e Cultura (Unesco).
Violações
persistentes – É justamente a desigualdade social que
expõe grupos mais frágeis ao desrespeito aos direitos
humanos, constata a publicação, que busca fazer um
mapeamento das violações nos 26 Estados da federação.
Com dados referentes aos anos de 2000 a 2002, o documento chama
a atenção para a fragilidade crescente da situação
de crianças e adolescentes na sociedade e evidencia o aumento
da violência no âmbito das ações policiais,
assim como no do crime organizado. Elaborado para atender ao Programa
Nacional de Direitos Humanos, o documento reúne dados fornecidos
por 105 organizações da sociedade civil e 109 organizações
governamentais, conselhos, comissões e ouvidorias. Traz também
informações referentes a anos anteriores a 1998, que
não estavam disponíveis e não foram apresentadas
no Primeiro relatório nacional sobre os direitos humanos
no Brasil, publicado em 1999.
A coordenadora
do NEV, Nancy Cardia, é enfática: “O que perturba
muito é a continuidade no País de determinados fenômenos
que nos colocam praticamente à margem do mundo civilizado.
Não se espera, por exemplo, que, no século 21, continuemos
a ter o grau de violência policial que temos atualmente no
Brasil ou grupos de extermínio funcionando ou ainda assassinatos
de índios ocorrendo em qualquer contexto e região.
É inaceitável existir crimes contra homossexuais e
travestis num país aparentemente tolerante. É chocante
constatar que o Estatudo da Criança e do Adolescente continua
não sendo implantado em todos os municípios. Em todas
as áreas de direitos humanos cobertas pelo relatório,
há processos se arrastando há anos e a impunidade
continua. A despeito da democracia que cremos existir no País,
a continuidade das violações é vergonhosa.
Os programas para defesa dos direitos humanos ficam restritos ao
papel”.
A violência
contra jovens entre 15 e 24 anos aumentou 48,01% na última
década, segundo o relatório. Nessa faixa etária,
a taxa de mortalidade passou de 35,2 mortes por 100 mil habitantes
em 1991 para 52,1 mortes por 100 mil habitantes em 2000. Apesar
dos números alarmantes da violência doméstica,
da exploração sexual de crianças e de adolescentes
e da exploração do trabalho infantil, houve sensível
melhora nos programas e políticas voltados para o atendimento
a vítimas infanto-juvenis. O relatório destaca, por
exemplo, a ação do Plano Nacional de Enfrentamento
da Violência Sexual Infanto-Juvenil e do Programa Sentinela,
criados pelo governo federal para combater a violência contra
jovens.
Na
luta para erradicar o trabalho infanto-juvenil, o Programa de Erradicação
do Trabalho Infantil (Peti), também do governo federal, apresenta
fragilidades, diz o relatório. Isso porque o valor da bolsa
oferecida pelo programa é muito baixo (nas cidades está
em torno de R$ 40,00 e, na zona rural, de R$ 25,00) e ela só
atinge adolescentes até os 14 anos de idade, sendo que depois
dessa faixa a maioria dos beneficiados deixa os estudos para trabalhar.
No País, 28% dos municípios ainda não criaram
Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente
e 45% ainda não possuem os Conselhos Tutelares previstos
no Estatudo da Criança e do Adolescente.
