Toma
conta de mim, ele cantou aos seus ouvidos e ela assim o fez.
Incendiário do Modernismo, polêmico, ácido
e comunista, quando conheceu Maria Antonieta D’Alkmin,
Oswald de Andrade carregava também a fama de dom-juan.
Foram muitas mulheres e cinco separações até
que ele encontrasse a sua musa última e definitiva. |
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Era
uma tarde de 1940. Perguntou à moça, então
uma jovem normalista: “Você gosta de literatura?”
Como a resposta fora afirmativa, contratou-a como sua secretária.
O início do romance foi absolutamente previsível.
Como era de se esperar, diante de seus gestos contidos, dos seus
olhos verdes e tristes de moça de 20 anos, dos cabelos curtos
e castanhos, ele, 30 anos mais velho, apaixonou-se rapidamente.
Surpreendente é que não desapaixonou-se mais e, no
ano seguinte, se casaria com ela, como ele mesmo prometera, em “últimas
núpcias”. Passariam juntos 12 anos e quatro meses,
até a sua morte.
Essa
história e também a da maturidade do escritor modernista
está agora contada em Maria Antonieta D’Alkmin e Oswald
de Andrade – Marco Zero, livro que reúne cartas, documentos,
fotos e também o inédito “Evocações
– Oswald de Andrade em minha vida”, memórias
escritas por Maria Antonieta em 1961, deixadas inacabadas. Em apêndice,
um ensaio de Vera Chalmers, um poema de Edgar Braga e um texto de
Marília de Andrade, filha do casal, que, com o pesquisador
Ésio Macedo Ribeiro, organiza o volume.
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Oswald
de Andrade e Maria Antonieta D‘Alkmin durante a lua-de-mel,
no Rio de Janeiro, em 1943 |
Em
“Evocações”, Maria Antonieta resgata o
“passado gostosamente vivido” com Oswald, apresentando-o,
sem pretensão de objetividade, “como meus olhos o viram
e minha emoção o sentiu”. Nesse relato pessoalíssimo,
surgem muitas de suas facetas – sonhador, irreverente, autoritário
–, entre elas algumas ainda desconhecidas, como a de autor
perfeccionista. Em contraposição à idéia
que se tem da escrita modernista, feita de chofre, inspiração
que nasce como jorro, ela destaca a sua militância como escritor
e mostra os segredos do seu processo criativo. Pesquisa cuidadosa,
apuro com a criação literária, um escrever
e reescrever constante até que achasse a forma definitiva.
“Geralmente, às 13 horas, quando chegava para iniciar
o trabalho, encontrava dr. Oswald debruçado sobre os originais,
riscando trechos, quando não páginas inteiras, ou
então escrevendo desordenadamente novas cenas”, conta
ela. “Me lembro que, quando bati os olhos nas frases ou páginas
inutilizadas e que considerava definitivas, sentia um gelinho tímido
subir pelas pernas. Temia que o dr. Oswald não conseguisse
refazê-las tão bem como as que estavam escritas, mas
me calava. Depois fui adquirindo confiança no seu talento
criador e não me alterava mais.”
O caso
de amor entre os dois se escreveu ao mesmo tempo que o novo livro
que o escritor preparava. Contratada como secretária, a incumbência
de Maria Antonieta era anotar à mão as páginas
e páginas que ele lhe ditava, transcrever textos e também
revirar cadernos cheios de material para deles retirar cenas, frases
e paisagens para Revolução melancólica. Publicado
em 1943, o romance era o primeiro da ambiciosa série Marco
Zero, que, dedicada a contar a saga cafeeira paulista, deveria ter
cinco volumes. O segundo, Chão, veio em 1945, mas os demais,
Beco do escarro, Os caminhos de Hollywood e A presença do
mar, já alinhavados, nunca chegariam a ser concluídos.
“Diferente da primeira fase do Modernismo, a sua produção
literária nesse período já não é
a de um transgressor”, explica Ésio Macedo Ribeiro.
“Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim
Ponte Grande são uma total transgressão, são
obras absolutamente inovadoras. Já nesses livros a escritura
é a mesma, mas trata-se de um trabalho mais voltado à
pesquisa.”
