PROCURAR POR
 NESTA EDIÇÃO
  
 

Apesar de ser um dos campeões mundiais no quesito desigualdade, paradoxalmente o Brasil é o país que apresenta, ao mesmo tempo, o mais alto índice de mobilidade social. Essa é uma das principais conclusões obtidas pelo sociólogo José Pastore, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP, especialista em relações do trabalho e desenvolvimento, que tem se dedicado ao tema por mais de três décadas, tendo, inclusive, em 1999, publicado um livro sobre a questão em que são apresentados os resultados de suas pesquisas, em parceria com Nelson do Valle Silva, intitulado Mobilidade social no Brasil (Makron Books). Ao concentrar, em um de seus trabalhos, seu olhar sobre a camada mais rica da população, formada por 5% dos brasileiros – com maior renda e melhor nível educacional –, Pastore descobriu dados surpreendentes, como o fato de que apenas 18% dos que formam o topo da sociedade possuem antepassados que já faziam parte da elite, o que significa que os outros 82% ascenderam recentemente, no intervalo de apenas uma geração, por mérito ou esforço própbio. Desse total, cerca de 20% são filhos de agricultores – na maioria analfabetos –, enquanto 16% são membros de famílias em que o pai era trabalhador da construção civil (serventes e pedreiros). Mas, de uma maneira geral, mais da metade dos membros da elite brasileira atual são descendentes de trabalhadores braçais ou manuais. “A mobilidade social brasileira é tão grande que impressiona meus colegas sociólogos do mundo todo”, afirma Pastore.

Para obter seus dados, Pastore e Silva ouviram 42 mil chefes de família, com idades que variavam entre 20 e 64 anos. O trabalho faz parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e seus números foram atualizados até 1996. Segundo Pastore, apesar das mudanças econômicas e sociais dos últimos anos, a tendência apontada pela pesquisa continua válida. Os indicadores mostram que cinco em cada dez brasileiros vivem melhor do que seus pais, sendo que apenas um está em situação pior, enquanto os outros quatro apresentam padrão de vida praticamente idêntico ao dos seus progenitores.

Mobilidade coletiva – Existem diferentes conceitos de mobilidade social. O utilizado por Pastore considera a movimentação das pessoas pelas classes sociais, enquanto há outro que prioriza o impacto dos benefícios coletivos ao longo dos anos na melhoria da qualidade de vida de uma sociedade, tais como as iniciativas nas áreas da educação e da saúde, também conhecido como mobilidade coletiva. Partindo dessa concepção, recentemente a Organização das Nações Unidas (ONU) divulgou uma pesquisa em que o Brasil aparece como o país onde, coletivamente, as pessoas mais melhoraram de vida nos últimos 28 anos. Para chegar a esse resultado, a pesquisa levou em consideração a taxa de analfabetismo, a taxa de matrícula no ensino fundamental, a longevidade da população, o produto interno bruto (PIB) e a renda per capita dos países. Ambos os estudos são complementares, pois enquanto Pastore analisa as chances de alguém progredir contornando as limitações sociais impostas pela renda familiar, pela escolaridade dos pais e pelas condições macroeconômicas, a ONU analisa se o conjunto de habitantes de cada país está vivendo em condições mais dignas.

Para Naércio Menezes Filho, também professor da FEA, o Brasil cresceu muito em termos econômicos nas décadas de 60, 70 e 80, o que permitiu aos ricos ficarem mais ricos e aos pobres melhorarem de vida. “O que acontece é que a elite brasileira cresceu, incorporando pessoas de origem humilde e preservando seus integrantes mais antigos”, afirma. “As probabilidades de uma pessoa com pais ricos e bem-educados não conseguir se manter na mesma situação são pequenas, enquanto as chances de alguém de origem modesta ascender também são menores, apesar de existirem.”

Segundo Menezes, se considerarmos que mobilidade social inclui a troca de posições de cima para baixo e vice-versa, a mobilidade social no Brasil é pequena. Mas, se a metodologia de pesquisa levar em conta o movimento de baixo para cima, a mobilidade social brasileira aparecerá como um fenômeno social grande. “O conceito de mobilidade social varia conforme a metodologia empregada nos estudos.” Apesar de os mais ricos dificilmente perderem sua posição social, o estudo de Pastore e Silva e o da ONU apontam que a sociedade brasileira produziu, pelos menos nas últimas três décadas, portas de acesso para os mais pobres poderem atingir melhores condições de vida. Entre esses mecanismos, a educação, principalmente a de nível superior, aparece em lugar de destaque. Levantamento feito por Pastore mostra que 95% dos ocupantes dos cargos do primeiro escalão do governo federal vêm de famílias cujos pais possuem baixo grau de escolaridade e que a maioria conseguiu obter o diploma universitário.