A tortura,
problema cultural enraizado no País, na visão de Nancy,
ainda persiste contra presos do sistema carcerário e jovens
mantidos em unidades da Fundação Estadual do Bem-Estar
do Menor (Febem), de acordo com o relatório. “A orientação
é não tolerar abusos e torturas contra os adolescentes
em hipótese nenhuma”, garante Paulo Sérgio de
Oliveira e Costa, diretor da Febem. “Convocamos nossa corregedoria
interna recém-criada na Febem para apurar casos de abusos
ou tortura e detectamos um ou outro fato isolado de excessos de
funcionários. Não conseguimos apurar concretamente
a existência de ‘corredor polonês’ ou afogamento
em caixas de isopor. Como promotor de justiça (licenciado),
não tolero esses abusos e até faço um apelo
para que tais práticas sejam denunciadas. Atos bárbaros
serão punidos exemplarmente. Mas precisamos de dados concretos
e nomes porque não podemos simplesmente condenar funcionários
com base em indícios.” Desde que assumiu a instituição,
em 9 de janeiro passado, Costa diz já ter afastado ou demitido
mais de 90 funcionários. Isso não evidenciaria algo
de “podre no reino da Dinamarca”, para citar dito popular?
“Sim”, ele responde. “Mas também mostra
uma mudança de cultura e de postura na instituição.”
Segundo
Nancy, há alguns desequilíbrios na coleta de dados
para o relatório, já que os governos do Amapá,
Alagoas, Maranhão, Pará e Rio de Janeiro deixaram
de enviar informações. Mesmo assim, os dados desses
Estados foram supridos por organizações não-governamentais,
com exceção do Amapá. A coordenadora espera
que o próximo relatório, a ser publicado em dois anos,
seja mais completo e cubra outras áreas dos direitos humanos,
como a dos direitos sociais, econômicos, ambientais e culturais.
“Apesar dessas lacunas, o resultado final não saiu
comprometido. Tanto que traz um panorama muito coincidente com o
que foi publicado pelo relatório da Anistia Internacional”,
afirma.
Violência – A mortalidade por homicídio aumentou
em quase todos os Estados da federação e o número
de mortes resultantes de ações policiais permanece
em patamares extremamente altos, de acordo com o Segundo relatório
nacional sobre os direitos humanos no Brasil. De 1991 a 2000, a
taxa de mortalidade por homicídio aumentou 38,4% nas capitais
e, considerados os dados de todo o País, 29,2%. O aumento
da violência, especialmente a que envolve ações
policiais, aparece em outros relatórios publicados recentemente.
No Estado de São Paulo, dados da Ouvidoria das Polícias
Civil e Militar mostram que policiais militares mataram 101 pessoas
em maio, um recorde desde 1998. Os relatórios trimestrais
da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São
Paulo também retratam o aumento do número de ocorrências
e mortes de civis em ações policiais. “Estou
há poucas semanas no cargo e não quero adjetivar um
fenômeno em que os números falam por si”, afirma
o ouvidor das Polícias Civil e Militar do Estado, Itajiba
Farias Ferreira Cravo. “Isso alarmaria ainda mais a população.
Acredito que esse aumento se deve ao fato de que a sociedade está
mais violenta. Nosso próximo relatório será
mais detalhado e ao ver os perfis das vítimas e os tipos
de ocorrências é que poderei analisar os números.”
De
janeiro a maio de 2003, segundo dados da Ouvidoria, houve 435 mortes
de pessoas envolvidas em confrontos com a Polícia Militar,
um aumento de 51% em relação ao mesmo período
do ano passado. Outras seis pessoas morreram em confrontos com a
Polícia Civil no mesmo período. Já a Secretaria
de Segurança Pública contabilizou 147 mortes de pessoas
em confrontos com a Polícia Militar no primeiro trimestre
de 2003, contra 79 mortes no primeiro trimestre de 2002. O número
de policiais mortos ou feridos dentro ou fora de horário
de serviço também aumentou nos três relatórios
citados, mesmo que em proporções bem menores. Perguntado
sobre esses dados através da sua assessoria de imprensa,
o secretário estadual da Segurança Pública
Saulo de Castro Abreu Filho não respondeu ao Jornal da USP.
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Enrolada no cobertor, sob o Minhocão, no Centro de
São Paulo, a menor, que aos nove anos já fazia
"programas" na Estação da Luz, conta
seu cotidiano de catadora de papel: marginalização
social continua a afligir milhares de crianças e adolescentesno
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