A partir
da década de 40, Oswald tornou-se um obcecado em ampliar
a margem de atuação que um escritor de vanguarda poderia
ter na vida de seu país. Movido pela vontade de refletir
sobre a crise do mundo contemporâneo, empreenderia, nessa
época, um intenso programa de leituras de filósofos
e pensadores importantes. Com Marco Zero, sua pretensão era
a de traçar um panorama da paisagem social e política
de São Paulo e para isso faria da coletividade o seu personagem.
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Foto
de Oswald dedicada a Maria Antonieta, em 1942 |
Outra
marca desse período é também a sua volta à
poesia – que há algum tempo abandonara –, com
maior maturidade e domínio técnico. Inspirado pela
amada, ele escreveria “Cântico dos cânticos para
flauta e violão”. Mesclando fragmentos da realidade
da Segunda Guerra com a lírica declaração de
amor, o poema trazia as marcas de uma serenidade que contrastava
com a sofreguidão que lhe era tão característica.
Era
uma tarde de outubro e rebentava uma enorme tempestade. Oswald e
Maria Antonieta trabalhavam em Marco Zero quando, sem mais aviso,
ele deu-lhe um beijo na testa e proclamou: “Eu te amo”.
Mostrou-lhe também, em uma folha de papel dobrado, escritos
a lápis, os primeiros versos do poema que depois lhe entregaria
como pedido de casamento. “Saibam
quantos este meu verso virem/ Que te amo/ Do amor maior/ que possível
for.” Ele lhe pedia: “Toma conta do céu/ Toma
conta da terra/ Toma conta do mar/ Toma conta de mim/ Maria Antonieta
D’Alkmin”.
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Oswald
de Andrade com os dois filhos, Paulo Marcos e Marília,
em 1951 |
Além
da diferença de idade, o autor de O rei da vela, polígamo
e subversivo, não era exatamente um modelo de boa conduta.
Mas ela o aceitou e acreditou em suas palavras: “Nada te sucederá”.
Para driblar o direito civil, que não permitia a união
formal de desquitados e solteiros, casaram-se por procuração,
no México. Seguiram depois em lua-de-mel para o Rio de Janeiro.
A viagem é contada em detalhes em “Evocações”.
“Alojamo-nos
num hotel no Flamengo, se não me engano, Argentina, para
vivermos a nossa lua-de-mel. Deixávamo-lo pela manhã,
só regressando à noite. Oswald mostrou-me o Corcovado,
o Pão de Açúcar, a floresta da Tijuca, os cassinos
da Urca, de Copacabana, de Icaraí, em Niterói. O Rio
estava em blecaute e muitas noites saímos pela avenida Atlântica
afora, perdidos na negrura da orla de Copacabana. A guerra continuava
incendiária pelos quatro cantos do mundo.” O clima
da vida literária carioca da época também aparece
no relato. Um
almoço com Manuel Bandeira, noitadas com Rubem Braga, conversas
com Villa-Lobos e Vinícius de Morais, encontros com José
Lins do Rêgo, Carlos Drummond de Andrade e Graciliano Ramos.
“Fiquei impressionada com o autor de Angústia, sua
humildade e seu silêncio me emocionaram.”
Maria
Antonieta conta ainda a repercussão da conferência
“O caminho percorrido”, proferida pelo escritor em Belo
Horizonte, no ano de 1944, a convite do então prefeito Juscelino
Kubitschek. O texto completo dessa palestra, em que é feito
um balanço do movimento modernista passados 22 anos da histórica
Semana, foi incluído por ela no volume. Sua intenção,
ao fazê-lo, parece ter sido a de que todos conhecessem o pensamento
oswaldiano e reconhecessem o arrojo de suas idéias, a sua
compreensão profunda do Brasil.
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À
esquerda, o casal em 1946. À direita, Maria Antonieta
e Oswald, já doente, pouco antes de sua morte, em 1954 |
No
ano seguinte, nasceria a primeira filha do casal. O nome da menina,
Antonieta Marília Oswald de Andrade, o poeta tirou de um
presente que dera à mulher. Logo que ela engravidou, ele
cruzou na rua com o pintor Clóvis Graciano, que lhe confidenciou
a posse de uma raridade, uma primeira edição de Marília
de Dirceu. Clóvis recusou-se a vender o livro. Depois de
muita insistência e muitas promessas, Oswald conseguiu tomá-lo
emprestado, mas nunca o devolveria. Ao chegar em casa, entregou-o
a Maria Antonieta com a seguinte dedicatória: “Para
Maria Antonieta D’Alkmin – minha Marília realizada.
