Quando
São Paulo fizer 450 anos, poderá contemplar as imagens
de sua primeira infância. Em um planalto, distante do mar, cabanas
de sapé, umas poucas casas de pau-a-pique dispostas ao redor
de um coleginho e uma capela. À primeira missa, só índios
e padres jesuítas assistiram, mas aos poucos foram chegando
os colonos portugueses que subiam a serra. A descrição
está naqueles que são considerados os primeiros documentos
históricos de São Paulo, as cartas de José de
Anchieta e também de outros jesuítas, como o padre Manuel
da Nóbrega. Enviadas à sede da Companhia de Jesus, em
Roma, e lá guardadas por séculos, essas missivas retornarão
pela primeira vez ao Brasil em janeiro de 2004, no aniversário
da cidade.
A exposição
será rápida, apenas 30 dias, e acontecerá no
lugar onde nasceu a Vila de Piratininga, o Pátio do Colégio.
Depois de ter passado mais de três meses pesquisando nos arquivos
históricos da Companhia, o diretor do Pátio, padre
José Maria Fernandes, selecionou as cartas que serão
expostas – 128 no total, 18 delas de Anchieta – e que
ele, no início do ano que vem, irá pessoalmente buscar.
Ainda que tenha sido assinado contrato com uma seguradora internacional,
a Companhia de Jesus, que nunca antes deixou que esses documentos
saíssem de sua sede, liberou apenas um dos seus inumeráveis
volumes. Diante
da limitação, a escolha do padre recaiu sobre aquelas
que contassem os primeiros 15 anos de São Paulo. “Através
dessas linhas transparece o nascimento da cidade”, diz Fernandes.
“Para São Paulo, as cartas de Anchieta têm o
mesmo significado que a de Pero Vaz de Caminha tem para o Brasil.”
As
cartas eram – e continuam sendo, segundo explica o padre Fernandes
– uma obrigação para os jesuítas. Ao
menos uma vez por ano, os padres devem enviar aos seus superiores
um detalhado relato, uma espécie de balanço, do que
aconteceu no local em que estão – na época de
Anchieta, com uma cópia escrita em latim e outra na língua
mãe do remetente. Através desse procedimento, que
permitiu à Companhia se manter informada sobre tudo o que
acontecia nos lugares onde atuava – África, Ásia
e América –, foi formado também um vultoso arquivo
com relatos dos mais importantes acontecimentos da história
mundial.
Além
disso, os jesuítas também formaram uma espécie
de rede de comunicação mundial: Roma era o pólo
centralizador e distribuidor. Depois de lidas, as missivas eram
selecionadas, recebiam grifos e anotações. Daquelas
que pareciam ser mais interessantes e que poderiam servir de exemplo,
trechos eram reproduzidos e enviados para outros missionários.
“Foi dessa forma que o teatro catequizador do Padre Anchieta
rodou o mundo”, conta Fernandes.
|
O
Pátio do Colégio, marco inicial da cidade: cartas
retratam São Paulo nas primeiras décadas de
fundação |
A correspondência
que chegava ao colégio de Piratininga era muito aguardada.
Durante as refeições, os jesuítas ouviam atentos
a leitura dos relatos de seus companheiros de lugares distantes.
Era um incentivo para que eles continuassem a missão para
a qual acreditavam estarem destinados. “Mal tendo o que vestir
e o que calçar, fazendo votos muito rígidos de pobreza,
esses primeiros jesuítas eram muito visionários. Para
eles, existia um caminho único e certo para chegar a Deus
e era o caminho que trilhavam”, explica Nina Lomônaco,
historiadora que organiza a exposição. Para substituir
o que não tinham aqui, faziam adaptações: trocavam
a farinha de trigo pela de mandioca, por exemplo, e também
inventavam coisas. Sem sapatos, fizeram alpercatas com galhos de
plantas.
Franzino,
com roupas rotas e padecendo de tuberculose, Anchieta se alimentava
mal e não dormia, muitas vezes, mais que duas horas. Para
suprir a falta de livros, passava o resto da noite tirando cópias
manuscritas das lições que seriam estudadas no dia
seguinte e também de gramáticas tupis para mandar
à Europa.
Nessa
terra distante, com um povo – os índios – que
acreditavam
poder fazer de tábula rasa, os jesuítas pretendiam
tornar real o projeto utópico de Inácio de Loyola:
uma sociedade sem os vícios dos europeus, uma república
socialista governada pelos padres. À caça de almas
para o intento, eles fizeram, ao criar o colégio de Piratininga,
a primeira investida ao interior do Brasil. Antes mesmo que chegassem
os bandeirantes, vislumbravam de São Paulo uma entrada para
o restante do País e lhe chamavam de “boca do sertão”.
