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Eles nunca tinham entrado em um museu de arte. Nunca tiveram a oportunidade de ouvir falar em Picasso, Portinari, Tarsila do Amaral. E até o direito de desenhar num papel uma idéia qualquer com lápis coloridos ficou só na lembrança. Na luta pela sobrevivência, eles ficaram perdidos. Perderam a saúde, o emprego, a casa, o elo com a família. Passaram a morar nas ruas. Só resgataram a fé, a coragem e a dignidade quando os frades e voluntários da Toca de Assis – uma fraternidade católica que existe há sete anos e atua em todo o Brasil – perguntaram seus nomes. E os abrigaram na casa da rua Eliseu de Almeida, 898, no Butantã, em São Paulo.

Hoje, Irineu Francisco Oliveira, José Francisco da Silva, João Malaquias e Silvio Jorge Simão, entre outros, integram uma nova família. São 60 pessoas dividindo o teto, o pão, as roupas e as histórias. Nesse reencontro, eles tentam olhar o mundo sob uma luz maior. Acordam cedo, rezam, passeiam. Têm esperança.

João Malaquias: "Nunca pensei que um museu fosse assim"

Nesse cotidiano, depararam-se, através da professora Daisy Peccinini, com a oportunidade de conhecer o Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP e participar de um programa especial aberto à comunidade. “Nós os convidamos para conhecer o acervo”, conta Daisy. “E também para uma aula de pintura, para que pudessem viver uma experiência diferente.”
Na Toca de Assis, o convite é aceito com alegria. Logo cedo, a família começa a se preparar. Todos vestem uma roupa mais alinhada. Fazem a barba. Cortam as unhas. Afinal, vão pegar em tintas e pincéis. Aprender o que é arte...

O que é arte – Atento, o grupo ouve as explicações da professora Daisy. João Malaquias, na cadeira de rodas, fica encantado com a Universidade. “Nossa. Que escola grande demais”, comenta. Quando entra no MAC, a surpresa aumenta. “Que lugar mais interessante”, diz. “Eu nunca pensei que um museu fosse assim.” Faz questão de observar e comentar sobre tudo. “Gostei dessas lâmpadas iluminando os quadros.” Acha bonito o Auto-retrato de Modigliani. Sorri quando vê A boba de Anita Malfatti. Aprova as cores de A negra de Tarsila do Amaral. “Este foi o que achei mais bonito.”

Malaquias, 60 anos, conta que viveu durante muitos anos pelas ruas. “Quando os frades me levaram para a Toca de Assis pensei que estava para morrer”, lembra. “Tenho mulher, filhos, mas não sei onde estão. Também não me lembro direito onde trabalhei. Eu não sabia que podia viver para um dia olhar tantos quadros. Acho que seria capaz de pintar desse jeito e ser artista também.”

Integrantes da Toca de Assis felizes com a descoberta das cores

Malaquias tem razão. Sob o incentivo de Silvio Coutinho, professor e pesquisador do MAC que vem ensinando e incentivando arte para a comunidade (especialmente aos integrantes do Programa Terceira Idade), fica muito fácil se descobrir artista. Coutinho convida o grupo para se acomodar no ateliê. Distribui papel, tintas, pincéis e rolos. “Estou lembrando de quando eu era criança e gostava de ir para a escola.” Malaquias começa a pintar. Faz primeiro um sol azul. Os outros integrantes do grupo também ficam à vontade. Uma casinha com chaminés, um jardim com flores coloridas, uma igreja, pipas ou só uma combinação de linhas e cores.

Irineu Francisco Oliveira, 56 anos, que trabalhou como mecânico, reclama que tem a mão dura demais. Pede ajuda para o professor. “Eu não sei desenhar não.” Com paciência, Coutinho mostra que, com imaginação, é possível transformar um borrão em uma paisagem. Irineu desenha, primeiro, um céu azul. Depois, o sol. Faz uma linha. Outra linha. De repente, um bonde vermelho lotado de passageiros ressurge. Há até uma parada com pessoas esperando. Irineu sorri. “Puxa, como o meu desenho ficou bonito”, orgulha-se. “Eu não sabia que era capaz de pintar e sonhar.”

O alagoano José Francisco de Assis, há 20 anos em São Paulo, também mostra com satisfação a sua paisagem cor-de-rosa. “Eu já trabalhei como pintor de parede e tinha muita habilidade.” Assis diz que vai levar o desenho para a filha Kátia, de 16 anos. “O meu último emprego foi em uma metalúrgica. Como não achava nenhum trabalho, fiquei desconsolado, fui morar nas ruas e perdi o contato com a família. Mas agora eu tenho esperança de ter minha casa de novo, aí quero pintar quadros para enfeitar as paredes.”

Irineu e Francisco acham curioso o exemplo do italiano Volpi. “Ele também foi um operário. Pintou muitas paredes para sobreviver. E acabou se tornando um dos nossos grandes artistas”, explica Silvio Coutinho.

O bondinho de Irineu Francisco (à direita)

 

 




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O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
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