Educação e posição social – De acordo com Menezes, o grande desafio para o aumento da mobilidade social a partir da educação é a ampliação das vagas de nível superior. “As universidades públicas ainda podem aumentar suas vagas, mas há limites nesse processo”, afirma. “Uma das melhores soluções é a ampliação do financiamento dos estudos dos jovens de baixa renda por meio do crédito educativo, em que os estudantes podem pagar, após se formarem e conseguirem emprego, um empréstimo concedido a juros bem baixos, usado para pagar as mensalidades do curso e para seu sustento nesse período”, defende. “Nos últimos anos houve ampliação das vagas nas universidades e no ensino médio de maneira proporcional, o que levou à preservação do gargalo, ou seja, da situação em que não há vagas em quantidade suficiente para suprir a demanda gerada pelos alunos que obtêm o diploma do ensino médio. É uma solução para essa equação que precisamos conseguir.”

Segundo o docente, a geração nascida no início dos anos 80, filha de pais menos educados, está conseguindo concluir o ensino fundamental e o médio. Com base em dados da PNAD e de diversas edições da Pesquisa Mensal de Emprego, ambas promovidas pelo IBGE, Menezes concluiu que aproximadamente 60% dos filhos de pais menos educados (que não têm o ensino médio completo) terminam o ensino fundamental. “A geração que hoje tem entre 15 e 18 anos foi beneficiada pela redisdribuição de recursos aos municípios, ocorrida a partir de 1988, com a nova Constituição.”

Outra característica que chama a atenção na mobilidade social brasileira é que, aqui, muitas vezes a pessoa parte de um ponto muito baixo da pirâmide social e consegue chegar até o topo, enquanto em outros países, principalmente nos ricos, as pessoas normalmente partem de uma situação um pouco melhor, do meio do caminho. A cultura do consumo também está relacionada. Pesquisas mostram que o consumismo da população norte-americana aquece a economia, gerando oportunidades para novos empreendedores, tendência que, consideradas as devidas proporções, existe em outros países novos, notadamente nos do continente americano, do qual o Brasil faz parte. No caso dos países da Europa Ocidental, em razão da menor propensão ao consumo e da excelente distribuição de renda, a mobilidade social acaba sendo extremamente baixa.  

Para Nélio Bizzo, vice-diretor da Faculdade de Educação da USP, o Brasil é realmente um país único, pois consegue aliar a desigualdade ao oferecimento de diversas oportunidades de mobilidade social. “Tenho uma aluna de doutorado que morou em favela e ainda hoje reside em uma região muito pobre da cidade de São Paulo, mas acabou de conseguir uma bolsa-sanduíche para concluir seu doutorado em Cambridge, Inglaterra, onde, provavelmente, ela também irá fazer seu pós-doutorado”, conta. “Em países como a Inglaterra isso é praticamente impensável. Mesmo nos Estados Unidos temos sérios problemas de preconceito, como mostra a história de um cientista famoso daquele país, Edward Wilson, que conseguiu entrar em Harvard mas sabia que sofreria preconceito por causa de seu sotaque sulista do Alabama. Para contornar o problema, Wilson teve que fazer um curso de dicção que lhe permitiu omitir sua origem.” A própria trajetória de Bizzo é emblemática. Filho de imigrantes italianos, aluno de escola pública, o docente chegou a cursar o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) com o objetivo de conseguir se tornar um operário de fábrica um pouco mais qualificado. “No final do curso prestei vestibular e consegui entrar na USP para fazer biologia”, lembra. “Após me formar, dei aulas em um curso supletivo mantido pela igreja na Favela do Jaguaré até o momento em que prestei o concurso para ingresso como professor na Universidade, que é uma instituição onde ninguém é discriminado por ter sotaque gaúcho ou cearense, pois o que vale aqui é a capacidade e o esforço de cada um”, afirma. “Esse é outro mecanismo democrático de mobilidade social no Brasil: os concursos públicos.”

Ainda hoje o docente mantém relações com a comunidade da Favela do Jaguaré. “Recentemente fui dar uma palestra numa creche local e encontrei uma professora que foi minha aluna há 20 anos. Fiquei feliz por ter contribuído na alfabetização dela, que, já adulta, conseguiu superar uma série de dificuldades, partindo quase que do nada, e no final deste ano vai se formar em Pedagogia.”

 

 




ir para o topo da página


O Jornal da USP é um órgão da Universidade de São Paulo, publicado pela Divisão de Mídias Impressas da Coordenadoria de Comunicação Social da USP.
[EXPEDIENTE] [EMAIL]