“Eles não teriam escolhido um lugar de tão difícil
acesso se não tivessem planos de continuar a entrar para
o interior”, afirma Nina. São Paulo não teria
sido fundada, portanto, como mais uma cidade do sistema colonial
português, mas, ao contrário, como uma forma de se
isolar dele. A fim de ter mais liberdade para implementar os seus
planos, os religiosos queriam se distanciar da Coroa. Mas
os portugueses não tardariam a chegar e o sonho, como se
sabe, não vingou.
Um
religioso cientista – Mais completas descrições
do povo e dos aspectos naturais do Brasil, essas cartas não
ficaram restritas aos religiosos e chegaram a ser impressas e circular
por toda a Europa. “Houve, nessa época, um grande interesse
por elas. Eram relatos de um mundo inteiramente desconhecido”,
diz Nina.
Com
uma memória e um senso de observação incomuns,
Anchieta conta com precisão tudo o que viu. O cotidiano da
pequena vila, as lições de catequese e gramática,
os hábitos dos “brasis”, que tão estranhos
lhe pareciam. Em um dos textos, explica a ausência de deficientes
entre eles: “Quase não se encontra nenhuma deformidade
natural, e só raramente um cego, um surdo, um aleijado ou
coxo, nenhum nascido monstro. Todavia não há muito
que numa aldeia de índios, a uma ou duas milhas de Piratininga,
nasceu uma menina ou antes monstro, que tinha o nariz pegado com
o queixo e por baixo a boca, o peito e as costas semelhantes às
do lagarto do rio, coberta de horrendas escamas e o sexo quase nos
rins; a qual o pai apenas ela nasceu fez enterrar viva. E dão
a mesma morte aos que suspeitam terem sido concebidos em adultério”.
Ainda
que se horrorize com muitos dos costumes, especialmente no início,
Anchieta parece ter sido um pouco mais tolerante que os outros irmãos
da Companhia. O fato de ter chegado ao Brasil ainda muito novo,
com apenas 19 anos, sem as idéias e os valores completamente
cristalizados, talvez seja uma explicação.
Além
de atentar aos costumes, o jovem padre tinha ainda uma veia de cientista.
Com a Carta sobre as coisas naturais de São Vicente, de 31
de maio de 1560, ocupa o lugar de pioneiro na série de viajantes
estudiosos de nossa história natural, como Spix e Saint Hilaire.
Pela primeira vez, o clima e os fenômenos meteorológicos
de São Paulo, diferentes do litoral, eram descritos com alguma
exatidão. “Todos os calores do verão se temperam
com abundância de chuvas; mas no inverno (passado o outono,
que começa em março numa temperatura intermédia)
acabam as chuvas, e a força do frio torna-se mais aguda em
junho, julho e agosto, tempo que vimos com freqüência
as geadas espalhadas pelos campos crestarem quase toda árvore
e erva e a superfície da água coberta de gelo.”
|
Em
janeiro, exposição mostrará 128 cartas
escritas no século 16 pelos jesuítas, das quais
18 são de Anchieta. “Para São Paulo, as
cartas de Anchieta têm o mesmo significado que a de
Pero Vaz de Caminha tem para o Brasil”, diz o padre
José Fernandes (acima) |
Aos
europeus, apresenta ainda a flora e a fauna, revelando-lhes espécimes
então completamente desconhecidos, como o peixe-boi, a anta,
o tamanduá e o tatu, sobre o qual escreve: “Vive pelos
campos em cavidades subterrâneas, na cauda e na cabeça
quase sempre semelhantes a lagartos. Tem o corpo coberto por cima
duma concha muito dura que as flechas não atravessam, muito
parecida à armadura do cavalo. Para se defender escava a
terra com grande rapidez, e quando se abriga na sua toca, se não
se lhe apanha uma perna, em vão se trabalha em o tirar para
fora: agarra-se à terra tão pertinazmente com conchas
e pés que embora se lhe puxe a cauda mais fácil é
separar-se ela do corpo que arrancá-lo da cova”.
Aranhas,
formigas, cobras, abelhas, moscas e mosquitos também foram
documentados. E, nesses escritos, o que se percebe é um misto
de deslumbramento e temor. O que surge através de seus olhos
é uma terra ameaçadora e cheia de perigos. Espanta-lhe
ainda a abundância e a variedade e não entende como
espécies de um mesmo animal, como era o caso das formigas,
recebessem cada uma um nome próprio, como saúva ou
içá.
Nenhuma
das epístolas que serão apresentadas no Pátio
do Colégio é inédita. No entanto, o visitante
terá o sabor de vê-las de perto, observar-lhes detalhes
como o papel e a caligrafia. Como são muitas, mais de uma
centena, e estão encadernadas em um único volume que
não pode ser desfeito, deve ser utilizado o mesmo esquema
em que foi exposta a carta de Pero Vaz de Caminha durante a mostra
do Redescobrimento, em 2000, em que uma página era virada
a cada dia. O material completo poderá ser visto no local
através de computadores, como se fosse um livro virtual.