Oswald”.
Antes
que a doença tomasse o autor de Os condenados, a vida da
família, conta Marília, “oscilava entre um clima
de festas e fartura e a constante ameaça da falta de dinheiro”.
Com a crise de Wall Street, em 1929, a fortuna de Oswald se fora.
Era o fim dos cadillacs, do luxo, das viagens milionárias
à Europa, mas mesmo sem dinheiro ele não abriria mão
dos seus rituais de bon vivant. Gostava de festas, de comer e beber
bem, principalmente vinhos italianos e franceses. As dificuldades
financeiras os obrigavam a mudar constantemente de endereço,
mas as paredes da casa estavam sempre cobertas por telas de grandes
artistas do século 20: De Chirico, Picabia, Di Cavalcanti
e Tarsila. Para viver equilibrava-se em uma confusa rede de promissórias,
títulos e negócios com agiotas.
Ainda
que militante e produtivo – pronuncia nesse período
uma série de conferências, colabora com jornais e continua
escrevendo prosa e poesia –, Oswald estava esquecido. Sua
obra já não era lida e os editores se recusavam a
publicar seus livros. Quando a diabete chegou, encontrou-o pobre
e amargurado, ressentido por acreditar que talvez seu valor nunca
viesse a ser reconhecido. Com sua indiscrição incontrolada,
que não poupava nada nem ninguém, acabou sozinho,
queixando-se da infidelidade dos amigos. Só Mário
da Silva Brito e Antonio Candido, padrinho do segundo filho do casal,
Paulo Marcos, lhe continuariam fiéis. Preso à cadeira,
onde passava os dias, gritava o tempo inteiro “Antonieta”
e lhe solicitava tudo, o caderno de anotações, os
remédios, a atenção. Ela continuava fazendo
o trabalho de sua secretária: revisava os textos, organizava
a biblioteca, anotava o que ele lhe ditava. Além disso, como
uma mãe – costumava chamá-lo de “filhão”
– aplicava-lhe as injeções, fazia os curativos
e supervisionava o seu regime, que ele teimava em não cumprir.
Segundo
Marília, era esse o maior e quase único motivo de
briga entre os dois. “Ele chegava ao extremo de levantar-se
de madrugada para comer um pote de baba-de-moça guardado
na geladeira e quando ela descobria tratava-o como se fosse uma
criança incontrolável”, conta.
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Maria
Antonieta e Oswald, com os filhos Marília e Paulo Marcos,
em 1950. À direita, pai e filha na janela de casa,
em 1948 |
Aos
poucos a voz tornou-se fraca, os cabelos caíram e, 20 quilos
mais magro, Oswald morreu em 1954. Ficaria no ostracismo, como um
escritor desconhecido, restrito a pequenos círculos da elite,
até que a montagem de O rei da vela – feita em 1967
por José Celso Martinez Corrêa –, os concretistas
irmãos Campos e o tropicalismo o recuperassem para revelar
finalmente sua contribuição para a cultura nacional.
Jovem ainda, depois da perda do marido, Maria Antonieta tentou reconstruir
a vida. Passou a trabalhar como professora, chegou a se casar novamente,
mas, em 1969, oito meses depois da morte do filho caçula
Paulo Marcos, em um acidente de carro, desistiu e suicidou-se.
Logo
que a conheceu, Oswald soube que, irremediavelmente, o tempo os
havia separado. “Deus erra muito na distribuição
das idades”, disse. “Ao invés de encontrá-la
aos 50 anos, devia tê-la encontrado aos 20. A gente vive de
sobras.”
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Maria
Antonieta D’Alkmin e Oswald de Andrade – Marco
Zero
Marília de Andrade e Ésio Macedo Ribeiro (organização)
Edusp
Imprensa Ofical e Oficina do Livro
Rubens Borba de Moraes
204 páginas
R$ 49,00 |
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