“Para contar melhor essa história e suprir as lacunas,
outros recursos digitais devem ser utilizados”, explica o
padre Fernandes.
e
suprir as lac |
|
E
em primeiro lugar há os diversos gêneros de cobras
venenosas. Umas chamam-se jararaca, muitíssimo freqüentes
nos campos, nos matos e nas próprias casas, onde não
raro as encontramos, e cuja mordedura mata no espaço
de vinte e quatro horas. Essa
descrição, provavelmente a primeira que se tem
das cobras brasileiras, não consta de nenhum tratado
de biologia ou história natural, mas de uma carta do
padre José de Anchieta, datada de 1560.
|
Observador
acurado e interessado por todos os aspectos do mundo
novo que encontrou, Anchieta escreveu detalhados relatos
sobre a fauna nacional. Das cobras, por exemplo, relata
o aspecto, seu hábitat natural e até os
efeitos de seus venenos. “Lendo com os olhos de
hoje, é possível ver que ele acertou muita
coisa que só viria a ser sistematizada séculos
depois”, diz o médico João Luiz
Cardoso, do Hospital Vital Brasil. “Ele observa
acertadamente que a cobra-coral é a mais peçonhenta
e também a mais rara, ao passo que a jararaca
é a espécie encontrada com maior freqüência.
Hoje sabe-se que 90% das mordidas são de jararaca.
Os efeitos do veneno da cascavel, que paralisa a visão
e os movimentos, também estão descritos.”
|
Os
pesquisadores do Instituto Butantan, que devem lançar
no próximo mês o maior livro já escrito
sobre animais peçonhentos no Brasil, selecionaram trechos
das cartas de Anchieta que serão incluídos na
obra. “Os interessados na história da medicina
no Brasil têm que necessariamente passar por essas cartas.
Elas são os primeiros documentos nesse sentido”,
explica o médico.
Um
outro jesuíta, o padre Luiz Rodrigues, seria responsável
pelo primeiro relato de picada de cobra em seres humanos,
conta o biólogo Marcelo Duarte, também do
Instituto Butantan. Em carta aos seus superiores, o padre
conta como foi picado por uma cascavel, em 1563, ao chegar
na Ilha de Itaparica, na Bahia. |
|
|
|
O
Brasil colonial revisto
Quase
todos os documentos sobre o Brasil colonial, cerca de 80%, se encontram
fora do País. Dessa forma, a maior parte da história
do País – o período colonial abrange desde o
século 16 até o 19 – permanece ainda por ser
contada. Essa lacuna, no entanto, está perto de ser superada.
A documentação do Arquivo Histórico Ultramarino
(AHU), a que só pesquisadores que se deslocassem até
Lisboa tinham acesso, pode agora ser consultada nos bancos de dados
de institutos de pesquisa e universidades de todo o País.
Todos
os documentos expedidos por reis, vice-reis e governadores referentes
às 18 capitanias hereditárias que estavam no arquivo
foram reunidos em CD-ROMs pelo Projeto Resgate de Documentação
Histórica Barão do Rio Branco. Capitaneado
pelo Ministério da Cultura, com apoio do CNPq e das agências
estaduais de fomento à pesquisa – no caso de São
Paulo, a Fapesp –, o projeto digitalizou tudo o que estava
em microfilmes. Em junho deste ano, 100 lotes, com 289 CDs cada
um, foram entregues pelo Ministério a institutos históricos
e geográficos e universidades que possuem cursos de história.
O Arquivo
Histórico Ultramarino foi criado em 1931 para reunir em um
só local toda a documentação colonial que estava
dispersa. Ainda assim muitos documentos se encontravam sem sistematização
e, antes que fossem colocados nos discos, tiveram que ser reorganizados
e postos em ordem cronológica. Para
essa empreitada, mais de 40 pesquisadores brasileiros, entre historiadores
e paleógrafos, estiveram trabalhando em Portugal por quatro
anos. O resultado, além da organização, foi
o surgimento de dados desconhecidos. “A documentação
que se conhecia sobre São Paulo foi acrescida em pelo menos
um terço”, explica o historiador José Jobson
de Andrade Arruda, coordenador da parte do Projeto Resgate referente
a São Paulo e professor aposentado da USP. Para ele, o projeto
democratiza informações importantes e, tal qual o
Projeto Genoma, na área da biologia, deve servir para alavancar
uma série de outras pesquisas. “Desde que esses dados
começaram a ser divulgados, houve um crescimento significativo
de pesquisas nessa área e pode-se dizer que elas já
modificam todo o conhecimento histórico que se tinha sobre
o Brasil colonial. O que se espera para os próximos anos
é uma enxurrada de teses”, diz.
Na
USP, o Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) e o Centro de Apoio
à Pesquisa Histórica Sérgio Buarque de Holanda
(CAPH) do Departamento de História já têm os
11 CDs com os 7 mil documentos referentes à Capitania de
São Vicente. Os discos referentes ao resto do País
devem chegar em breve.
|